O Rei de Marfim
«(…) Para onde mais
podia ela ir, senão ali ficar na cela em que recolheu o último bafo da mãe?...,
tudo aí começou. Tânger foi o descalabro de todos nós..., do cativeiro do
infante, da morte prematura do rei na menoridade do filho, do rebentar dessa
semente funesta da malquerença contra o regente meu pai..., porque não se
cansava a tia Filipa de falar nisso?, ainda lhe doía a morte do pai, agora
avivada pela da mãe?, raiva, ódio, desejo de vingança?..., que outra coisa
havias tu e tua irmã de fazer senão afagar-lhe o ombro, abraçá-la, tomar-lhe as
mãos, a consolá-la à tia Filipa, irmã de vossa mãe?..., nunca te haveria de
esquecer o olhar dela molhado a erguer-se para ti, para Joana: devereis saber,
meus sobrinhos..., e as palavras se lhe mergulhavam atrás a revolver no poço do
tempo... bom monteiro e caçador, não há que ver, como todos os varões dessa
família ..., eu sei, eu sei, minha senhora tia, intervinhas tu. Meu bisavô João
até escreveu aquele livro ..., sim, e nosso avô Duarte, lembrava Joana, compôs
também um outro ..., assim é. E este nosso avô Pedro ...
É isso, sim, meus sobrinhos, mas
particularmente do que vosso avô Pedro mais gostava era de ocupar suas horas...,
com que minúcia repartia cada tarefa, cada obrigação pelas horas do dia!..., deixa-me
ver se adivinho, deixa ..., diz, meu sobrinho. Do que ele mais gostava era de
ocupar suas horas metido na livraria ..., a estudar ..., completava tua irmã. E
a verter do latim o livro dos ofícios de Marco Túlio Cicerão..., costumava
dizer que cada livro era uma janela do universo, mas acrescentava pensativo: Mais
se aprende dos costumes a índole dos homens do que pela leitura de grossos volumes,
homem sábio, meu pai! Arrumado nas ideias e na acção, o cuidado que punha em
mandar abrir valas para enxugar os pântanos do Mondego..., bom administrador de
sua casa como dos negócios da república, conhecedor como poucos da arte da
guerra, perito do regimento da corte..., que saudades as minhas! Quando ele aparecia
à porta da câmara cansado do estudo, meus meninos, desembaraçava-me eu do colo
da ama e corria a estender-lhe os braços para o alto, ele avançava no seu andar
manso, dobrava-se, içava-me a beijar-me..., a mim, enquanto sentia aquela barba
ruiva arranhar-me a cara, semelhava-me estar a ver do cimo da torre de um
castelo a sala e as pessoas lá em baixo muito pequenas..., depois sentava-se...,
quantas vezes o fazia, com os filhos em roda e a minha mãe ao lado, a recordar
as suas viagens por essa Europa fora..., de seu jeito, bem diferente, mas
contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas:
que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?, lá vai cavalgando em seu corcel
de prata e de arreios de ouro, seguem-no atrás os doze companheiros, Cristo
mai-los discípulos, como fantasmas caminham sobre as montadas tarrenego
mafarrico, não parecem desta vida, bestas do apocalis a correr campos de
turcos, ladeiam já as margens do termodonte no país das amazonas, atravessam desertos
em cima de dromedários e chegam à Noruega onde os dias não luzem mais do que
quatro horas, passam Babilónia, a província dos centauros, a terra dos alarves
em que os filhos são sepultura dos pais, nas serranias da arménia vêem a arca
de noé, por damasco descem à Terra Santa, ao Egipto, onde assistem ao suplício
de um mouro que por ter dado uma bofetada num peregrino é empalado numa vara
afiada que lhe saía pela boca..., visitam a região dos gigantes, dos homens com
cabeça de cão, dos pigmeus que têm guerra com as aves... em Meca admiram,
suspenso no ar por seis pedras imãs, o moimento de mafoma... e entram no
paraíso terreal, que é banhado por quatro rios: do Tigre, que corre por
território dos assírios, saem ramos de ciprestes e de oliveiras; das ondas do Eufrates
erguem-se palmeirais agitados pelo vento; do Géon, que circunda o chão da Etiópia,
surgem homens cor de bronze; do Físon, que rodeia a região de Hevilath, onde
nasce o ouro e se encontra o Bdélio e a Cornalina, esvoaçam papagaios coloridos
em seus ninhos pelas águas... » In Fernando Campos, A Esmeralda Partida,
1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
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