sábado, 8 de outubro de 2016

Confissões de uma Freira Pagã. Kate Horsley. «Questiono-me se ela terá tirado estas ideias de São Paulo ou de Santo Agostinho, que associam o auto-desprezo à justiça. O ódio a si próprio parece-me ser um mal em si mesmo»

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«(…) Apesar de as couves gostarem muito da água, há ervas que já se afogaram. A irmã Aillenn chorava e tremia, como se estivesse parada num vento frígido, segredando que a criança ia inchar porque a terra estava tão ensopada. Ela implorou à irmã Luirrenn que a deixasse empilhar pedras sobre a sua pequena campa e erguer uma cruz feita de ramos de teixo. A irmã Luirrenn não viu qualquer mal nisto e permitiu-o. A pele da irmã Aillenn parece feita de cera branca. Fico muitas vezes a olhá-la e penso na sua beleza a desgastar-se, como uma maçã perfeita caída na terra e que vai apodrecer antes de poder ser saboreada. Mas a beleza e a perfeição não garantem Graça e realização, e são sempre sacrificadas. A vida em si parece um ritual de sacrifício, e o mundo o altar no qual as plantas e os animais colocam as suas próprias vidas para o sustento de outros e no qual nós colocamos a nossa juventude, o nosso bem-estar, os nossos entes queridos e, finalmente, as nossas vidas. Eu sou uma mulher ignorante que tem sacrificado todas estas coisas, excepto a última, e não posso dizer para quem ou para quê eu efectuei este ritual implacável. Ao trabalhar na campa da criança, perto da irmã Aillenn, notei que as mãos dela tremiam e que tinha cortes no pescoço, parecendo ter sido feitos por um animal. Estes mortificaram-me e fiquei zangada quando me apareceu desinteressada nas suas feridas. Perguntei-lhe se ela era fraca e quando ela respondeu que sim, eu disse-lhe para ir buscar copog phadraig (plantago vulgar, usada para recuperar forças após perda de sangue), que as mulheres costumavam utilizar após o seu tempo de lua cheia. Ela então disse-me, em segredo, que a recolha de plantas não era cristã. Eu disse-lhe que ia muitas vezes com as mulheres do povoado recolher folhas, flores e raízes medicinais. A Irmã Aillenn disse-me, à medida que o horror tornava os seus olhos grandes, que eu não devia fazer tal coisa e que qualquer fraqueza que ela tinha era o resultado da sua natureza pecadora, que o Nosso Senhor Jesus Cristo, através dos seus serventes, poderia corrigir, desde que ela não se desse aos demónios.
Eu não conheço muito bem os demónios e nunca os vi ou ouvi, porque eu não oiço vozes nem tenho convulsões cujas origens não consigo decifrar. Mas as palavras e a cara dela provocaram-me medo e pensei, então, que os demónios estariam por perto. Eu queria chorar pela leveza e vulnerabilidade da criança, que não se conseguia defender nem do mais pequeno dos demónios. Decidi distrair-me, levando a irmã Aillenn a ter comigo uma discussão teológica, e perguntei a sua opinião sobre a natureza e a origem dos demónios. Ela respondeu que uma mulher, especialmente se parecer bonita aos outros, tem muitos demónios invisíveis a rodeá-la, o que faz com que as pessoas pequem. Questiono-me se ela terá tirado estas ideias de São Paulo ou de Santo Agostinho, que associam o auto-desprezo à justiça. O ódio a si próprio parece-me ser um mal em si mesmo, em vez de ser um antídoto para o mal. Se cultivarmos o ódio a nós próprios, então o sacrifício que fazemos de nós próprios e das nossas vidas não é sagrado, porque será então uma dádiva de algo que odiamos, em vez de algo que alimentamos e amamos. Como uma estudiosa, eu procuro as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, especialmente onde Ele deu lições sobre demónios. Eu ainda não percebi a interpretação das Suas palavras por São Paulo e Santo Agostinho. Que Deus me perdoe. Na religião cristã a verdade parece transformar-se, isto é, muitos estudiosos censuram as escrituras dos seus predecessores com revelações de novas verdades. Fico muitas vezes confusa, mas que não se pense que eu não estou grata pelo acolhimento que encontrei aqui no seio de Santa Brígida, que me dá paz e as escrituras de muitos estudiosos enaltecidos». In Kate Horsley, Confissões de uma Freira Pagã, tradução de Mariana Pereira, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-860-518-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT