O Interesse pelo Norte de África
«(…) Das praias do Algarve, onde passou amiúde a residir, o Navegador perscrutava as notícias da Berberia, o comportamento dos defensores de Ceuta e a eficiência dos meios afectos à ponte naval entre Lisboa, o Algarve e Ceuta. No cerco de 1418, ele próprio e o infante João embarcaram em auxílio dos sitiados. Um dos barcos ocupados no serviço de Ceuta, no regresso ao Reino, chegou à ilha do Porto Santo. A dimensão atlântica somava-se então à empresa marroquina. Os recursos afectos à manutenção de Ceuta eram muito elevados. Entre eles figuravam parte dos consignados às Ordens Militares e aos bispados do Reino. Em 1419, a pedido de João I, o papa Martinho V decidiu que todos os arcebispos, bispos, demais prelados e pessoas eclesiásticas, seculares e regulares, contribuíssem com 9000 florins anuais, durante três anos, para ajuda à nova cidade cristã. A dificuldade em manter uma colónia europeia em África começou a recortar-se com nitidez: pagamento da guarnição, abastecimento em armas e víveres, manutenção da armada no Estreito, dificuldade no recrutamento de fronteiros e moradores, estabelecimento de uma administração permanente em Ceuta e no Reino, enfim, todo o lançamento da estrutura necessária aos territórios de além-mar. João I procurou suscitar o apoio de outros monarcas cristãos para a guerra contra os Mouros e, para isso, escreveu a Afonso V, rei de Aragão e da Sicília; a resposta, dada em 1420, adiava o auxílio para ocasião favorável. O abastecimento de cereais a Ceuta foi, frequentemente, dado a contratadores portugueses e estrangeiros que iam buscar o trigo a Castela, Sicília e outros lugares. Foi o caso do contrato, feito em 1423, com Luís Eanes, outros portugueses e dois genoveses, Bartholomeu Lomellim e Bartholomeu Baraboto, de 2000 moios de trigo para Ceuta. Surgiu então em Portugal um debate complexo a que podemos chamar a questão de Ceuta, que seria alargado mais tarde à escolha dos diferentes rumos que a expansão poderia assumir. Os dirigentes portugueses preocupavam-se com as despesas permanentes que a manutenção de Ceuta exigia, procuravam soluções expeditas e menos onerosas e questionavam-se sobre o futuro da colónia. Assistiu-se à internacionalização do problema, em que foram parte interessada os países ibéricos, o Papado e os meios financeiros europeus, atentos aos projectos carenciados de avultados recursos. De tudo isto nos dá conta a famosa carta que o infante Pedro escreveu de Bruges, em 1426, a seu irmão Duarte: Do que sentya dos feitos de Cepta per algua vez, senhor, vo-lo razoey; mas a conclusão é que, emquanto asy estiver ordenada como agora está, que é muy bom sumydoiro de gente de vossa terra e d'armas e de dinheiro. E, segundo eu senty d'alguns bons homens de Inglaterra de autoridade e daquy, deixam já de falar na honrra e boa fama que é em a asy terem, e falam na grande indiscrição que é em a manterem com tam grande perda e destruyçom da terra, do que a mym parece que eles hão muyto peor informação do que ainda é. O remedio desto, senhor, per muytas vezes o falastes e o sabeis melhor do que vos eu poderia escrever; parece-me, senhor, que farieis serviço de Deus e voso ordena-lo sem delonga. A solução proposta pelo infante Pedro não está expressa na carta, mas já fora discutida com o herdeiro da coroa. O infante das Sete partidas beneficiava das viagens pela Europa para colher ensinamentos sobre a forma como ali se considerava a conquista de Ceuta; mostra-se um crítico da situação, mas não podemos julgar, em termos definitivos, se era contra a guerra de África e pelo abandono de Ceuta se, pelo contrário, propunha a conquista de novos e mais extensos territórios. Podemos mesmo supor que se trataria de alguma crítica ao modo como o infante Henrique tinha ordenada a cidade». In António Dias Farinha, Os Portugueses em Marrocos, Instituto Camões, Colecção Lazúli, IAG, Artes Gráficas, ISBN 972-566-206-7.