De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Tentações do Demónio
«(…) A estrada segue por altas
paragens, depois de logo à saída de Carrazedo deixar de acompanhar o rio
Curros. São estas terras grandes desertos, andam-se quilómetros sem ver gente,
e quando surge de repente uma povoação que não se espera chama-se Jou, que
lindo nome, ou há modestos caminhos que levam a Toubres, a Valongo de Milhais,
a Carvas, o viajante vai repetindo estas palavras, saboreia-as, nem precisa
doutro alimento. Os nossos antepassados eram gente imaginativa, ou estava a nascente
língua portuguesa muito mais solta em seu movimento do que está hoje, quando aí
nos vemos em papos-de-aranha para baptizar novos lugares habitados, que graça
tem Vila Isto, Vila Aquilo. Assim discorrendo, vai o viajante deitando olhos à
paisagem, ao grande consolo destes montes e destas vegetações, bravas ou
cultivadas, as pedras e os penedos, os gigantescos lombos das serras, até um
homem se esquece de que há léguas de planícies lá para baixo.
O viajante entra em Murça, terra
de muita fama e opinião, que teve em tempos um soberbo rasgo de humor ao pôr
sobre pedestal uma enorme porca de granito, irmã maior das que se dispersaram
por estes lados. Ali está no largo principal, toda em costados e lombos, em
presuntos inesgotáveis, fungando a quem passa. Subiu do chiqueiro à pureza da
chuva que a lava, do sol que a enxuga e aquece, no meio do seu jardinzinho que
o município cuidadosamente defende. O viajante vai ao vinho, que é outra e não
menor fama da terra, compra umas garrafas, e tendo assim suprido apetites
futuros vai dar uma volta ao passado apreciando a fachada da Capela da Misericórdia,
que é como um retábulo de altar trazido para a luz do dia. Estas colunas
torsas, estas folhagens esculpidas com artes de botânico repetem modelos,
copiam padrões, mas, de cada vez, renova-se o deslumbramento da pedra
trabalhada por instrumentos de joalheiro ou filigranista. Uns pássaros de pedra
empoleirados nos pináculos voltam a cabeça para trás, desdenhosos, ou terá o
gesto um significado místico que o viajante não conhece. O mais certo, porém, é
estarem-se já rindo das impaciências do viajante quando, passado o rio Tinhela,
entrar no labirinto das não menos afamadas Curvas de Murça, esse faz-que-anda, mas-não
anda, que leva a desejar ter asas para voar em linha recta. Enfim se chega a Vila
Real, e, tendo o viajante andado por tão maus caminhos, pasma deste privilégio,
a avenida de cintura, pista de corridas para bólides de fora e dentro. Há
grandes contrastes na vida, e agora mesmo, ao entrar na cidade, viu o viajante
o exagero de uma pedra de armas toda ornamentada de volutas e penachos, de tal
maneira que mais avultam os enfeites barrocos do que as prosápias de brasão.
Estaria o viajante tentado a ver aqui um sinal de modéstia se não fosse ser a
pedra de tamanho descomunal, que muito esforço há-de ter custado ao mestre
canteiro.
Casa
Grande
Vila
Real não é cidade afortunada. Terá o viajante de explicar-se melhor para que não
fiquem a querer-lhe mal os naturais, assim desacreditados imerecidamente. Em
verdade, que se há-de dizer de uma terra que tem, a nascente, Mateus, com seu
solar de atractivo fácil, a poente, o Marão, a sul, o vale do Corgo e o outro,
paralelo, por onde não corre rio de água mas onde escorre a doçura das vinhas?
Viajante que por aqui se encontre, há-de por força andar distraído, a pensar no
que lhe está tão perto». In José Saramago, Viagem a Portugal,
1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,