«(…) Debaixo da azinheira, o homem abria gestos grandes de braços, impaciente, bem se vê que não sabe o que é trazer um filho ao colo, melhor fará cuidando de esticar as cordas, que com este correr certamente se deslaçaram os nós ou escorregaram os móveis, era o que faltava partir-se o pouco que temos. Debaixo da árvore chove menos, mas caem grossos pingos das folhas, nem isto é copa de laranjeira, estes enormes e desgarrados braços, é como estar sob um alpendre todo esburacado, não sabe uma pessoa onde pôr-se, e ainda bem que a criança começou a chorar, sempre é um trabalho mais urgente, desapertar a blusa, dar-lhe o peito já de pouco leite, pouco mais do que o engano da boca. Cortou-se-lhe o choro em meio e à boa paz ali estiveram mãe e filho, envolvidos no largo rumor da chuva, enquanto o pai dava volta à carroça desfazendo e tornando a fazer os nós, fincando o joelho nos taipais para puxar as cordas, enquanto o burro, alheado, sacudia as orelhas com força e olhava as poças de água e o enxurro do caminho. Então o homem disse, Quase a chegarmos, e logo veio esta chuva, foram palavras de zanga mansa, lançadas com desprazer mas sem esperança, não será por me enfadar a mim que a chuva irá parar, é um dito do narrador, que bem se dispensava. Atenda-se antes ao movimento do pai, que enfim pergunta, E o menino, e se aproxima, espreita sob a dobra do xale, são liberdades de marido, mas tão depressa a mulher de recato se tapou, que ele não pôde saber se realmente quisera ver o filho, ou o seio exposto. Porém, distinguira, na tépida penumbra, na cheirosa mornidão das roupas amarrotadas, fitando-o lá daquele dentro íntimo, o olhar muito azul do filho, insólita luz clara que do berço costumava fitá-lo, transparente e severa, como alguém que exilado se sentisse entre olhos escuros, castanhos, em que família vim nascer.
A nuvem grossa desmanchara-se um
pouco, quebrara-se o primeiro ímpeto da chuva. O homem saiu ao caminho,
interrogou os ares, virou-se aos quatro pontos cardiais, e disse à mulher, Temos
de ir, não podemos ficar aqui até à noite. E a mulher respondeu, Vamos. Puxou o
bico do peito à boca do filho, a criança sugou em falso, pareceu que ia chorar,
mas não, esfregou a cara no seio já recolhido e, suspirando, adormeceu. Era um menino
sossegado, de bom feitio, amigo da sua mãe.
Agora iam juntos, calhados com a
chuva, tão molhados que nem mesmo um palheiro confortável os faria parar, só em
casa. A noite precipitava-se, vinha depressa. A poente apenas havia uma última
luz baça que enfim se avermelhava, e ainda lá estava já se apagara, tornou-se a
terra como um poço negro, silenciosa e cheia de ecos, como é grande o mundo
nesta hora do anoitecer. O ranger das rodas ouviu-se melhor, a respiração do
animal, sacudida, era tão inesperada como um segredo subitamente dito em voz
alta, e até o roçar das roupas molhadas parecia uma conversação seguida,
murmurada, sem pausas, um falar de boa companhia. Em todas aquelas léguas ao
redor, não se via uma luz. A mulher persignou-se, fez o sinal da cruz sobre o
rosto do filho. A estas horas é melhor que se defenda o corpo e se proteja a
alma, começam a vir aos caminhos as assombrações, passam num remoinho ou
sentam-se numa pedra à espera do viajante a quem farão as três perguntas para
que não há resposta, quem és, donde vens, para onde vais. O homem que
segue ao lado da carroça gostaria de cantar, mas não pode, todo o esforço se
lhe gasta em fingir que não o assusta a noite. Já falta pouco, disse, chegando à
estrada, é tudo a direito e melhor caminho». In José Saramago, Levantado do
Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.
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JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,