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e Cortesia de wikipedia
«(…) Em
frente deles, muito distante, um clarão iluminou as nuvens, ninguém adivinharia
que estavam tão baixas. Depois, a pausa, e enfim o atroar surdo do trovão. Só
faltava isto. Disse a mulher, Valha-nos Santa Bárbara, mas a trovoada, se não
era um resto da que por muito longe andara, parecia seguir outro rumo ou Santa
Bárbara aqui invocada a espantara para lugares de menos fé. Estavam já na
estrada, sabiam-no porque era mais largo caminho, que outras diferenças só com
grande paciência e luz de dia se encontrariam, de buracos e lama vinham, sobre
buracos e lama andavam, e agora, tão escuro fazia, nem se podia ver onde os pés
pousavam. O burro avançava por instinto, acompanhando o valado. Homem e mulher patinhavam
atrás. Lá de vez em quando, o homem dava uma corrida meio às cegas, se a
estrada fazia uma curva, para adivinhar São Cristóvão. E foi quando entre a
escuridão alvejaram os primeiros muros, que a chuva, de súbito, parou, tão
bruscamente que mal se aperceberam.
Chovia, e deixara de chover. Como
se um grande telheiro se estendesse sobre a estrada. Está bem que a mulher
pergunte, Onde é a nossa casa, são ansiedades de quem já lhe tarda tratar de um
filho e, podendo ser, colocar os móveis em seus sítios, antes de na cama
estender o corpo cansado. E o homem responde, Do outro lado. Estão todas as portas
fechadas, só por algumas frinchas de luz mortiça se tem notícia de habitantes.
Num quintal qualquer ladrou um cão. É o costume, há sempre um cão que ladra
quando passa alguém, e os outros, que talvez confiados estivessem, pegam na
palavra da sentinela e cada qual de cão faz sua obrigação. Um postigo foi aberto
e logo fechado. E agora que a chuva parara e a casa está perto, melhor houve de
sentir-se este vento frio que correu toda a rua, se engolfou pelas pequenas
travessas laterais, sacudiu ramadas que passavam acima dos telhados baixos. A
noite, efeito do vento, ficou mais clara. A grande nuvem afastava-se e agora o
céu luzia aqui e além. Já não chove, disse a mulher ao filho que dormia e era,
dos quatro, o único que ainda não sabia a boa notícia.
Havia um largo, umas árvores que
ramalhavam, bruscas. O homem parou a carroça, disse à mulher, Espera aí, e
atravessou por baixo das árvores, na direcção duma porta iluminada. Era uma
taberna e lá dentro estavam três homens sentados num escano, outro a beber ao
balcão, segurando o copo entre o polegar e o indicador, assim como se estivesse
parado para um retrato. E atrás do balcão um velho magro, seco, virou os olhos
para a porta, era o homem da carroça que entrava e dizia, Boas noites a toda a
companhia, esta é a saudação de quem chega e quer amizade de quantos sejam, por
fraternidade ou interesse de negócio, Venho viver aqui em São Cristóvão,
chamo-me Domingos Mau-Tempo e sou sapateiro. Disse um dos homens sentados sua graça,
Mau tempo trouxe vossemecê, e o outro que bebia estava no fim do copo, deu um
estalo com a língua e acompanhou, Não traga ele más solas, e os mais riram
porque havia de quê e a propósito. Não seriam palavras de mal querer ou mal
receber, é noite em São Cristóvão, todas as portas estão fechadas, e se chega
um estranho que tem nome de Mau-Tempo, só um tolo não aproveita, demais tendo
chovido. Domingos Mau-Tempo juntou aos risos um sorriso de pouca vontade, mas
enfim. Valeu abrir o velho uma gaveta e tirar de lá uma chave grande, Tem aqui
a chave, já estava a cuidar que não viesse, estão todos a olhar para Domingos
Mau-Tempo, a avaliar o novo vizinho, um sapateiro faz sempre arranjo e São
Cristóvão estava precisado. Deu Domingos Mau-Tempo sua explicação, É longe de
Monte Lavre aqui, choveu-me no caminho, enfim não teria que dar contas da sua
vida, mas convém-lhe a simpatia e então diz, Pago um copo a todos, é uma boa e
sabida maneira de chegar aos bolsos do coração. Levantam-se os que estavam
sentados, assistem ao encher dos copos, é uma cerimónia, e depois, sem
precipitação, toma cada qual o seu, num gesto lento e cuidadoso, isto é vinho,
não é aguardente que se atire para a goela. Beba também o meu senhorio, diz
Domingos Mau-Tempo, e o velho responde, À sua saúde, meu inquilino, é um
taberneiro sabedor dos usos sociais das grandes vilas. E estão nestas
contumélias quando a mulher se chega à porta, não entra, a taberna é sítio para
homens, e diz brandamente, conforme o seu costume, Domingos, o menino está
inquieto, e as coisas, tudo molhado, tem que se descarregar.
Boas razões são as dela, mas
Domingos Mau-Tempo não gostou de ser chamado pela mulher à frente de homens, o
que é que vão pensar, e enquanto atravessa o largo vai ralhando, Se tornas a fazer
isto, zango-me. Não respondeu a mulher, ocupada a sossegar o menino. A carroça
seguia à frente, aos solavancos, devagar. O burro, com o frio, entorpecera.
Meteram por uma travessa onde as casas alternavam com quintais, e parou diante
de um casinhoto baixo. É aqui, perguntou a mulher, e o marido respondeu, É. Com
a grande chave, Domingos Mau-Tempo abriu a porta. Para entrar, tiveram de
curvar-se, isto não é nenhum palácio de altos portões. A casa não tinha janela.
À esquerda era a chaminé, de lareira rente ao chão. Domingos Mau-Tempo petiscou
lume, soprou um punhado de palha e pôs-se a girar o fugaz archote para que a
mulher visse a nova habitação. Havia lenha ao canto da chaminé. Isso bastava.
Em poucos minutos, a mulher deitou o filho a um canto, juntou gravetos e achas,
e o lume estalou, abriu-se sobre a parede de cal. A casa então ficou habitada. Pela
cancela do quintal, Domingos Mau-Tempo fez entrar o burro e a carroça e começou
a descarregar a mobília, a metê-la para dentro de casa, sem arrumar, até que a
mulher pôde ir ajudá-lo. O enxergão estava molhado de um lado. A água entrara
na arca da roupa, a mesa da cozinha tinha uma perna partida. Mas havia uma
panela ao lume com umas folhas de couve e uns bagos de arroz, o menino tornara
a mamar e adormecera no lado seco do enxergão. Domingos Mau-Tempo foi ao
quintal para uma necessidade. E no meio da casa, Sara da Conceição, mulher de
Domingos, mãe de João, ficou atenta, olhando o lume, como quem espera que um
recado mal entendido se repita. No seu ventre houve um pequeno movimento. E
outro ainda. Mas quando o marido entrou, não lhe disse nada. Tinham mais em que
pensar». In José Saramago, Levantado do Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN
978-972-212-236-8.
Cortesia
de ECaminho/JDACT
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José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,