De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Tentações do Demónio
«(…) O Marão não é a aguda fraga,
o penhasco vertiginoso, o desafio para alpinistas. Já foi dito que é uma casa,
e as casas são para os homens morarem nelas. A estas alturas toda a gente pode
subir. Poderá? Os montes sucedem-se, tapam o horizonte, ou rasgam-no para outro
monte ainda maior, e são redondos, enormes dorsos de animais deitados ao sol e
para sempre imóveis. Nos fundos vales ouve-se o cachoar da água, e das encostas,
por todos os lados, escorrem torrentes que depois acompanham a estrada à
procura de uma saída para o nível abaixo, de patamar em patamar, até caírem de
alto ou mansamente desaguarem na corrente principal que é apenas afluente de
afluente, águas que tanto podem ir dar ao Corgo, que ficou lá para trás, como
ao Douro, muito para sul, como ao Tâmega, que espera o viajante.
E há as florestas. Torna o
viajante a dizer-se afortunado por estar viajando no Outono. Não se descreve
uma árvore. Como se há-de descrever uma floresta? Quando o viajante olha a
encosta do monte fronteiro, o que vê é os altos fustes dos troncos, as copas
redondas ou esgalgadas, escondendo o húmus, o feto, o brando mato destes
lugares. Assim fica sabendo que viaja, ele também, no invisível, tornou-se
gnomo, duende, bichito que vive debaixo da folha caída, e só torna a ser homem
quando, de longe em longe, a floresta se interrompe e a estrada corre ao céu
aberto. E sempre o rumorejar das águas, frigidíssimas, e as nuvens rolando no
céu, é um murmúrio que passa, como serão aqui as trovoadas? Atravessar a serra do
Marão, de Vila Real até Amarante, deveria ser outra imposição cívica como pagar
os impostos ou registar os filhos. Enraizado no rio Douro, o Marão é o tronco
deitado duma grande árvore de pedra que se prolonga até ao Alto Minho, entrando
pela Galiza dentro: reforça-se na Falperra, e abre-se, monte sobre monte, pelo
Barroso e Larouco, pela Cabreira e pelo Gerês, até à Peneda, nos altos do
Lindoso e de Castro Laboreiro.
Lá
iremos. Agora vai o viajante entrando em Amarante, cidade que parece italiana
ou espanhola, a ponte e as casas que na margem esquerda do Tâmega se debruçam,
o balcão dos reis virado à praça, e este hotel modestíssimo cujas varandas
traseiras dão para o rio, donde a esta hora do entardecer se levanta uma
neblina, talvez só a poalha da água precipitada nos rápidos, rumor que povoará
os sonhos do viajante, para sua felicidade. Porém, antes, jantará no Zé da Calçada,
com proveito e gosto. E ao atravessar a ponte não fará outro sermão, mas pensará:
Esta há-de ter histórias. Mais teria a que neste lugar existiu, construída no século
XIII pelo S. Gonçalo de cá e povos de Ribatâmega. Bons tempos esses, em que o
santo levava a argamassa ao alvenel e ficava muito agradecido». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,