jdact
e wikipedia
«Rino
telefonou ‑me esta manhã, pensei que quisesse outra vez dinheiro e preparei‑me
para lhe dizer que não. Mas o motivo do telefonema era outro: não sabia da mãe.
Há quanto tempo? Háá duas semanas. E agora é que me ligas? O tom deve ter ‑lhe
parecido hostil, embora eu não estivesse zangada nem indignada; tinha apenas
uma ponta de sarcasmo. Tentou desculpar‑se mas fê‑lo confusamente, atrapalhando‑se,
metade em dialecto, metade em italiano. Disse que estava convencido de que a
mãe andava a passear por Nápoles, como de costume. Mesmo de noite? Bem sabes
como ela é. Pois sei, mas achas normal duas semanas de ausência? Sim. Tu não a
vês há muito tempo, ela piorou. Nunca tem sono, entra, sai, faz o que lhe dá na
gana. Mas acabara por ficar preocupado. Perguntara a toda a gente, dera uma
volta pelos hospitais, até tinha ido à polícia. Nada, a mãe não estava em parte
nenhuma. Que filho tão bom! Um homem corpulento, dos seus quarenta anos, que
nunca trabalhara na vida, só negociatas e esbanjamento. Imaginei o cuidado com
que fizera as buscas. Nenhum. Não tinha miolos, e só gostava de si próprio. Não
estará aí contigo?, perguntou‑me de súbito. A mãe? Aqui em Turim? Sabia
perfeitamente o que se passava, falava só por falar. Ele é que era viajante, já
viera a minha casa pelo menos dez vezes, sem ser convidado. Ao passo que a mãe,
que eu acolheria com prazer, nunca saíra de Nápoles em toda a sua vida. Respondi‑lhe:
claro que não está aqui comigo. Tens a certeza? Por favor, Rino, já te disse
que não está. Então, para onde foi ela? Começou a chorar e deixei‑o fazer a
fita de quem está desesperado, soluços que começavam por ser fingidos e se
tornavam verdadeiros. Quando terminou, disse‑lhe: por favor, ao menos uma vez,
comporta‑te como ela desejaria: não a procures. Mas o que estás tu a dizer? Aquilo
que ouviste. É inútil. Aprende a viver sozinho e não voltes a ligar‑me também.
E desliguei.
A
mãe de Rino chama‑se Raffaella Cerullo, mas toda a gente a tratou sempre por
Lina. Eu não, nunca fiz uso de nenhum desses nomes. Para mim, há quase sessenta
anos que é Lila. Se lhe chamasse Lina ou Raffaella, assim de repente, era sinal
de que a nossa amizade chegara ao fim. há pelo menos trinta anos que me diz que
quer desaparecer sem deixar rasto, e só eu sei bem o que ela quer dizer. Nunca
lhe passou pela cabeça uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer
a vida noutro lado. E nunca pensou em suicídio, pois repugnava‑lhe a ideia de
Rino ter alguma coisa a ver com o seu corpo, de ser obrigado a ocupar‑se dele.
A sua intenção foi sempre outra: queria volatilizar‑se; queria que todas as
suas células desaparecessem; que dela não fosse possível encontrar nada. E como
a conheço bem, ou pelo menos creio que conheço, tenho como certo que encontrou
a maneira de não deixar em parte nenhuma deste mundo nem um cabelo.
Passaram
‑se dias. Fui vendo o correio electrónico e o correio normal, mas sem
esperança. Sempre lhe escrevi com frequência, e ela quase nunca me respondeu. O
hábito foi sempre esse. Preferia o telefone ou as longas noites de conversa
quando eu ia a Nápoles. Abri as minhas gavetas, as caixas de metal onde guardo
todo o género de coisas. Poucas. Deitei tanta coisa fora, principalmente o que
se relacionava com ela, e ela sabe‑o. Descobri que não tenho nada dela, nem uma
imagem, nem um bilhete, nem uma prendinha. Eu própria me surpreendi. É possível
que em todos estes anos não me tenha deixado nada de si, ou, pior, que eu não
tenha querido conservar qualquer coisa dela? É possível. Desta vez telefonei eu
a Rino, fi-lo contrariada. Não atendia no fixo nem no móvel. Ligou‑me ao serão,
quando lhe dava jeito. Tinha o tom de voz com que tenta causar pena. Vi que
ligaste. Tens notícias? Não. E tu? Nada. Disse‑me coisas sem pés nem cabeça.
Queria ir à televisão, ao programa onde se fala das pessoas desaparecidas,
fazer um apelo, pedir perdão à mãe por tudo, suplicar‑lhe que volte. Escutei com
paciência, depois perguntei‑lhe: viste o guarda‑fato dela? Para quê?
Naturalmente, a coisa mais óbvia não lhe ocorrera. Vai ver. Foi e verificou que
não havia lá nada, nem um vestido da mãe, de Verão ou de Inverno, só as
cruzetas velhas. Mandei‑o procurar pela casa toda. os sapatos dela,
desaparecidos. Os poucos livros que possuía, desaparecidos. As fotografias,
todas desaparecidas. Desaparecidos os filmes. Desaparecido o computador, bem
como as velhas disquetes que dantes se usavam, tudo, todas as coisas
relacionadas com a sua experiência de feiticeira electrónica, que começara a
familiarizar‑se com os computadores em finais da década de sessenta, no tempo
dos cartões perfurados. Rino estava estupefacto. Disse ‑lhe: leva o tempo que
quiseres, mas depois telefona‑me e diz se encontraste nem que seja só um
alfinete que lhe pertença. Ligou‑me no dia seguinte, muito agitado. Não há cá
nada. Nada, nada? Não. Recortou a imagem dela de todas as fotografias em que
estávamos juntos, mesmo aquelas de quando eu era pequeno. Procuraste bem? Em
todo o lado. Na cave, também? Em todo o lado, já te disse. Até a caixa com os
documentos desapareceu. Sei lá, velhas certidões de nascimento, contratos
telefónicos, recibos de contas. o que significa isto? Que alguém roubou tudo? O
que procuravam? O que querem da minha mãe e de mim?» In Elena Ferrante, A Amiga
Genial, 2011, Relógio d’Água, 2014, 978-989-641-479-5
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT