sábado, 31 de dezembro de 2022

No 31. Viagem a Portugal. José Saramago. «E há as florestas. Torna o viajante a dizer-se afortunado por estar viajando no Outono. Não se descreve uma árvore. Como se há-de descrever uma floresta?»

 jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

Tentações do Demónio

«(…) O Marão não é a aguda fraga, o penhasco vertiginoso, o desafio para alpinistas. Já foi dito que é uma casa, e as casas são para os homens morarem nelas. A estas alturas toda a gente pode subir. Poderá? Os montes sucedem-se, tapam o horizonte, ou rasgam-no para outro monte ainda maior, e são redondos, enormes dorsos de animais deitados ao sol e para sempre imóveis. Nos fundos vales ouve-se o cachoar da água, e das encostas, por todos os lados, escorrem torrentes que depois acompanham a estrada à procura de uma saída para o nível abaixo, de patamar em patamar, até caírem de alto ou mansamente desaguarem na corrente principal que é apenas afluente de afluente, águas que tanto podem ir dar ao Corgo, que ficou lá para trás, como ao Douro, muito para sul, como ao Tâmega, que espera o viajante.

E há as florestas. Torna o viajante a dizer-se afortunado por estar viajando no Outono. Não se descreve uma árvore. Como se há-de descrever uma floresta? Quando o viajante olha a encosta do monte fronteiro, o que vê é os altos fustes dos troncos, as copas redondas ou esgalgadas, escondendo o húmus, o feto, o brando mato destes lugares. Assim fica sabendo que viaja, ele também, no invisível, tornou-se gnomo, duende, bichito que vive debaixo da folha caída, e só torna a ser homem quando, de longe em longe, a floresta se interrompe e a estrada corre ao céu aberto. E sempre o rumorejar das águas, frigidíssimas, e as nuvens rolando no céu, é um murmúrio que passa, como serão aqui as trovoadas? Atravessar a serra do Marão, de Vila Real até Amarante, deveria ser outra imposição cívica como pagar os impostos ou registar os filhos. Enraizado no rio Douro, o Marão é o tronco deitado duma grande árvore de pedra que se prolonga até ao Alto Minho, entrando pela Galiza dentro: reforça-se na Falperra, e abre-se, monte sobre monte, pelo Barroso e Larouco, pela Cabreira e pelo Gerês, até à Peneda, nos altos do Lindoso e de Castro Laboreiro.

Lá iremos. Agora vai o viajante entrando em Amarante, cidade que parece italiana ou espanhola, a ponte e as casas que na margem esquerda do Tâmega se debruçam, o balcão dos reis virado à praça, e este hotel modestíssimo cujas varandas traseiras dão para o rio, donde a esta hora do entardecer se levanta uma neblina, talvez só a poalha da água precipitada nos rápidos, rumor que povoará os sonhos do viajante, para sua felicidade. Porém, antes, jantará no Zé da Calçada, com proveito e gosto. E ao atravessar a ponte não fará outro sermão, mas pensará: Esta há-de ter histórias. Mais teria a que neste lugar existiu, construída no século XIII pelo S. Gonçalo de cá e povos de Ribatâmega. Bons tempos esses, em que o santo levava a argamassa ao alvenel e ficava muito agradecido». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Facilmente se compreende que o viajante vai em recordações da sua própria infância passada noutras terras, e dessa distracção acorda por alturas de Lobrigos…»

jdact e cortesia de wikipedia

 De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

Tentações do Demónio

«(…) Vai a estrada em seu sossego de curva e contracurva, ora desce, ora sobe, e na encosta de lá vêem-se melhor as casas, até elas condizem com a paisagem. Não são ermos estes lugares. Tempo houve, antiquíssimo, em que estas montanhas de xisto teriam sido assustadoras e eriçadas massas, recozendo ao sol de Verão, ou varridas de cataratas de água nos grandes temporais, imensas solidões minerais que nem para desterro serviriam. Depois veio o homem e pôs-se a fabricar terra. Desmontou, bateu e tornou a bater, fez como se esfarelasse as pedras entre as palmas grossas das mãos, usou o malho e o alvião, empilhou, fez os muros, quilómetros de muros, e dizer quilómetros será dizer pouco, milhares de quilómetros, se contarmos todos os que por esse país foram levantados para segurar a vinha, a horta, a oliveira. Aqui, entre Vila Real e Peso da Régua, a arte do socalco atinge a suma perfeição, e é um trabalho que nunca está concluído, é preciso escorar, dar atenção à terra que aluiu, à laje que deslizou, à raiz que fez de alavanca e ameaça precipitar o muro no fundo do vale. Vistos de longe, estes homens e estas mulheres parecem anões, naturais do reino de Lilipute, e afinal desafiam em força as montanhas e mantêm-nas domesticadas. São gigantes pessoas, e isto não passa de imaginações do viajante, que as tem pródigas, quando se está mesmo a ver que têm os homens o seu tamanho natural, e basta.

O almoço é em Peso da Régua e dele não ficou cheiro nem sabor para a memória. Ainda sentado à mesa, o viajante consulta os seus grandes mapas, segue com um dedo decifrador o traçado das estradas, e faz isto lentamente, é um prazer de criança que anda a descobrir o mundo. Tem seus projectos, por esta margem do Douro até Mesão Frio, mas de súbito vem-lhe uma grande saudade do caminho que ainda agora percorreu, e a saudades assim que fará o viajante senão render-se? O mais que pôde fazer, e com isso não perdeu, foi subir até Fontelas, e mais acima, entre as quintas, vendo do alto os socalcos, o rio ao fundo, parando com uma grande paz na alma diante dos pequenos e recolhidos solares, rústicos netos de Nasoni, arquitecto santíssimo que a estas terras veio e nelas felizmente abundou em prole. Torna o viajante a descer a Peso da Régua, atravessa a vila sem parar, e é um viajante atormentado de dúvida, que tanto tem na vontade subir até Vila Real como ficar pelas encostas de Fontelas e Godim, entre os muros, batendo aos portões das quintas como os garotos e fugindo ao ladrar dos cães. Santa vida.

Facilmente se compreende que o viajante vai em recordações da sua própria infância passada noutras terras, e dessa distracção acorda por alturas de Lobrigos: uma vez mais pasmado diante dos vinhedos, sem dúvida é esta a oitava maravilha do mundo. Passa Santa Marta de Penaguião, Cumeeira, até Parada de Cunhos, e aí, voltando costas ao rio Corgo, enfrenta o Marão. Parece a seca enunciação de um itinerário, e é, pelo contrário, um grande passo na vida do viajante. Atravessar a serra do Marão, qualquer o pode fazer, mas quando se sabe que Marão significa Casa Grande, as coisas ganham o seu aspecto verdadeiro, e o viajante sabe que não vai apenas atravessar uma serra mas entrar numa casa. Que faz qualquer visitante ao entrar? Tira o chapéu, se o usa, baixa ligeiramente a cabeça, se a traz ao léu, dá, enfim, as devidas mostras de respeito. Este viajante torna-se visitante, e entra, depois de convenientemente lavada a alma, como no capacho se limpam os pés». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O Segredo da Descoberta Portuguesa das Américas. José Gomes Ferreira. «Todos exigem provas definitivas, escritas, para poderem considerar a hipótese da pré-descoberta das Américas pelos navegadores portugueses, sendo esta uma condição sine qua non…»

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«(…) Durante muitas décadas, ou melhor, desde há dois séculos, vários autores portugueses e estrangeiros, incluindo sul e norte--americanos, afirmaram que a primazia na descoberta das ilhas e dos territórios da América era portuguesa: desde Alexander von Humboldt a Hemy Yule Oldham no século XIX, Edgar Prestage e Jaime Cortesão em meados do século XX, Peter W. Dickson em 2002, até aos anos mais recentes, com a publicação em 2015 do livro de John D. Irany Before 1492 – The Portuguese Discovery of America (Amazon, Kindle Edition).

Sabemos claramente que todos os autores que ousaram defender esta controversa tese foram sempre obrigados a enfrentar a resistência feroz do establishment intelectual, académico, cultural, político e mesmo diplomático. Dos historiadores oficiais aos professores do ensino público e até do ensino privado, políticos, diplomatas e homens de negócios, a oposição a esta tese foi sempre severa. Todos exigiram provas directas, nomeadamente provas escritas, e sempre recusaram provas indirectas, circunstanciais, rejeitando  explicações e enquadramentos baseados no ambiente social, no estado da arte, no espírito do tempo (zeitgeist), no paradigma tecnológico da época, perspectivas que, como sabemos, são sempre importantes complementos para consolidar qualquer nova tese sobre História. Todos exigem provas definitivas, escritas, para poderem considerar a hipótese da pré-descoberta das Américas pelos navegadores portugueses, sendo esta uma condição sine qua non para se iniciar uma eventual discussão sobre o assunto. Com tantas requisitos prévios, a aceitação da própria tese em si torna-se assim virtualmente impossível, porque haverá sempre mais uma e outra exigência de provas definitivas, como se as existentes nunca bastassem...

Mas, de facto, tal conjunto de provas existe e é cada vez mais volumoso. Como costumamos dizer em bom português, essas provas sempre estiveram e continuam a estar debaixo dos nossos olhos. O problema é que, colectivamente, nós continuamos a não as querer ver. Aliás, há um ditado popular que se aplica na perfeição a esta realidade: o verdadeiro cego é aquele que não quer ver. É esse o caso dos historiadores oficiais, para quem, uma versão diferente da oficial sobre a descoberta da América, uma interpretação alternativa ao feito de Cristóvão Colombo em 1492 nem sequer merecem a pena ser analisadas, não importa em que argumentos se baseiam, nem sequer com que provas são fundamentadas.

Em relação à tese da pré-descoberta das Américas pelos portugueses, poderemos dizer, como disse Galileo Galilei, no tribunal da Inquisição (maldita) em relação ao planeta Terra e à posição que este ocupava no sistema solar: Eppur si muove (e, no entanto, move-se). Há, de facto, uma versão diferente da história da descoberta das Américas pelos europeus que continua a ser pacientemente tecida por muitos investigadores independentes e à espera da oportunidade de ser amplamente conhecida e divulgada. Este ensaio, ou melhor, esta modesta investigação e interpretação jornalística, é sobre as evidências e as provas concretas da pré-descoberta das Américas pelos navegadores portugueses.

A Pré-Descoberta Portuguesa da Península da Florida

Pela primeira vez na História, a península da Florida aparece claramente desenhada, correctamente posicionada e com os seus contornos minuciosamente detalhados no primeiro rnapa-múndi digno desta classificação, o mapa de Henricus -Martellus, de 1490-1491, que, como se sabe, foi amplamente baseado nas novas descobertas portuguesas no oceano Atlântico. O mesmo território aparece claramente desenhado no primeiro globo terrestre feito por Martim Behaim, em Nuremberga, em 1490.

A península da Florida é mostrada novamente em pormenor no mapa de Cantino de 1501-1502, que reproduziu o chamado Padrão Real português, o secreto mapa oficial do mundo, rigorosamente guardado no Terreiro do Paço, em Lisboa, nas caves do palácio do rei Manuel I». In José Gomes Ferreira, O Segredo da Descoberta Portuguesa das Américas, Oficina do Livro, chancela LrYa, 2022, ISBN 978-989-661-557-4.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

JDACT, José Gomes Ferreira, História, Conhecimento, Caso de Estudo, Literatura, 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras…»

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O Rei de Marfim

«(…) Por areias e papirais marginam o rio sagrado e junto de frescas nascentes avistam enfim, a brilhar ao sol, o palácio das portas de cedro e janelas de cristal, e ante o trono encastoado de safiras ajoelham e beijam a mão do Preste João das Índias... ai menina! Dizem que no regresso lutou com os gigantes de um só olho e com a dextra alçando a cruz da espada fez frente aos enleios da feiticeira circe... o infante, minha dona, não é criatura deste mundo ... Tu ouvias, calado, a cismar, pensavas já, talvez, que um dia haverias de enviar teus embaixadores a esse rei cristão das terras distantes... mas a tua tia Filipa ali estava a falar vestida de negro, cabelo negro, o poço dos olhos negrume de água salobra fetos e salamandras... saíra à mãe, ao sangue de Urgel... sua irmã Isabel, a tua mãe, dizia ela que era branca, esguia, loira, tu não chegaste a conhecê-la...

Era verdade, senhor meu pai? Ele sorria entre sisudo que sempre se mostrava. Não, não era verdade, invenções de simples e crédulos, de servos e gente do povo, de algum jogral cego a cantar fadários nos arcos da rua Nova, com seu espantado respeito e maravilhamento, como se estivessem a imaginar seres fabulosos, cosiam lá entre si ao que ouviam e iam passando de boca a orelha acrescentamentos e remendos de fantasia. Não, saíra do reino por fins de Junho de vinte e cinco, depois de ter ido à corte tomar a bênção do rei seu pai e despedir-se do irmão Duarte, que ajudava já nas canseiras da governação, entrara em Castela por alfaiates e ao fim de três jornadas atingia Ciudad Rodrigo, subira até Valladolid, corte de poetas, a ver em seu paço o rei João primo co-irmão, longas caminhadas de paladinos...

Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras não dizidoiras, a brejeirice dos trovadores, ouvidas aos cavaleiros sem a presença feminina... fungavam risotas ao pronunciá-las, eu até gostava... porque é que a aia as queria esconder dos meus ouvidos? Não as declaravam diante das damas nos serões reais?..., com seus quarenta cavaleiros e homens de pé, a carriagem bem aparelhada, seguia o infante pelas sendas do vento e da água, por florestas cerradas, vales descobertos, desfiladeiros cortados no cerne de montanhas de lobo, urso e javali, descansando no desconforto de albergues ermos, em catraias de portelas onde sob o cascalho esfarelado e nas frinchas das penhas o tojo rasteiro, a urze, a carqueja, o espinheiro, enregelados da nortada ou queimados do Suão, sugam a última lentura da terra. Não, não se tratava de peregrinação de cavaleiros da Távola Redonda em demanda do Santo Graal nem desafio de magriços e seus companheiros para desagravo de damas... pelo caminho iam conversando: Quando chegares a Inglaterra, infante, receberás a garroteia, estou em crer... Cala-te, Álvaro Vaz, também terás a tua, como teu pai». In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «… de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?»

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O Rei de Marfim

«(…) Para onde mais podia ela ir, senão ali ficar na cela em que recolheu o último bafo da mãe?..., tudo aí começou. Tânger foi o descalabro de todos nós..., do cativeiro do infante, da morte prematura do rei na menoridade do filho, do rebentar dessa semente funesta da malquerença contra o regente meu pai..., porque não se cansava a tia Filipa de falar nisso?, ainda lhe doía a morte do pai, agora avivada pela da mãe?, raiva, ódio, desejo de vingança?..., que outra coisa havias tu e tua irmã de fazer senão afagar-lhe o ombro, abraçá-la, tomar-lhe as mãos, a consolá-la à tia Filipa, irmã de vossa mãe?..., nunca te haveria de esquecer o olhar dela molhado a erguer-se para ti, para Joana: devereis saber, meus sobrinhos..., e as palavras se lhe mergulhavam atrás a revolver no poço do tempo... bom monteiro e caçador, não há que ver, como todos os varões dessa família ..., eu sei, eu sei, minha senhora tia, intervinhas tu. Meu bisavô João até escreveu aquele livro ..., sim, e nosso avô Duarte, lembrava Joana, compôs também um outro ..., assim é. E este nosso avô Pedro ...

É isso, sim, meus sobrinhos, mas particularmente do que vosso avô Pedro mais gostava era de ocupar suas horas..., com que minúcia repartia cada tarefa, cada obrigação pelas horas do dia!..., deixa-me ver se adivinho, deixa ..., diz, meu sobrinho. Do que ele mais gostava era de ocupar suas horas metido na livraria ..., a estudar ..., completava tua irmã. E a verter do latim o livro dos ofícios de Marco Túlio Cicerão..., costumava dizer que cada livro era uma janela do universo, mas acrescentava pensativo: Mais se aprende dos costumes a índole dos homens do que pela leitura de grossos volumes, homem sábio, meu pai! Arrumado nas ideias e na acção, o cuidado que punha em mandar abrir valas para enxugar os pântanos do Mondego..., bom administrador de sua casa como dos negócios da república, conhecedor como poucos da arte da guerra, perito do regimento da corte..., que saudades as minhas! Quando ele aparecia à porta da câmara cansado do estudo, meus meninos, desembaraçava-me eu do colo da ama e corria a estender-lhe os braços para o alto, ele avançava no seu andar manso, dobrava-se, içava-me a beijar-me..., a mim, enquanto sentia aquela barba ruiva arranhar-me a cara, semelhava-me estar a ver do cimo da torre de um castelo a sala e as pessoas lá em baixo muito pequenas..., depois sentava-se..., quantas vezes o fazia, com os filhos em roda e a minha mãe ao lado, a recordar as suas viagens por essa Europa fora..., de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?, lá vai cavalgando em seu corcel de prata e de arreios de ouro, seguem-no atrás os doze companheiros, Cristo mai-los discípulos, como fantasmas caminham sobre as montadas tarrenego mafarrico, não parecem desta vida, bestas do apocalis a correr campos de turcos, ladeiam já as margens do termodonte no país das amazonas, atravessam desertos em cima de dromedários e chegam à Noruega onde os dias não luzem mais do que quatro horas, passam Babilónia, a província dos centauros, a terra dos alarves em que os filhos são sepultura dos pais, nas serranias da arménia vêem a arca de noé, por damasco descem à Terra Santa, ao Egipto, onde assistem ao suplício de um mouro que por ter dado uma bofetada num peregrino é empalado numa vara afiada que lhe saía pela boca..., visitam a região dos gigantes, dos homens com cabeça de cão, dos pigmeus que têm guerra com as aves... em Meca admiram, suspenso no ar por seis pedras imãs, o moimento de mafoma... e entram no paraíso terreal, que é banhado por quatro rios: do Tigre, que corre por território dos assírios, saem ramos de ciprestes e de oliveiras; das ondas do Eufrates erguem-se palmeirais agitados pelo vento; do Géon, que circunda o chão da Etiópia, surgem homens cor de bronze; do Físon, que rodeia a região de Hevilath, onde nasce o ouro e se encontra o Bdélio e a Cornalina, esvoaçam papagaios coloridos em seus ninhos pelas águas... » In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Dizem que a história se repete... O exílio..., o mal menor. E as prisões? E as torturas? E as mortes?... Quantos dos nossos ficaram pelo caminho às mãos dos algozes!...»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Quereis príncipes e reis?, voltava-se para trás o frade, já de saída. Pois tereis príncipes e reis. Ali, sob a loggia, escondendo-se atrás das colunas da arcada. Julgam que não os topo os filhos-da-mãe. Não me apanhareis descuidado, senhores espiões do embaixador de Espanha. Quando enviar as minhas cartas para a corte de França, para Roma, para a Holanda, saberei despistar-vos nos assaltos ao correio da posta, nas estações das mudas, nas estalagens das montanhas... Viste-los?, perguntou o cónego Rodrigues Costa. Vi. Não tenhais cuidado. Que ireis fazer? Com estes, nada para já. Com os do paço ducal, convocar a Veneza o empenho de reis e de príncipes, as pessoas dessa nobreza de Portugal que anda homiziada da sua terra... E tantos são!

Sabeis, Rodrigues Costa? Creio do fundo do coração que Portugal não há-de morrer pelos séculos fora. Mas pergunto-me muitas vezes se nos séculos vindouros ainda será necessário que os filhos da nossa terra tenham de procurar refúgio no exílio em terra estranha... Dizem que a história se repete... O exílio..., o mal menor. E as prisões? E as torturas? E as mortes?... Quantos dos nossos ficaram pelo caminho às mãos dos algozes!... E agora, pelos vistos, esse nosso rei dos ventos está preso... Isabel de Inglaterra não nos há-de negar valimento e Henrique quarto, que tem sido informado do que se passa por seu embaixador, mostra-se interessado no caso. Concitarei os bons ofícios do príncipe Maurício de Nassau..., e de seu cunhado, não esqueçais, casado com Emília de Nassau, princesa de Orange...

Dom Manuel de Portugal, eu sei, filho de el-rei dom António. Escrever-lhe-ei para o castelo de Wychen, na Haia, onde vivem com os filhos... E de Roma convocarei o irmão, o príncipe dom Cristóvão de Portugal, que logo comparecerá... Não omitais Paris. Sim, sim. Rogarei a dom João Castro, neto do vice-rei da Índia, que venha sem demora..., e ao grande valido e esmoler de el-rei de França, o padre doutor José Teixeira, protegido de Catarina de Médicis... Chiu! Calai-vos, que somos seguidos... macios passos no manto da névoa...

Saíra frei Estêvão mais o companheiro, ficou parado no meio da sala o juiz Marco Quirini, com o papel na mão, absorto. Depois, caminhou até à porta e, atrás do reposteiro, puxou o laço da campainha. Um mordomo apareceu. Os senhores juízes que se reúnam comigo. Vieram os juízes. Deu-lhes conta do rol dos sinais deixado por frei Estêvão. Poderemos, meus senhores, estar a cometer um estranho erro, por minha fé. Julgo prudente verificarmos nós os quatro se estes sinais conferem com o prisioneiro. E se conferirem? Que Deus nos perdoe! Teremos de expor imediatamente o assunto ao sereníssimo doge. Caminharam então até à cela onde se encontrava o prisioneiro e, cerrada a porta, ordenaram ao carcereiro que o despisse...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Trouxe-a de Portugal, onde, com muito trabalho e não pouco perigo de vida, a coligi de pessoas que muito bem o conheceram e fi-la autenticar por notário apostólico. Não podereis alegar que é falsa. Eu ainda nem vi o preso...»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Mostrei-lhe o rol dos sinais do corpo de el-rei por mim coligido. Concordou com eles, que o conhecera bem: Acrescentai a isso as cicatrizes que por certo trouxe da batalha. Quem o poderá contar? Só quem o viu depois disso. Quem? Os companheiros que com ele saíram do campo morreram todos. Mas sei de quem o viu de muleta, por mor de uma ferida na perna esquerda, a cabeça pensada de faixas sangrentas... Quem? O sapateiro Simão Gomes. Ah, o Simão! Contei-lhe o caso. Ele disse com ar triste: E andou el-rei por aí como pedinte, sofrendo privações.... sem que ninguém soubesse... Quis castigar-se a si mesmo. E agora padece prisão em terra estrangeira, acusado de mistificador... O maior perigo virá dos Castelhanos. Se o apanham, enviam-no para as galés..., ou para a forca... Queres dizer que, enquanto a Senhoria o tem preso, está seguro? Assim parece. Mas o que nós queremos é levá-lo para França, onde terá protecção.

Ficámos muito tempo a conversar pela noite dentro, depois da ceia. Recordámos amigos comuns que já se haviam libertado das leis da morte, o bom Sá Miranda, o Luís... Morreu na miséria, calcula... E tu, continuas a poetar? Nem por isso. Ando feito Títiro sub tegmine fagi. Estou a ver. Lentus in umbra ensinas aos trigais e às oliveiras o nome da tua formosa Amarílis.

Que fazemos agora?, perguntava Pantaleão Pessoa, nervoso, passeando de um a outro lado da sala. Mais numeroso o grupo. Haviam chegado a Veneza, trazidos pelo rumor, que frei Crisóstomo da Visitação se apressara a fazer chegar a toda a parte, frei Lourenço de Portugal, Frei Luís dos Anjos e outros. A Senhoria não nos deixa ver Sua Alteza e frei Estêvão demora a chegar... Se chegar, agoirou Nuno Costa. Viagem perigosa. Se os Espanhóis sabem do que foi buscar e lhe saltam à estrada... Os outros ficavam calados, indecisos, os olhos perdidos no tumulto dos pensamentos. Enquanto um vem a caminho e o outro está preso incomunicável, disse frei Crisóstomo, quereis ver como vai o mundo? O poder tiraniza, a riqueza arrebanha, a ambição lança o isco, a justiça, contra dever ter os olhos vendados, olha ao cliente, a virtude amolece, ensonsa-se, a traição atalaia-se, a volúpia só pensa em si...

Não dejejuastes bem, frei Crisóstomo?, perguntou o doutor Pimentel. A que vem a pergunta? Deu-vos a fraqueza para preparar sermão. Apontei apenas o que vejo à minha volta. Não fiz escólio nem aduzi a mais leve conclusão. Concluí vós. Abstracções. Concretizai vós. Onde digo poder, riqueza, ambição, justiça e o mais, podeis apor nomes conhecidos de todos nós. Mesmo para traição?, perguntou Nuno Costa. As diligências junto da Santa Sé, cortou Pimentel, de obtermos cartas para levar a Senhoria a libertar Sua Alteza não deram fruto. Que fazer então? Dizei-no-lo, frei Lourenço. Todos têm medo de Espanha. Até o papa. Se ao menos a Senhoria nos deixasse verificar a identidade do preso... Sim, porque nós não temos ainda a certeza. Eu pelo menos quero ver. Como São Tomé. Eu não tenho dúvidas, disse Pessoa. Acho que devíamos garantir à Senhoria que é el-rei em pessoa que ela tem em prisão.

Não, não, contestou vivamente frei Lourenço. Primeiro temos de ter a certeza e isso só pode conseguir-se assim que frei Estêvão chegue com o rol dos sinais de Sua Alteza. Frei Lourenço tem razão, disse frei Crisóstomo. Todo o resíduo de dúvida tem de ser apagado. Só então empenharemos na luta corpo e alma.

Desanimavam. A conversa morria. Dispersou-se a assembleia. Foi cada um à sua vida. Súbito, ia em Maio o ano de seiscentos, começaram de soprar outros ventos. Frei Estêvão, acompanhado do cónego Rodrigues Costa, chegava a Veneza. Era ver-lhe nos olhos a alegria ao mostrar aos companheiros a lista dos sinais: Com a firma de todos os declarantes e autenticada pelo notário Tomé Cruz. Liam-na, reliam-na, já dela citavam de memória partes. Correm à Senhoria, para procederem ao reconhecimento do preso. O juiz Marco Quirini é porta que se não pode transpor e o eco das preocupações e receios do doge. Quê!, irritava-se frei Estêvão. Para me entreterdes, mandaste-me a Portugal buscar os sinais do corpo de el-rei, sem mo terdes deixado ver... É que vós, os Portugueses, para vos libertardes dos Castelhanos, não hesitaríeis em dizer de um negro que seria o rei dom Sebastião, respondia o juiz rindo. Não riais, senhor, que isto é negócio muito sério... Desculpai. Não vos queria ofender. Agora que trouxe o rol dos sinais, confirmados por instrumentos autênticos de um notário apostólico, e vos peço me permitais ver Sua Alteza, negais-mo? A Senhoria... Asseguro-vos que honestamente vos demonstrarei a verdade ou a falsidade. Não quereis também vós conhecer uma ou outra? Temos tido sobre isso muitas disputas no senado e... Tomai, disse frei Estêvão estendendo um papel ao juiz. Que é? Tendes aqui a cópia da lista dos sinais de el-rei. Faço tanto empenho como vós em verificar se a pessoa aqui detida é el-rei ou não. Trouxe-a de Portugal, onde, com muito trabalho e não pouco perigo de vida, a coligi de pessoas que muito bem o conheceram e fi-la autenticar por notário apostólico. Não podereis alegar que é falsa. Eu ainda nem vi o preso...

A Senhoria é de parecer que não é conveniente saber se o preso é o rei ou não, sem primeiro ser solicitado por príncipes e reis. Frei Estêvão retirava-se desolado: O doge receia indispor-se com Filipe terceiro, não é? Marco Quirini encolhia os ombros». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Amistoso o encontro com dom Manuel de Portugal. Conhecíamo-nos da infeliz batalha de Alcântara. A quinta era mimosa, abeberada pelo rio, pingue de semeadura e olival. Fiz-me anunciar por um caseiro…»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Ai, padre! O coitadinho tinha a pilinha torta! Contou-me o meu querido Lopo, que lá morreu com el-rei... Quando no dia seguinte me deitei a caminho de Évora, de vez em quando dava comigo a rir sozinho por aquelas charnecas e planícies... Não, não! Não era do fugir das lebres que se levantavam à minha passagem e disparavam mato fora como doidas. Era porque, Deus me perdoe, me acudia à ideia a imagem de dona Gabriela, cheia de unção, a beijar a pilinha torta de um São Sebastião que tinha as feições de el-rei... Em Évora, junto à Sé, tal como me havia sido indicado, encontrei o sapateiro Simão Gomes, a cabeça nevada, arqueado sobre a banqueta de trabalho a ensebar umas botas e a cantar quase sem fôlego:

... do leão o seu bramido

demonstra que vai ferido

desse bom rei encoberto...

Levantou para mim os olhos quando assomei à porta da oficina. Continuais então a acreditar, mestre Simão..., disse-lhe como se o conhecesse desde sempre. Bom dia, padre. Sois forasteiro, embora desejeis inculcar o contrário. Como sabeis? Dom que tenho. Também sei que vindes de longe... Ora, Simão Gomes. Ide enganar outro que nanja a mim. Não tive foi o cuidado de sacudir o pó dos caminhos. Há outro pó que não se sacode, Reverendo, e vós sabeis disso muito bem. Vê-se no fundo das almas através dos olhos... Está bem, está bem. Deus vos abençoe. Guardai o vosso latim. Guardai vós o vosso, frei Ninguém... Estêvão Sampaio. ... frei Estêvão... Que desejais? Umas sandálias? Parece que sim, que preciso de umas. Sentai-vos aí. Media-me o pé, disse-lhe: Sei que fostes sapateiro de el-rei... É verdade. Há quantos agostos foi isso! Porque dizeis agostos?

Contas das minhas sovelas. Resolvi ir ao miolo do assunto: Venho de Lisboa, de acinte para vos falar, depois de ter estado com o barbeiro e o alfaiate de el-rei... Conheço. Das pessoas que particularmente o conheceram, ando a inquirir as marcas do corpo dele. Para terdes a certeza de que é ele, desta vez? Como te passa semelhante ideia pela cabeça? Desatou a dar lustro às botas e a cantar:

... de terra em terra andará muita gente

lhe há-de morrer...

E se fosse?, perguntei. Parou a função e olhou-me muito sério: É. Mestre Simão, confundis-me. Frei Estêvão Sampaio, não me confundis. Pus-me a rir: Desarmais-me com os vossos agostos e sovelas e cantigas tontas. Não são tontas..., e pôs-se de novo a cantar:

Ergue-se a águia imperial

com seus filhos pelo rabo

e com as unhas no cabo

faz o ninho em Portugal...

Deus te oiça, mestre. Falei de agostos? Pois ficai sabendo que foi naquele agosto maldito que lhe tirei a medida do pé pela última vez, como o fiz agora convosco... Em Agosto? Pois fostes com ele à batalha? Ficastes cativo? Vistes o que aconteceu a el-rei? Falai, homem. Pode ser muito importante o que estais a dizer..., e eu levantava-me assombrado. Credo, padre! Parece que vistes o diabo, Não, não fui com ele à batalha nem sei nada do que lhe aconteceu a não ser que um dia..., poucos dias andados depois da batalha. Aí a essa porta..., assomaram dois andarilhos, mendigos, romeiros ou lá que eram. Vinham chagados como de guerra. Traziam rotos os sapatos... Quando tirei a medida ao pé de um deles... Vede lá, padre, se eu não reconheceria aquele pé... Depois sumiu-se que nunca mais soube dele..., e vindes vós agora perguntar..., porque..., dizei-me, que vos serve agora inquirir sobre os sinais do corpo dele? Só vejo uma razão... Tentando ainda esconder-lhe o meu segredo, disse: Digamos que pretendo pintar o retrato de el-rei.

Ah, ah, ah! Disparate! Que colhestes do cirurgião-barbeiro? Que lhe falta um molar? Conheço a história. E do alfaiate? Que tem um braço maior do que o outro? Pretendeis pintar um bobo, de boca aberta e com a piça torta? E de mim que desejais? Que vos diga que ele, além do pé pequeno e dos dedos quase iguais, tinha o peito do pé alto e uma verruga no dedo mindinho do pé direito? Ides pintá-lo descalço?... Ora, ora, frei Estêvão! A maioria das pessoas lida cega, sem suspeitar que é guiada pelos astros. Eu leio nos astros e nas marcas que eles deixam nos olhos das pessoas como vós... Quereis ver? Dizei. Vós vindes de muito mais longe que de Lisboa..., de muito, muito longe... Onde é que ele está agora o meu senhor rei?... Fiquei calado, hesitante. Não quereis falar, vejo. Eu sei que é missão perigosa a que vos traz. Sois corajoso... Frei Estêvão Sampaio não descansa enquanto não vir restaurado o reino de Portugal...

Amistoso o encontro com dom Manuel de Portugal. Conhecíamo-nos da infeliz batalha de Alcântara. A quinta era mimosa, abeberada pelo rio, pingue de semeadura e olival. Fiz-me anunciar por um caseiro e daí a pouco lá vinham do lagar do azeite a limpar as mãos a um trapo os seus oitenta anos saudáveis: Estêvão Sampaio!

Meu caro Manuel! Que bom abraçar-te de novo! Com ele não havia guardar segredo. Ele próprio tinha o seu: Fora um dos portugueses a quem Marco Túlio havia entregado carta de el-rei... vai fazer um ano..., dizia». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Confirmava-me o que me dissera Sebastião Neto e sobretudo achei delicada a simplicidade e o respeito com que falava das intimidades de Sua Alteza como se o soberano fosse um Menino Jesus»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Sebastião Neto suspendeu os ameaçadores molinetes de tesoura em frente da minha cara e assumiu ar e voz confidenciais: Alguns eram tão secretos, tão íntimos que nem sei... Contai, contai..., tinha a pic…, ih, ih, ih..., tinha a pic…, torta que nem um arrocho... Ah! ... e sofria de fluxo de semente... Demais disso..., marcas por todo o corpo: num ombro, um sinal do tamanho de um vintém; na espalda direita, próximo da nuca, outro, negro, grande como uma unha; sardas ou lentilhas, pardas e ruças, no rosto, nas mãos..., mal se viam, quem não soubesse não dava por elas..., dedos e unhas alongados e aquele beiço, senhor, aquela beiça de baixo derribada da casa de Áustria, do avô Carlos, da avó Catarina, da mãe... Que mais vos poderei eu dizer?... Mas olhai. Nem a propósito. Aí vem entrando o alfaiate de el-rei. Eh, mestre Leonardo! Sejais bem aparecido! Ora muitas boas tardes. Então que há, mestre Sebastião? Contai aqui a Sua Reverência... Frei Estêvão Sampaio, para o servir, saudei. Deus salve Vossa Reverência. Então que me diz, mestre? Estávamos aqui a falar do nosso infeliz rei... Oh! Não me lembreis isso! Sua Reverência está empenhado em conhecer algumas particularidades do corpo de el-rei...

Mestre Sebastião Neto, atalhei, já me referiu algumas e... e lembrei-me de que vós, em vosso ofício, muita vez lhe tirastes as medidas... Conheço-as como ninguém, Reverência, como ninguém... E mestre Leonardo, puxando-se-lhe a língua, era vê-lo tagarelar... Já viram alfaiate talhar roupa mais torta? Se não fosse rei, ele lhas cantaria! O corpo tão curto das espaldas à cintura que o gibão dele não servia a outra pessoa, ainda que de semelhante estatura, mas da cintura aos joelhos, não queria lá ver?, muito longo, calções compridos, largos..., e, para cúmulo, o braço direito mais comprido que o esquerdo, a perna direita... Eu não dizia?, clique clique clique... também..., de maneiras que coxeava sem que se notasse, porque disfarçava... e, ainda por cima, ambas curvas como de quem anda habitualmente a cavalo... Tortura de alfaiate! Obrigado a fazer vestuário tão desazado! Quantas vezes tive de calar as fungadelas das minhas costureiras!... Preciosas são as vossas informações, mestre Leonardo, e também as de mestre Sebastião, disse eu levantando-me para sair, retirava-me o barbeiro a toalha e sacudia-me da batina algum cabelo caído.

Em que mais poderei servir Vossa Reverência?, perguntava. Sabereis porventura onde mora Lopo Soares, que foi camareiro de el-rei? Sebastião Neto ia a responder, mas o alfaiate, que presumia de gracioso, adiantou-se: Eu sei. Mora em Alcácer. Em Alcácer do Sal? Em Alcácer Quibir. Foi com el-rei e com el-rei morreu. Apodreceu.

Morreu, sim, confirmou o barbeiro contristado, ou por lá ficou cativo que nunca mais ninguém o viu, nem a viúva, que por muito tempo o chorou e se conserva inconsolável ao cabo dos anos... E eu poderei falar com a viúva? Não precisa Vossa Reverência de ir muito longe. Aí adiante, na rua dos Carapuceiros, basta perguntar por dona Gabriela, toda a gente lhe diz. Obrigado. E já agora... Dizei. E dom Manuel de Portugal? Conheço muito bem, respondeu o alfaiate. Filho do senhor dom Francisco, primeiro conde de Vimioso, poeta... Há vinte anos, ajudava o barbeiro, tomou partido por dom António... Por isso o rei Filipe não o incluiu no rol dos amnistiados... Exilado?, perguntei. Não. Dada a qualidade de sua pessoa, permitiram-lhe que vivesse em Portugal. Onde? Ainda há dias estive nos paços de Sua Senhoria, disse o alfaiate, a tirar-lhe as medidas para umas vestes novas. Aquilo é que são uns oitenta anos joviais! O segundo casamento, com uma formosa senhora muito mais nova... Dona Maria Mendoça, disse o barbeiro, dos Cortes Reais... remoçou-o, oh se remoçou!... Tem por ela uma tão grande paixão! Mandou pintar um retábulo da Natividade, contou-me ele, para a igreja de Machede. Sabeis cujo é o rosto de Nossa Senhora? Isso mesmo. Da linda dona Maria, morgada de Val de Palma. Então sabeis onde é o seu paço. Perto das portas de Santo Antão. Mas ele não está cá. Mas vós dissestes... Veio cá para me encomendar a roupa e falar comigo... saber novidades do que por aí vai... Digamos que eu sou o seu..., mas cala-te boca, já estou a falar de mais... Então onde vive? Partiu com a sua senhora para a quinta de Val de Palma. Onde fica? A algumas léguas de Évora, na margem do Degebe.

Irei lá, que também desejo procurar em Évora um tal Simão Gomes, antigo sapateiro de el-rei. O Senhor vos acompanhe. Não me foi difícil encontrar dona Gabriela na rua dos Carapuceiros. Vivia numa casinha térrea muito asseada. Quando lhe bati à porta, vinha ela de chave na mão chegada da igreja. Dona Gabriela?, perguntei. Sim, sou eu. Vossa Reverência quer falar comigo? Já que não posso falar com seu marido que Nosso Senhor tenha em sua glória... Amém, suspirou a viúva, abrindo a porta. Disse-lhe o que pretendia e daí a pouco ela contava-me do que ouvira contar ao marido sobre as marcas do corpo de el-rei. Confirmava-me o que me dissera Sebastião Neto e sobretudo achei delicada a simplicidade e o respeito com que falava das intimidades de Sua Alteza como se o soberano fosse um Menino Jesus.» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

domingo, 25 de dezembro de 2022

Levantado do Chão. José Saramago. «Boas razões são as dela, mas Domingos Mau-Tempo não gostou de ser chamado pela mulher à frente de homens, o que é que vão pensar, e enquanto atravessa o largo vai ralhando…»

jdact e Cortesia de wikipedia

«(…) Em frente deles, muito distante, um clarão iluminou as nuvens, ninguém adivinharia que estavam tão baixas. Depois, a pausa, e enfim o atroar surdo do trovão. Só faltava isto. Disse a mulher, Valha-nos Santa Bárbara, mas a trovoada, se não era um resto da que por muito longe andara, parecia seguir outro rumo ou Santa Bárbara aqui invocada a espantara para lugares de menos fé. Estavam já na estrada, sabiam-no porque era mais largo caminho, que outras diferenças só com grande paciência e luz de dia se encontrariam, de buracos e lama vinham, sobre buracos e lama andavam, e agora, tão escuro fazia, nem se podia ver onde os pés pousavam. O burro avançava por instinto, acompanhando o valado. Homem e mulher patinhavam atrás. Lá de vez em quando, o homem dava uma corrida meio às cegas, se a estrada fazia uma curva, para adivinhar São Cristóvão. E foi quando entre a escuridão alvejaram os primeiros muros, que a chuva, de súbito, parou, tão bruscamente que mal se aperceberam.

Chovia, e deixara de chover. Como se um grande telheiro se estendesse sobre a estrada. Está bem que a mulher pergunte, Onde é a nossa casa, são ansiedades de quem já lhe tarda tratar de um filho e, podendo ser, colocar os móveis em seus sítios, antes de na cama estender o corpo cansado. E o homem responde, Do outro lado. Estão todas as portas fechadas, só por algumas frinchas de luz mortiça se tem notícia de habitantes. Num quintal qualquer ladrou um cão. É o costume, há sempre um cão que ladra quando passa alguém, e os outros, que talvez confiados estivessem, pegam na palavra da sentinela e cada qual de cão faz sua obrigação. Um postigo foi aberto e logo fechado. E agora que a chuva parara e a casa está perto, melhor houve de sentir-se este vento frio que correu toda a rua, se engolfou pelas pequenas travessas laterais, sacudiu ramadas que passavam acima dos telhados baixos. A noite, efeito do vento, ficou mais clara. A grande nuvem afastava-se e agora o céu luzia aqui e além. Já não chove, disse a mulher ao filho que dormia e era, dos quatro, o único que ainda não sabia a boa notícia.

Havia um largo, umas árvores que ramalhavam, bruscas. O homem parou a carroça, disse à mulher, Espera aí, e atravessou por baixo das árvores, na direcção duma porta iluminada. Era uma taberna e lá dentro estavam três homens sentados num escano, outro a beber ao balcão, segurando o copo entre o polegar e o indicador, assim como se estivesse parado para um retrato. E atrás do balcão um velho magro, seco, virou os olhos para a porta, era o homem da carroça que entrava e dizia, Boas noites a toda a companhia, esta é a saudação de quem chega e quer amizade de quantos sejam, por fraternidade ou interesse de negócio, Venho viver aqui em São Cristóvão, chamo-me Domingos Mau-Tempo e sou sapateiro. Disse um dos homens sentados sua graça, Mau tempo trouxe vossemecê, e o outro que bebia estava no fim do copo, deu um estalo com a língua e acompanhou, Não traga ele más solas, e os mais riram porque havia de quê e a propósito. Não seriam palavras de mal querer ou mal receber, é noite em São Cristóvão, todas as portas estão fechadas, e se chega um estranho que tem nome de Mau-Tempo, só um tolo não aproveita, demais tendo chovido. Domingos Mau-Tempo juntou aos risos um sorriso de pouca vontade, mas enfim. Valeu abrir o velho uma gaveta e tirar de lá uma chave grande, Tem aqui a chave, já estava a cuidar que não viesse, estão todos a olhar para Domingos Mau-Tempo, a avaliar o novo vizinho, um sapateiro faz sempre arranjo e São Cristóvão estava precisado. Deu Domingos Mau-Tempo sua explicação, É longe de Monte Lavre aqui, choveu-me no caminho, enfim não teria que dar contas da sua vida, mas convém-lhe a simpatia e então diz, Pago um copo a todos, é uma boa e sabida maneira de chegar aos bolsos do coração. Levantam-se os que estavam sentados, assistem ao encher dos copos, é uma cerimónia, e depois, sem precipitação, toma cada qual o seu, num gesto lento e cuidadoso, isto é vinho, não é aguardente que se atire para a goela. Beba também o meu senhorio, diz Domingos Mau-Tempo, e o velho responde, À sua saúde, meu inquilino, é um taberneiro sabedor dos usos sociais das grandes vilas. E estão nestas contumélias quando a mulher se chega à porta, não entra, a taberna é sítio para homens, e diz brandamente, conforme o seu costume, Domingos, o menino está inquieto, e as coisas, tudo molhado, tem que se descarregar.

Boas razões são as dela, mas Domingos Mau-Tempo não gostou de ser chamado pela mulher à frente de homens, o que é que vão pensar, e enquanto atravessa o largo vai ralhando, Se tornas a fazer isto, zango-me. Não respondeu a mulher, ocupada a sossegar o menino. A carroça seguia à frente, aos solavancos, devagar. O burro, com o frio, entorpecera. Meteram por uma travessa onde as casas alternavam com quintais, e parou diante de um casinhoto baixo. É aqui, perguntou a mulher, e o marido respondeu, É. Com a grande chave, Domingos Mau-Tempo abriu a porta. Para entrar, tiveram de curvar-se, isto não é nenhum palácio de altos portões. A casa não tinha janela. À esquerda era a chaminé, de lareira rente ao chão. Domingos Mau-Tempo petiscou lume, soprou um punhado de palha e pôs-se a girar o fugaz archote para que a mulher visse a nova habitação. Havia lenha ao canto da chaminé. Isso bastava. Em poucos minutos, a mulher deitou o filho a um canto, juntou gravetos e achas, e o lume estalou, abriu-se sobre a parede de cal. A casa então ficou habitada. Pela cancela do quintal, Domingos Mau-Tempo fez entrar o burro e a carroça e começou a descarregar a mobília, a metê-la para dentro de casa, sem arrumar, até que a mulher pôde ir ajudá-lo. O enxergão estava molhado de um lado. A água entrara na arca da roupa, a mesa da cozinha tinha uma perna partida. Mas havia uma panela ao lume com umas folhas de couve e uns bagos de arroz, o menino tornara a mamar e adormecera no lado seco do enxergão. Domingos Mau-Tempo foi ao quintal para uma necessidade. E no meio da casa, Sara da Conceição, mulher de Domingos, mãe de João, ficou atenta, olhando o lume, como quem espera que um recado mal entendido se repita. No seu ventre houve um pequeno movimento. E outro ainda. Mas quando o marido entrou, não lhe disse nada. Tinham mais em que pensar». In José Saramago, Levantado do Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT

 JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,

sábado, 24 de dezembro de 2022

Levantado do Chão. José Saramago. «A noite precipitava-se, vinha depressa. A poente apenas havia uma última luz baça que enfim se avermelhava, e ainda lá estava já se apagara, tornou-se a terra como um poço negro…»

jdact e Cortesia de wikipedia

«(…) Debaixo da azinheira, o homem abria gestos grandes de braços, impaciente, bem se vê que não sabe o que é trazer um filho ao colo, melhor fará cuidando de esticar as cordas, que com este correr certamente se deslaçaram os nós ou escorregaram os móveis, era o que faltava partir-se o pouco que temos. Debaixo da árvore chove menos, mas caem grossos pingos das folhas, nem isto é copa de laranjeira, estes enormes e desgarrados braços, é como estar sob um alpendre todo esburacado, não sabe uma pessoa onde pôr-se, e ainda bem que a criança começou a chorar, sempre é um trabalho mais urgente, desapertar a blusa, dar-lhe o peito já de pouco leite, pouco mais do que o engano da boca. Cortou-se-lhe o choro em meio e à boa paz ali estiveram mãe e filho, envolvidos no largo rumor da chuva, enquanto o pai dava volta à carroça desfazendo e tornando a fazer os nós, fincando o joelho nos taipais para puxar as cordas, enquanto o burro, alheado, sacudia as orelhas com força e olhava as poças de água e o enxurro do caminho. Então o homem disse, Quase a chegarmos, e logo veio esta chuva, foram palavras de zanga mansa, lançadas com desprazer mas sem esperança, não será por me enfadar a mim que a chuva irá parar, é um dito do narrador, que bem se dispensava. Atenda-se antes ao movimento do pai, que enfim pergunta, E o menino, e se aproxima, espreita sob a dobra do xale, são liberdades de marido, mas tão depressa a mulher de recato se tapou, que ele não pôde saber se realmente quisera ver o filho, ou o seio exposto. Porém, distinguira, na tépida penumbra, na cheirosa mornidão das roupas amarrotadas, fitando-o lá daquele dentro íntimo, o olhar muito azul do filho, insólita luz clara que do berço costumava fitá-lo, transparente e severa, como alguém que exilado se sentisse entre olhos escuros, castanhos, em que família vim nascer.

A nuvem grossa desmanchara-se um pouco, quebrara-se o primeiro ímpeto da chuva. O homem saiu ao caminho, interrogou os ares, virou-se aos quatro pontos cardiais, e disse à mulher, Temos de ir, não podemos ficar aqui até à noite. E a mulher respondeu, Vamos. Puxou o bico do peito à boca do filho, a criança sugou em falso, pareceu que ia chorar, mas não, esfregou a cara no seio já recolhido e, suspirando, adormeceu. Era um menino sossegado, de bom feitio, amigo da sua mãe.

Agora iam juntos, calhados com a chuva, tão molhados que nem mesmo um palheiro confortável os faria parar, só em casa. A noite precipitava-se, vinha depressa. A poente apenas havia uma última luz baça que enfim se avermelhava, e ainda lá estava já se apagara, tornou-se a terra como um poço negro, silenciosa e cheia de ecos, como é grande o mundo nesta hora do anoitecer. O ranger das rodas ouviu-se melhor, a respiração do animal, sacudida, era tão inesperada como um segredo subitamente dito em voz alta, e até o roçar das roupas molhadas parecia uma conversação seguida, murmurada, sem pausas, um falar de boa companhia. Em todas aquelas léguas ao redor, não se via uma luz. A mulher persignou-se, fez o sinal da cruz sobre o rosto do filho. A estas horas é melhor que se defenda o corpo e se proteja a alma, começam a vir aos caminhos as assombrações, passam num remoinho ou sentam-se numa pedra à espera do viajante a quem farão as três perguntas para que não há resposta, quem és, donde vens, para onde vais. O homem que segue ao lado da carroça gostaria de cantar, mas não pode, todo o esforço se lhe gasta em fingir que não o assusta a noite. Já falta pouco, disse, chegando à estrada, é tudo a direito e melhor caminho». In José Saramago, Levantado do Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.

 Cortesia de ECaminho/JDACT

JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita, 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… Paio Soares (e também com o teimoso segredo deste sobre a relíquia), dona Teresa estava relutante em dar-lhe mais benesses, e o príncipe defendera que, sem provas da sua lealdade, era prematuro encontrar-lhe esposa»


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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Os casamentos são as famílias que os decidem, não os filhos ou as filhas! Sempre foi assim e sempre assim será. Eu também não decidi casar com meu marido, foi ordem de meu pai e aceitei. Chamoa e Maria olharam para ela com um silêncio respeitoso, e na cara de Gomes Nunes Pombeiro surgiu finalmente um sorriso esperançado, quando a sua esposa prosseguiu com convicção naquele caminho, que se afigurava bem mais seguro. Quando nos escolhem noivo, não o amamos. Muitas vezes, nem sequer o conhecemos! Mas isso não é o mais importante, o fundamental é ter filhos, tratar das terras, preservar a família. O encantamento e o amor são bonitos, mas não duram uma vida, como um casamento religioso! Para surpresa das filhas, Elvira continuou: Além disso, mesmo casados, podemos ter amigos, desde que ninguém saiba.

As filhas ficaram chocadas com aquelas ousadias. Ao vê-las assim, Elvira enxofrou-se, indignada. Achais que os maridos são fiéis às esposas? Nem o vosso pai! Gomes Nunes Pombeiro baixou os olhos, envergonhado, e a sua cônjuge, indo ainda mais longe, confessou um antigo pecadilho: Também eu já me amiguei. Irritado, o seu marido criticou-a: Elvira, não tendes de o dizer! Olhai que ainda perco a paciência! A sua esposa encolheu os ombros, e suspirou. Vivemos tempos de perdição, alguns afirmam que estamos pior do que os romanos. Por isso vos digo, minha filha, não vos incomodeis. Podereis ver o príncipe em segredo. Sim, tereis filhos do Paio Soares, se ele os conseguir gerar, mas podereis tê-los também do príncipe, que vosso marido nem vai dar por isso! Os homens são uns palermas. Gomes Nunes Pombeiro franziu o sobrolho, incomodado, e preparava-se para contestar a mulher, mas esta antecipou-se: Já vos jurei que Maria e Chamoa são vossas filhas!

Chamoa soube que, a partir daquela hora, o seu destino estava traçado. Os pais haviam decidido casá-la com Paio Soares e, embora a possibilidade de encontros furtivos com o príncipe estivesse aberta, com a bênção deles, ao longo da noite a sua dor persistiu e voltou a uivar, o que levaria alguns populares de Viseu a baptizarem-na de Loba, em homenagem àqueles sons e aos rumores que corriam sobre a tarde passada com o príncipe. A seu lado e até a madrugada nascer, só ficou a minha Maria Gomes, de rosário na mão, dividida entre a piedade que sentia pela irmã e a clara noção da sua própria sorte. Pobre Chamoa. Eu, pelo menos, amo o Lourenço. Era assim que pensava a minha mulher, e tinha razão em fazê-lo. Trair um amor tão intenso é sempre muito perigoso, como o futuro se encarregou de mostrar.

O meu melhor amigo contou-me que, na véspera destes acontecimentos, ao final da tarde, se dirigira a casa da mãe e haviam conversado em segredo. Ele revelara o encontro com Chamoa e o desejo de casarem. Ainda desiludida com o amuo forçado de Paio Soares (e também com o teimoso segredo deste sobre a relíquia), dona Teresa estava relutante em dar-lhe mais benesses, e o príncipe defendera que, sem provas da sua lealdade, era prematuro encontrar-lhe esposa.

Dias depois, quando falámos sobre isto, viríamos a concluir que a rainha enganou o próprio filho. Aterrara-se quando Afonso Henriques justificou o casamento com Chamoa como a verdadeira união da Galiza com Portugal. Mas, naquele momento de rara concordância e até com um vislumbre de afecto, a ardilosa mãe prometera cancelar o anúncio de casamento de Paio Soares, enquanto o filho adiava a declaração pública de amor a Chamoa, para não ofender o rico-homem da Maia. O encontro de sábado terminara assim, cordial e respeitoso, mas o anúncio de Domingo de Páscoa revelara-se uma violenta negação desse acordo. Sem sequer avisar o filho, dona Teresa praticara o oposto do que prometera um dia antes! A fúria do príncipe, contida no início, crescera como uma tempestade destemperada, enquanto se refugiara o resto da tarde, silencioso e solitário, no seu quarto, ouvindo ao longe os uivos da sua amada. Quando a noite caiu sobre Viseu, vi-o atravessar o pátio em passadas largas e entrar pela casa de dona Teresa, subindo aos seus aposentos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «A intensa crença que a habitava era deveras emocionante, mas a sua fantasia política, fundamentada numa paixão amorosa de dois jovens, embora talvez sedutora num futuro não demasiado distante…»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Preocupado, revelou a degradação a que chegara o seu relacionamento com Afonso Raimundes. O futuro rei Afonso VII ameaçara invadir as terras de Toronho, e a única forma de a família lhe resistir era colocar-se sob a protecção de dona Teresa. Ora, explicou Gomes Nunes, casando Maria com Lourenço Viegas, e Chamoa com Paio Soares, a casa de Toronho ficava defendida, pois Afonso VII não iria atacar um homem que seria, em simultâneo, sogro do mordomo-mor de dona Teresa e do filho varão de Egas Moniz. É a nossa salvação, minha filha querida!, exclamou. Indignada, Chamoa gritou: Paio Soares não mandará nada, quem manda é meu tio Fernão!

Nesse momento, Elvira Peres Trava interveio: O vosso casamento foi ideia de meu irmão Fernão! Ele quer ver dona Teresa como rainha de uma Galiza unida ao Condado. E nós temos de apoiá-los, senão só nos resta a desgraça. Chamoa nunca pensara que o seu matrimónio era a principal forma de defender os interesses da família, mas ao dar-se conta dessa possibilidade teve um rasgo de lucidez. Se assim era, um casamento com o príncipe servia às mil maravilhas! Só que, para apresentar aos pais a sua fabulosa ideia, teria de revelar a verdade que habitava o seu coração. Olhou para a irmã, buscando um incentivo. Sempre calma, Maria Gomes encorajou-a: Chamoa, é o momento de falares. Elvira Peres Trava examinou as filhas, intrigada, e Gomes Nunes murmurou que era tarde para desejar alterações. Desesperada, Chamoa interrompeu-o e gritou: Pai: eu e o príncipe somos amigos! Estamos enamorados e queremos casar-nos! Cheio de dúvidas, Gomes Nunes exclamou: Ora, só se conhecem há dois dias! Chamoa mudou de expressão num instante. Desapareceu do seu rosto o sofrimento e nasceu-lhe um sorriso, quando afirmou: No sábado, fomos passear junto ao rio da Loba e... Elvira abriu ainda mais os olhos, e Gomes Nunes perguntou: Haveis perdido a virgindade? A filha relatou que só tinham trocado beijos, mas haviam-se prometido em casamento. Depois de recuperar do choque, Gomes Nunes repetiu que teria de seguir as ordens da rainha e do Trava. Todavia, ao ouvir o nome de família da mãe, Chamoa empolgou-se: Eu também sou uma Trava!

Cerrando os olhos, enervada, a mãe ripostou-lhe: Por isso mesmo, tendes de fazer o que o Fernão vos manda! Chocada com tal obrigação, Chamoa exclamou: O príncipe está acima dele! Vai ser o herdeiro do Condado, a sua vontade é lei! Se quer casar comigo, ninguém o pode impedir! Gomes Nunes Pombeiro olhou-a com um misto de orgulho e pena. Depois, sentou-se num banco, desapontado e cansado. O príncipe, casar-se convosco? Não creio. Um dia vai casar-se com uma princesa estrangeira. Não com uma nobre galega! De súbito, Chamoa lembrou-se do que lhe dissera Afonso Henriques, sobre a união dos territórios! Perguntou com veemência: Não quer dona Teresa unir a Galiza e Portugal? E que melhor forma do que casando uma Trava com Afonso Henriques?

A intensa crença que a habitava era deveras emocionante, mas a sua fantasia política, fundamentada numa paixão amorosa de dois jovens, embora talvez sedutora num futuro não demasiado distante, parecia a seu pai impraticável no presente. Gomes Nunes Pombeiro suspirou mais uma vez. Dona Teresa e Fernão Peres querem ser o casal que une o Condado Portucalense e a Galiza, não querem que seja o príncipe a fazê-lo! Ao ouvi-lo, Chamoa desdenhou do pouco ortodoxo casal régio. Querem é ter um filho varão, para passar a perna ao príncipe! Desagradada com aquelas perigosas intrigas políticas contra seu irmão, Elvira Peres Trava invocou um costume antigo, a autoridade dos pais sobre os filhos nas decisões matrimoniais». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

Ensaio Sobre a Cegueira. José Saramago. «… o remorso causado por um mal feito se confunde frequentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido»

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«(…) Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois roubou o carro não tinha em mira, nesse momento preciso, qualquer intenção malévola, muito pelo contrário, o que ele fez não foi mais que obedecer àqueles sentimentos de generosidade e altruísmo que são, como toda a gente sabe, duas das melhores características do género humano, podendo ser encontradas até em criminosos bem mais empedernidos do que este, simples ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre. No fim das contas, estas ou as outras, não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e tatebitate com o olho posto na herança. Foi só quando já estava perto da casa do cego que a ideia se lhe apresentou com toda a naturalidade, exactamente, assim se pode dizer, como se tivesse decidido comprar um bilhete de lotaria só por ter visto o cauteleiro, não teve nenhum palpite, comprou a ver o que dali saía, conformado de antemão com o que a volúvel fortuna lhe trouxesse, algo ou coisa nenhuma, outros diriam que agiu segundo um reflexo condicionado da sua personalidade. Os cépticos acerca da natureza humana, que são muitos e teimosos, vêm sustentando que se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é certo que o ajuda muito.

Quanto a nós, permitir-nos-emos pensar que se o cego tivesse aceitado o segundo oferecimento do afinal falso samaritano, naquele derradeiro instante em que a bondade nada poderia ter prevalecido referimo-nos o oferecimento de lhe ficar a fazer companhia enquanto a mulher não chegasse quem sabe se o efeito da responsabilidade moral resultante da confiança assim outorgada não teria inibido a tentação criminosa e feito vir ao de cima o que de luminoso e nobre sempre será possível encontrar mesmo nas almas mais perdidas. Plebeiamente concluindo como não se cansa de ensinar-nos o provérbio antigo, o cego, julgando que se benzia, partiu o nariz.

A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isto, que é geral, a circunstância particular de que, em espíritos simples, o remorso causado por um mal feito se confunde frequentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido.

Não será possível, portanto, neste caso, deslindar que parte dos medos e que parte da consciência afligida começaram a apoquentar o ladrão assim que pôs o carro em marcha. Sem dúvida nunca poderia ser tranquilizador ir sentado no lugar de alguém que segurava com as mãos este mesmo volante no momento em que cegou, que olhou através deste pára-brisas e de repente ficou sem ver, não é preciso ser-se dotado de muita imaginação para que tais pensamentos façam acordar a imunda e rastejante besta do pavor, aí está ela já a levantar a cabeça. Mas era também o remorso, expressão agravada duma consciência, como antes foi dito, ou, se quisermos descrevê-lo em termos sugestivos, uma consciência com dentes para morder, que estava a pôr-lhe diante dos olhos a imagem desamparada do cego quando fechava a porta, Não é preciso, não é preciso, dissera o coitado, e daí para o futuro não seria capaz de dar um passo sem ajuda». In José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, Editorial Caminho, 1995, ISBN 972-211-021-7.

 

Cortesia de ECaminho/JDACT


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