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quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Sabes onde hai água? O rapaz respondeu: Há uma fonte numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma careta assustadora, o salafrário ameaçou-o novamente: Se my mientes, te arranco el corazón com los dientes...»

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«Dos vários personagens que conheci naqueles estranhos dias, o rapaz foi curiosamente o primeiro que vi. Cruzámos os nossos destinos logo na primeira manhã, e quando falei com ele já sabia o que tinha feito, a coragem que revelara. Hoje, tenho pena de não o ter elogiado. Talvez as coisas tivessem sido diferentes, talvez tivesse olhado para mim com outros olhos. Mas não foi assim e não há nada que possa fazer para mudar a história. O rapaz estava ainda próximo da arruinada Igreja de São Vicente de Fora quando se deu o terceiro abalo. Embora determinado a procurar a irmã, não lhe fora fácil atravessar aquele descalabro. Não existiam ruas, nem casas, nem prédios onde antes tinham existido. Quando a nuvem de poeira levantou, viu no meio daquela irrespirável bruma o Castelo de São Jorge e mais em baixo a Sé, e foi assim que se orientou em direcção a sua casa, próxima da Igreja da Madalena.

Naquelas circunstâncias, andar era difícil: havia fendas inesperadas e fundos precipícios no terreno; as ruas apresentavam-se impedidas, atulhadas de pedras. Demorou a aproximar-se do Castelo e das suas muralhas. Os mortos atapetavam o chão, em posições complexas, semelhantes a estátuas esculpidas por desvairados. As pessoas corriam, atarantadas, como as crianças perdidas, aos berros.

O rapaz prosseguiu, determinado. Próximo da Graça, uma pequena multidão observava o Rossio, em baixo, e a colina oposta, do Bairro Alto. Nada era como tinha sido. A cidade abatera, como que deitando-se no chão, e nem os seus edifícios mais simbólicos haviam escapado. Na praça, o Hospital de Todos-os-Santos era o único que parecia intacto, mas ao seu lado tanto o Convento de São Domingos, como o Palácio da Inquisição, haviam sido fortemente atingidos.

Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo, mas não encontrou razão. Por isso, cessou de procurar motivos e continuou a descer para a Sé, e com ele desciam muitas pessoas que tinham subido para as festas em São Vicente de Fora e agora regressavam às suas casas. Eram já pessoas diferentes, mudadas para sempre, partidas por dentro, cheias de mágoa e desespero e medo do futuro. Tinham ido encontrar-se com Deus naquele feriado e haviam sido massacradas de uma forma inimaginável.

Ao passar perto da Sé ouviu tiros. Deviam ter fugido prisioneiros do Limoeiro e os soldados tentavam abatê-los, foi a sua conclusão, e decidiu ter precaução, receando ser apanhado no fogo cruzado dos confrontos. Algumas casas tinham ficado intactas, bem como a Sé, que, orgulhosa, apenas mostrava os flancos danificados.

Foi então que, mesmo à sua frente, viu três homens a saírem de uma casa. Arrastavam um desgraçado, provavelmente o proprietário. Atiraram-no ao chão e deram-lhe um tiro, abatendo-o. O rapaz escondeu-se atrás de um monte de pedras e ficou a observar. Um dos homens, mais alto do que os outros dois, parecia ser o chefe. O seu cabelo e as suas barbas eram negros e dos seus olhos e dos seus gestos emanava uma energia maligna. Vasculhou os bolsos do proprietário e retirou um relógio. Depois, os três bandidos reentraram dentro da casa e ouviram-se mais gritos, seguidos de um silêncio mais assustador do que o barulho.

O rapaz aproveitou o momento e recomeçou a andar, mas foi surpreendido pelo regresso abrupto do homem mais alto, que se dirigiu ao morto. O rapaz sentiu medo. O grandalhão observou-o, enquanto vasculhava as roupas do defunto. Sorriu quando encontrou uma chave e depois perguntou ao rapaz: Qué passa? O rapaz não respondeu, mas percebeu que o ladrão era espanhol. Um dos seus companheiros saiu também de casa, trazendo uma mulher pelos cabelos, que implorava: Não, não, por favor, não! O  homem enorme olhou para o rapaz e riu-se, e depois perguntou: Hay visto una mujer morrer? O rapaz respondeu: Sim. A minha mãe. O energúmeno soltou uma gargalhada e perguntou-lhe: Como hay morrido tu pobre madre? O rapaz contou-lhe: Morreu lá em cima, em São Vicente de Fora, na igreja. Executando uma mímica maldosa, o bisonte benzeu-se e murmurou: Paz à su alma... Pero, esta vai gozar mucho más que tu madre... Aproximou-se da mulher, agarrou-a pela nuca e depois ordenou ao seu subordinado: Leva-la!!!

O outro riu e acatou a ordem, mas antes aconselhou-o, apontando na direcção do rapaz: Matá-lo. Muertos no hablam con soldados... O homem mais alto deu nova gargalhada, aproximou-se do rapaz e perguntou: Chico, quieres morrer? O rapaz disse que não. O matodonte agarrou-o pelo cachaço, levou a mão ao cinto e empunhou uma faca, que depois lhe encostou à garganta. A mi me gustan los chicos... Apesar do medo, o rapaz disse: Eu só queria água... O cafageste, ao ouvir falar em água, pensou uns segundos.

Sabes onde hai água? O rapaz respondeu: Há uma fonte numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma careta assustadora, o salafrário ameaçou-o novamente: Se my mientes, te arranco el corazón com los dientes... Não, gemeu o rapaz, é verdade, há água ali. O Cão Negro libertou-o e ordenou: Vien. Entraram os dois dentro de casa. No meio da sala, em cima de um sofá, a mulher estava deitada de costas, com as saias levantadas, e um dos outros espanhóis, já com as calças a meio dos joelhos, preparava-se para penetrá-la.

Ei cabrón, gritou o Cão Negro. O companheiro voltou-se para trás, aflito, e riu nervosamente. Ei, Cã Niegro, también tenemos derecho... O chefe ergueu-lhe o punho à frente dos olhos e perguntou: Quien manda? Tu. Entonces, sou yo lo primero. O Cão Negro baixou as calças enquanto o outro se afastava um pouco. O rapaz assistiu aos seus actos. A mulher chorava; e depois do chefe veio o homem que ele afastara, e depois o terceiro homem praticou o mesmo acto, sempre com ela a chorar. O rapaz não podia fazer nada e quando aquilo acabou estava com medo que o quisessem a ele, mas nenhum dos três o quis. O Cão Negro proclamou que ela ainda aguentava outra rodada geral, e todos se riram muito e só depois se lembraram do rapaz, e o Cão Negro mandou-o procurar um jarro, ou uma panela grande, para ir buscar água à fonte, acompanhado por um dos espanhóis». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755, Conhecimento,

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Domingos Amaral. Quando Lisboa Tremeu. 1755. «Gritei, procurando saber se estava ali alguém vivo, mas ninguém me respondeu. Ainda tentei escavar um pouco, afastar o entulho, mas depressa concluí que só avançaria se tivesse uma pá»

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«(…) Esta conversa entre o rapaz e o vizinho deve ter ocorrido cerca de meia hora antes de eu o ver pela segunda vez. Muhammed e eu ficámos junto à fonte, a beber e a descansar, e depois, não vendo o Cão Negro nas redondezas, decidimos descer, a caminho do Terreiro do Paço e do rio. A encosta onde ficava a Sé apresentava enormes danos nos edifícios, a grande maioria deles tinham sofrido derrocadas ou estavam esventrados ao meio, com os interiores à mostra.Como se fossem bolos a quem alguém havia cortado uma grande fatia exibiam os interiores, partes de quartos, camas, cadeiras, até lavatórios, suspensos no ar, presos por traves periclitantes. Roupa, utensílios íntimos, penicos, sapatos, colchas, formavam uma estranha mistura de cores, pedaços de madeira e tijolos soltos. Fomos descendo, quase sempre em silêncio, como que fazendo uma homenagem muda às vítimas do cataclismo, até chegarmos à zona da Igreja da Madalena. De repente, vimos um cão, um animal bonito, preto, com o pêlo brilhante, bem escovado. Passou por nós a abanar o rabo e a correr. Subiu um monte de entulho e começou a ladrar, entusiasmado, na direcção de outro monte de entulho. Depois, desceu, colocando as suas patas com cuidado, para não se ferir nas pedras e nas pontiagudas madeiras que emergiam do chão. Um vulto saiu de um buraco na terra e abraçou o cão com contentamento.

Percebi que era o mesmo rapaz que vira na fonte. Muhammed e eu aproximámo-nos e, quando chegámos a poucos metros, o rapaz viu-nos e ficou tenso. Examinava as nossas roupas desconfiado. Quem são vocês?, perguntou. Muhammed tossiu e chamei o cão com um assobio. Veio ter comigo e passei-lhe a mão pela cabeça, fazendo-lhe festas. O cão parecia contente e abanava muito o rabo. O rapaz observou-me sem dizer nada. É bonito, o teu cão, afirmei. O rapaz assobiou e o cão correu para ele. Depois, deu umas passadas rápidas para o lado, e enfiou-se por um buraco. Ouvimo-lo ladrar, e era um ladrar persistente, como se estivesse a chamar por alguém. O rapaz, ao ouvi-lo, desinteressou-se de nós e correu para o buraco, enfiando-se lá dentro. Espreitei: era uma espécie de passagem, onde uns degraus nasciam, um metro abaixo do nível do solo. O rapaz e o cão reapareceram. Acho que a minha irmã está lá em baixo. E tenho a certeza de que está viva, disse o rapaz. Examinei aquele aglomerado de pedregulhos e cascalho, e perguntei: A tua casa era aqui? O rapaz contou que estava em São Vicente de Fora, com a mãe, na missa, quando o terramoto os atingiu. A igreja abatera em cima da mãe, que morrera. Salvara-se porque saíra da igreja um pouco antes, pois queria regressar a casa, à procura da irmã, que ficara para trás com o padrasto. E o teu padrasto, onde está? O rapaz baixou a cabeça, desanimado. Está morto, vi o corpo dele lá em baixo. Mas o cão está agitado, sente que ela está viva. Bufei: Não sei, isto está tudo destruído. Chamaste por ela? O rapaz chamara, mas não ouvira a voz da irmã a responder. Podem ajudar-me a procurá-la?, perguntou. Já pedi ajuda a vários homens, e ao meu vizinho, que estava aqui há pouco, mas ninguém me quis ajudar.

Olhei para Muhammed. O árabe roía as unhas, nervoso. Sabia que ele ficava assim na presença de rapazinhos, e sabia também que nós éramos prisioneiros em fuga, e que devíamos sair da cidade o mais depressa possível. O rapaz insistiu: Posso dar-vos comida, se quiserem. Descobri lá em baixo carne e pão, e uma panela com batatas cozidas. Devia ser o nosso almoço, quando voltássemos da missa.

Ao ouvi-lo falar em comida, Muhammed aproximou-se, sorridente. Santamaria, Muhammed ir ter fome. Muhammed ir comer, depois ir ajudar. Sorri e aceitei a oferta do rapaz. Então, ele desceu ao buraco e regressou com uma panela. Sentámo-nos os três a comer, saboreando o repasto. Quando acabámos, o rapaz olhou para mim: Tu és mais alto, podes chegar mais longe. Concordei e desci pelo buraco. O rapaz seguiu-me e o cão também. À minha frente, num espaço escuro e coberto de argamassa e caliça, existiam elevações irregulares de pedras e madeira. Uma trave grande impedia o avanço. O rapaz explicou: Isto é a entrada da cave. Se conseguires remover essa trave, podemos passar. Lutei com o toro até que o consegui rodar. Empurrei-o para a direita, deixando uma abertura maior por onde podia passar. Contudo, muita poeira e pedras caíram em cima de mim, do rapaz e do cão. É melhor irem lá para fora, disse eu. Isto é perigoso. O rapaz e o cão saíram. Avancei, passando pela trave, e vi-me numa espécie de corredor, mas as suas paredes estavam destruídas, e havia uma enorme quantidade de pedras no chão, que se confundiam com o tecto daquele local. Podia acontecer um desabamento a qualquer momento, mas fui avançando até onde podia. Uns metros à frente, o monte de entulho crescia, impedindo-me de continuar até ao fundo da cave. Gritei, procurando saber se estava ali alguém vivo, mas ninguém me respondeu. Ainda tentei escavar um pouco, afastar o entulho, mas depressa concluí que só avançaria se tivesse uma pá.

Dei meia volta e de repente vi um vulto deitado. Rastejei até lá. Era um homem e estava morto, mas o que me chamou a atenção foi o facto de a sua garganta ter sido cortada por uma facada. Saí e expliquei ao rapaz ser impossível ir mais longe. Convicto, ele afirmou: – Então, vou procurar uma pá e tu ajudas-me a remover a terra. Bufei de novo. Há um homem morto, lá em baixo. Foste tu que lhe cortaste a garganta? O rapaz ficou muito sério, mas disse que não, e repetiu o que já me contara: encontrara o padrasto morto, mas não sabia que ele estava com a garganta cortada. Não tenho nada a ver com isso, mas também não quero vir a ter, disse eu. O homem foi assassinado. Não vou ficar aqui para me acusarem depois. Muhammed concordou. O rapaz ficou indignado: Mas, eu ajudei-vos! Dei-vos de comer. Prometeste que me ajudavas a procurar a minha irmã! Dei dois passos na direcção dele e disse: E ajudei, fui lá abaixo. Chamei e não se ouve nada. Não vi a tua irmã e vi o teu padrasto degolado. Para mim, chega. Saímos dali e nas minhas costas só ouvia os protestos e os insultos do rapaz: Mentiroso! És um mentiroso! Vocês são uns bandidos, se vir os guardas denuncio-vos! Duas pedras aterraram próximo de mim, e virei-me para trás. Com receio, o rapaz mergulhou no buraco, seguido pelo cão. Depois, espreitou, colocando só a cabeça de fora e gritou mais uma vez: Mentiroso!» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755, 

domingo, 2 de janeiro de 2022

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Após algum tempo, o rapaz parou, desanimado, e sentou-se no chão. Na verdade, estava tão espantado e confundido que nem sequer tinha a certeza de aquela ser a sua casa, pois nada parecia o que era dantes. Pessoas nuas ou vestidas apareciam e desapareciam…»

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«(…) Ao narrar-me este episódio, Hugh Gold agarrou-se à barriga, à gargalhada: Sim, I know! Divertidíssimo, virou-se para mim: Good lord, cos diabos, where was my cabeça, my head? Tell this ao marido da senhora Locke, to the husband? Hell, he could ask: Como senhor sabe? How do you know, capitão? O que lhe respondia, what, hell? I know porque folgar Fridays with your wife! And ela adormece, sleeps, and ressona, seu cornudo! O capitão Hugh Gold deliciava-se com o ascendente que tinha sobre o senhor Locke por cobrir a mulher dele. É sempre assim com os amantes das mulheres casadas: há aquele sentimento de superioridade sobre o outro macho que os inebria, e os faz sentirem-se mais fortes do que o enganado. Good lord, cornudo e avarento, the poor man, rematou Hugh Gold. More money than me! Mas, what the hell, cos diabos, me fu… his mulher, wife dele! O capitão Hugh Gold não conseguia parar de rir, talvez para me impressionar, ou ao meu amigo Muhammed, sem saber que, nessa noite, mais alguém o ouvia e reflectia seriamente sobre aquelas palavras.

Além de procurar a irmã, o rapaz andava também à procura do cão. Desde a noite anterior que não sabia dele, e estranhara aquela ausência. E agora, ao olhar para o que fora a sua casa, pensava no cão e no que lhe teria acontecido, e no quanto ele o poderia ajudar a procurar a irmã. O cão era muito inteligente e sabia perfeitamente o que fazer quando ele falava no nome da irmã. Por vezes, o rapaz perguntava ao cão: Onde está a Assunção? E o cão lá ia procurar a irmã e depois ladrava para avisar o rapaz de que a tinha encontrado. Portanto, se num dia normal ele era capaz disso, naquele dia tenebroso ainda seria capaz de mais. Só que o cão não estava em parte alguma, nem respondia aos chamamentos. Após algum tempo, o rapaz parou, desanimado, e sentou-se no chão. Na verdade, estava tão espantado e confundido que nem sequer tinha a certeza de aquela ser a sua casa, pois nada parecia o que era dantes. Pessoas nuas ou vestidas apareciam e desapareciam, almas perdidas a vaguearem por caminhos que julgavam que conheciam, mas agora desconheciam. Às vezes, quando passavam mulheres e crianças, o rapaz olhava os seus corpos nus e sujos e tinha vergonha por eles. Decidiu explorar os escombros, mas a enormidade do esforço que encontrou pela frente fê-lo pensar em pedir ajuda. Explicou aos caminhantes que a irmã estava dentro de casa, que poderia ainda estar viva, que precisava de a procurar. Mas ninguém sequer parava para o escutar. Algum tempo mais tarde, o rapaz encontrou um dos seus vizinhos, já de uma certa idade, que tinha o braço cheio de sangue e os olhos turvos de lágrimas, e lhe disse: Perdi a minha filha e o marido dela. Estão mortos, ali, apontou. Não sei da minha mulher. O rapaz contou-lhe a sua história e o homem benzeu-se e disse: Ninguém sobreviveu dentro destas casas... E depois acrescentou: Vem comigo, vamos para o Terreiro do Paço. Aqui ninguém nos vai ajudar. O rapaz não quis seguir o conselho do vizinho. Este insistiu: Isto está cheio de ladrões. Entram nas casas e roubam tudo e, se lhes fazemos frente, matam-nos. Não é lugar para um rapaz.

O rapaz sabia disso e contou-lhe o que se tinha passado próximo da Sé, com os espanhóis, e acrescentou: Não vou deixar que eles façam mal à minha irmã. O vizinho fez uma pausa e depois perguntou: Acreditas que ela está viva? O rapaz disse que acreditava. És um rapaz com muita fé, comentou o vizinho. Mas Deus castigou-nos, castigou os pecadores desta cidade. O rapaz garantiu que a irmã não era uma pecadora. O vizinho interrompeu-o: Ela não, mas o teu padrasto... O rapaz emudeceu. A fama do padrasto era conhecida da vizinhança. Ainda hoje de manhã, recordou o vizinho, depois de tu e a tua mãe terem saído para a missa, vi o teu padrasto a conversar com a tua irmã e pela cara dele percebia-se o que estava a dizer... Foi a vez de o rapaz o interromper: Ela nunca deixaria que ele lhe fizesse alguma coisa. Não é dessas. O vizinho confirmou com um aceno de cabeça, mas acrescentou: Mas ele é um homem forte... Não, gritou o rapaz. Ele não lhe fez mal! Se lhe fez, mato-o! O vizinho sentiu a sua raiva, baixou os olhos e disse: Lisboa está perdida... Deus castigou-nos... O rapaz, agora muito agitado, perguntou: Viu o meu padrasto depois do que aconteceu?

Não. A última vez que o vi foi aqui à porta, a falar com a tua irmã, a rir-se para ela, contou o vizinho. Depois, ela entrou em casa e fechou a porta, e ele... O rapaz interrompeu-o: Não fale do que não viu. O vizinho questionou-o: Estás a acusar-me de lançar falsos testemunhos? O rapaz respondeu: Não. Vá-se embora, se quiser, deixe-me sozinho, vou continuar à procura da minha irmã. Depois de dizer isto, o rapaz regressou ao local onde antes ficava a porta de sua casa e começou a afastar as pedras e as traves. O vizinho deu meia-volta e foi-se embora». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Se continuasse até ao Rossio, podia depois subir até Santa Marta, e o seu amigo certamente o acolheria. Sorriu, ao pensar que ainda na véspera…»

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«(…) O profetista revelou o seu acordo com a sugestão: queria dirigir-se depressa ao Terreiro do Paço, à procura de um lugar num barco. Bão bocês os dois, disse irmã Alice, e fujam prò Vrasil. Eu num cunsigo. É muito longe, a perna nã me dexa caminhar. Decidido a pôr-se a caminho, o profetista perguntou a irmã Margarida: Cê vem? Ela queria ir, mas não podia deixar irmã Alice ali, naquele estado. Abanou a cabeça: Não a deixo aqui sozinha. Vai andando, nós vamos mais devagar. Ficaram as duas a vê-lo afastar-se, a caminho da zona a que chamavam Baixa, onde antes havia tantos prédios e tantas ruas e agora só existiam ruínas e poeira. Sempre com o seu terror íntimo das chamas, irmã Margarida contou-me que já àquela hora se começavam a ver colunas de fumo negro, provenientes de pequenos incêndios. A freira mais velha comentou que o profetista não devia ter tomado aquela direcção, pois ia cruzar-se com os fogos. Um arrepio percorreu a espinha de irmã Margarida, ao lembrar-se do destino que lhe estava reservado, o de morrer numa fogueira. Benzeu-se. Tens medo do fuago?, perguntou irmã Alice, ao vê-la benzer-se. Sim.

A freira mais velha observou-a e depois tocou-lhe com um dedo no pescoço, nas marcas da corda com que ela tentara enforcar-se. Qué isto? A rapariga bonita baixou os olhos envergonhada. A outra esperou que ela falasse, mas como isso não aconteceu ofereceu voluntariamente uma história. Mê pai morreu tinha eu oito anos. Matou-se, tinha díbidas e vevia muito. Saves cumo ele se matou? Não, respondeu irmã Margarida. Atou uma corda a um carbalho grande que habia perto de nossa casa, e enforcou-se. Lemvro-me de ber o corpo dele, já morto, pendurado lá no alto, e lemvro-me de uns bizinhos nossos o terem vaixado, e lemvro-me da cara dele, e das marcas da corda no pescoço. Olhou para a rapariga: Cumo essas... Depois, sorriu e acrescentou: Tens mesmo de fugir... Determinada, fez um esforço para se levantar. Irmã Margarida deu-lhe o braço e as duas recomeçaram a caminhar. Num bamos por aquele lado, decidiu irmã Alice, apontando para os fumos dos incêndios. Num te quero mais assustada do que já tás. Irmã Margarida sorriu-lhe, com um sentimento de gratidão. Saíram do Rossio pelo canto esquerdo, como se fossem para a Sé ou para o Castelo, e a última vez que irmã Margarida olhou para trás viu ao longe as vestes brancas de dois guardas da Inquisição (maldita), que procuravam prisioneiros evadidos.

Irmã Alice era, sem dúvida, uma mulher inteligente. Conseguira afastar-se do palácio e do convento, fugindo aos guardas, e conseguira também afastar o profetista, fingindo-se incapaz de ir até ao Tejo. Depois, manipulara o medo do fogo que a rapariga sentia, um medo que ela associava à prisão, à solidão, à morte. Em pouco tempo, dominara-a, obrigando-a a acompanhá-la.

Quando recordamos uma história que se passou há um ano, tentamos colocar os acontecimentos por ordem cronológica, para que possamos olhar para o que aconteceu de uma forma lógica e compreensível. É evidente que não assisti a muitos dos factos aqui descritos, e só soube deles através dos próprios, quando me contaram, ou de terceiros. Não sei, por isso, se tudo o que conto é verdade, se aconteceu exactamente assim, mas não tenho outra forma de o fazer, pois não? Além disso, é evidente que as histórias que conto, e a forma como o faço, também transportam os meus sentimentos sobre as pessoas, sejam elas bons ou maus, e as minhas opiniões, sejam elas justas ou injustas. Mas como poderia ser de outra forma? Recorro à minha memória para ordenar as emoções e os factos, mas a minha memória não é independente de mim, das minhas ideias e dos meus sentimentos, pois não?

Quando Hugh Gold conseguiu finalmente raciocinar, pensou no que fazer a seguir, como reorganizar a sua vida. Talvez se devesse dirigir a casa do embaixador. Se continuasse até ao Rossio, podia depois subir até Santa Marta, e o seu amigo certamente o acolheria. Sorriu, ao pensar que ainda na véspera, antes de ir ter com a senhora Locke, estivera a jantar com o embaixador na casa do marquês de Marialva, no seu grande palácio, cujo pátio estava cheio de cavalariças e estrumes e onde os porcos passeavam alegremente, à solta. A fauna era vasta e colorida, criados e criaditas, frades e boticários, toureiros e brigadeiros, todos a escutarem, contentes, os fadinhos cantados no pátio e as anedotas contadas à varanda. O repasto fora suculento, numa sala aquecida pelos braseiros, e haviam saboreado os doces e os guisados com gosto. Fora um serão divertido e, no final, tanto ele como o embaixador seguiram para os encontros amorosos, com as respectivas amantes. A do embaixador era a condessa de Vila Meã, uma portuguesa cujo marido passava em Paris uma temporada, e que se sentia muito sozinha. Quanto ao capitão, fora visitar a senhora Locke, cujo marido se deitava sempre com as galinhas, pois era um comerciante avarento, que trabalhava de sol a sol. A pobre senhora há muito que não recebia mimos do marido, e ao ver o capitão pela primeira vez soltara os seus olhares, sedutores e desejosos. Apesar de, na sua actividade, se cruzar com o senhor Locke por diversas vezes, o capitão não desincentivara as investidas da senhora, bem pelo contrário. O facto de ela ser casada com o representante de uma casa concorrente era mesmo uma vantagem, pois podia dar-lhe acesso a informação útil, tanto para os seus negócios, como para partilhar com o embaixador, que gostava de saber as novidades na comunidade inglesa da cidade. Com uma natureza semelhante, o capitão e a senhora Locke caíram nos braços um do outro dois dias depois de se conhecerem. No último ano, encontravam-se, com regularidade semanal, às sextas-feiras à noite. Hugh Gold batia no postigo da janela da senhora, ela abria a porta das traseiras e conduzia-o até uma sala, que fechava à chave, não fosse o marido acordar subitamente». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Quem dera ser tão má cumo dizem que sou. Irmã Margarida não estava a gostar do rumo da conversa, mas não produziu qualquer comentário. Irmã Alice encolheu os ombros e perguntou: Tens família em Lisvoa?»

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«(…) Tenho de me sentar, avisou a freira mais velha. Estou cum munta sede. Sentaram-se no chão, lado a lado. Uma mulher do grupo viu-as naquele estado e ordenou a uma menina que lhes desse um gole de água. A menina aproximou-se, com um pequeno jarro, e ofereceu-o à freira mais velha, que bebeu por ele. Depois, a menina passou o jarro a irmã Margarida. Obrigado, disse ela, depois de beber. A menina sorriu e a seguir olhou para a freira mais velha, que não lhe sorriu. A mulher que enviara a menina olhou também para a freira mais velha e ficou subitamente séria, como que incomodada com o olhar que recebera de volta. Chamou a menina para perto dela, e depois comentou qualquer coisa com um homem. Este examinou as duas freiras, e irmã Margarida não gostou do olhar que ele lhes deitou. Ia levantar-se, mas nesse momento Lisboa foi vítima de um novo abalo de terra, o terceiro, o mais curto, e a vontade do homem foi imediatamente esquecida, pois todos gritaram na praça e o caos tomou conta do local. Quando a agitação terminou, as duas freiras já se tinham afastado e já ninguém se lembrava delas. Atravessaram a praça, a caminho da baixa da cidade, na direcção do rio, para ficarem cada vez mais longe do Palácio da Inquisição (maldita) e do Convento de São Domingos. Mas a freira mais velha tinha muita dificuldade de andar, e sentaram-se outra vez. Então, irmã Margarida reparou que a outra trazia um casaco na mão, mas não se dera conta a quem ela o roubara nem quando. Será que estou a ser injusto com irmã Alice, traçando dela um desenho desfavorável? Não tenho nada contra mulheres que gostam de outras mulheres, até me diverti bastante com elas, juntando várias em certas noites na minha cama, para folgar. Mas esta era uma situação diferente: irmã Margarida provocava-me um sentimento forte, e ao ouvir estas histórias dela, fossem os seus companheiros homens ou mulheres, sentia de imediato uma picada forte no coração, o ciúme a castigar-me, e não conseguia ser benévolo na minha opinião sobre essas pessoas, como era o caso do inglês, ou desta freira que tentou seduzir a rapariga.

Passados alguns minutos em silêncio, irmã Alice perguntou: Porque disse o cunfessor que merecias a liverdade? Como a rapariga não se dignou a responder, a outra insistiu: Dizem que tu lebaste o Demónio para o conbento, que se oubiam os gritos dele lá dentro... Irmã Margarida defendeu-se: O que dizem nem sempre é verdade. A freira mais velha ficou calada uns segundos e depois aprovou: Tens razão. De mim, tamvém dizem muita mentira... Quem dera ser tão má cumo dizem que sou. Irmã Margarida não estava a gostar do rumo da conversa, mas não produziu qualquer comentário. Irmã Alice encolheu os ombros e perguntou: Tens família em Lisvoa? Não. Os meus pais morreram. Foi por isso que fui para o convento... A rapariga bonita sentiu uma súbita vontade de chorar. Já ficara sozinha no mundo uma vez, e agora estava de novo na mesma situação. Mas isso, apesar de tudo, era melhor do que morrer queimada.

Bais fugir pra donde?, perguntou a freira mais velha. Não sei. Não tenho família, nem amigos. Saves que, se ficares em Lisvoa, és presa outra bez e matam-te? Sei. Debias fugir prò mar, apanhar um varco para o Vrasil. No meio desta cunfusão, ninguém bai reparar... Curiosa, irmã Margarida perguntou: E onde se apanham esses barcos para o Brasil? Lá em vaixo, no Terreiro do Paço... E tu, vens comigo?, perguntou irmã Margarida. A outra sorriu: Estou belha de mais para uma biagem tão longa. Então o que vais fazer? Se te apanharem, também te prendem outra vez. Ficaram as duas caladas, agora durante longos minutos. Correra mais de uma hora sobre o último abalo e o Rossio enchiase cada vez mais, as pessoas vinham de todos os lados, da Baixa, do Bairro Alto, do Castelo. Surpreendidas, as duas freiras viram reaparecer o profetista. Nervoso, avisou-as: Tá perigoso, tá muito perigoso. Andam à nossa procura. Já conseguiram pegá os outros... Havia outros como nós?, perguntou irmã Alice, curiosa. O profetista informou que mais prisioneiros se tinham evadido.

Das celas do outro lado do Palácio. Mais dji vintji, mas já os pegaram a todos. E já sabem dji nós. O padri os avisou, tá na cara... Irmã Margarida recordou as palavras do seu confessor: os guardas da Inquisição (maldita) iriam andar à procura do profetista e de irmã Alice, casos mais graves, mas ninguém se ia preocupar com ela. Não sabia se tais palavras eram sábias, mas, a dar-lhes validade, se permanecesse junto daqueles dois seria presa fácil. Se sairmos do Rossio, nunca nos vão encontrar, disse». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Ninguém reparou, e o profetista levantou-se, veloz, e afastou-se cerca de vinte metros, escondendo-se no meio de quem passava»

 

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«(…) Quando a terra começou a tremer, Bernardino assistiu, horrorizado, à queda daquelas enormes estruturas. A terra tremeu duas vezes no espaço de pouco tempo, e o improvisado parque animal nos jardins reais entrou em convulsão. Pássaros voaram, aos guinchos; macacos fugiam das árvores em queda; leões e pumas rugiam, provavelmente tão aterrados como os poucos humanos que por ali andavam; e até os elefantes e os rinocerontes pareciam siderados pela fúria dos tremores da terra. Uma nuvem de poeira castanha subiu da terra para o céu, e Bernardino afastou as folhas das árvores e os ramos que tinham caído por cima dele. Dois domadores de leões surgiram, preocupados, pois as jaulas tinham abatido e as feras começavam perceber que podiam abandonar os locais de cativeiro. Ouviam-se muitos gritos, vindos da igreja, e Bernardino alarmou-se. Teria o rei sido ferido pelo terramoto? Decidiu regressar à igreja, mas deu conta de movimento perto de si, e viu um pequeno puma, do tamanho de um gato, a correr na sua direcção, assustado. Seguiu-se um rosnar desagradável, vindo de trás de uma árvore, e nem parou para pensar. Desatou a correr, atravessando o jardim aos pulos, enquanto os pássaros cacarejavam nas suas costas. Só parou junto do portão do jardim, que caíra com os abalos. Viu alguns homens e gritou-lhes: Cuidado! Há leões e pumas à solta! Assustados, os guardas rapidamente tentaram recolocar o portão nos fechos. Bernardino seguiu, a correr, até à Igreja, e só se tranquilizou quando viu a figura do rei. O Monarca José I estava de pé. Combalido, mas vivo.

Pelos meus cálculos, mais ou menos ao mesmo tempo que o rapaz se cruzava connosco próximo da Sé de Lisboa, uma extraordinária visão se apresentava aos olhos de irmã Margarida. Ainda hoje me lembro da emoção com que ela me descreveu o Rossio. Ao ver a praça, irmã Margarida deduziu que a cidade inteira ali acorrera ao mesmo tempo. Havia milhares de pessoas a correrem de um lado para o outro, ou sentadas no chão a rezarem ou a chorar, e era como se naquele momento de infelicidade geral uma voz superior aos habitantes os tivesse mandado reunirem-se a ali, para partilhar a dor e tentar sobreviver em conjunto. Caminhava uns metros atrás do profetista e da freira mais velha quando reparou que, à sua esquerda, o Hospital de Todos-os-Santos não caíra, embora apresentasse fendas na fachada, que a rasgavam de alto a baixo. Às janelas, os doentes observavam o Rossio. Ao ver a freira mais velha estacar à sua frente, com cada vez mais dores na perna, irmã Margarida perguntou: Consegues continuar? A perna também lhe doía, mas não tanto que se visse forçada a parar. Se ficar p’ra trás, eles boltam a prender-me, protestou a mulher mais velha. E a ti tamvém. Num acredites no confessor, eles num bão deixar-te à solta. Estamos os três cundenados à morte pela Inquisição (maldita). Temos de fugir juntos. No entanto, o profetista não esperara por elas, e já ia muitos metros à frente, fundindo-se com a multidão. Pelo menos nós duas, sugeriu a freira mais velha.

Irmã Margarida sabia que o desejo da outra mulher em ficar junto dela não era inocente, mas o seu bom coração não lhe permitia deixá-la para trás. Vamos, disse. Irmã Alice passou o braço por cima dos ombros de irmã Margarida, e a rapariga carregou-a. Dias depois, confessou-me que sentira a mão da mulher mais velha a tocar-lhe levemente no peito, mas, como não sabia se era um gesto intencional ou fortuito, não a afastou. As duas foram caminhando, agora mais lentamente, observando a loucura geral que se apoderara dos habitantes de Lisboa. Havia quem puxasse corpos pelos pés, arrastando-os pela praça, sem se perceber qual o destino que lhes iriam dar. Havia mulheres coxas, que gritavam de dor ao andar, usando traves cheias de pregos como bengalas. Havia homens deitados no chão, a sangrarem e a gritarem, que pareciam loucos, fazendo gestos rápidos, como se estivessem a afastar as moscas no ar, mas que só combatiam as terríveis visões que lhes povoavam a mente. Havia crianças, sem pernas ou sem braços, e até sem cabeça.

Muitos estavam agrupados e rezavam, pedindo perdão pelos seus pecados. As pessoas não sabiam o que fazer a seguir, e não havia médicos, nem ninguém para minorar as dores. Meu Deus, murmurou irmã Margarida, aterrorizada. Num olhes, criança, ordenou-lhe a mulher mais velha. Bamos, bamos. Temos de nos afastar, para que os guardas num nos encontrem. Foram atravessando aquela miséria até que chegaram a meio da praça e viram o profetista, sentado no chão, junto a um grupo de pessoas, como se fizesse parte dele. Pareciam ser duas famílias amigas, com homens, mulheres e crianças, e alguns lamentavam-se, mas outros recordavam a sorte que tinham tido, e as coisas que tinham conseguido tirar de casa a tempo. Ao lado, estavam pousados alguns baús de madeira, em cima dos quais se viam peças de roupa soltas. Irmã Margarida compreendeu de imediato qual era a ideia do profetista, e segundos mais tarde viu-o, pelo canto do olho, a roubar um casaco. Ninguém reparou, e o profetista levantou-se, veloz, e afastou-se cerca de vinte metros, escondendo-se no meio de quem passava». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Depois, levantara-se e, pensativo, dera uns passos pela sala. Bernardino insistira: este Santamaria foi preso pelos franceses, que o entregaram como um acto de boa vontade»

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«(…) O anterior rei, João V, recusara-se a pagar o resgate do navio, abandonando os seus tripulantes. Esta parte da história era verídica, pois Bernardino lembrava-se bem do caso, apesar de já terem passado muitos anos. No entanto, o autor da petição acrescentava que fora obrigado, para sobreviver, a enveredar pela vida de pirata, caso contrário seria morto pelos árabes. Agora, que estava de volta a Portugal pela primeira vez, relembrava a sua nacionalidade original, a sua fidelidade ao rei e pedia clemência e liberdade. Bernardino espantara-se com a assinatura da petição. Conhecia o nome, e lembrava-se bem daquele rapaz, muito jovem, que também fizera parte do grupo dos amigos fiéis de Sebastião José Carvalho Melo. E esse era, obviamente, o problema. Ao longo de mais de um mês, Bernardino não tivera coragem de falar no caso a Sebastião José. Até que chegara o dia em que não fora possível adiar mais. Como dizes que o homem se chamava?, perguntara Sebastião José. Agora ou no passado?, questionara Bernardino. No passado. Ao ouvir o meu nome português, Sebastião José ficara silencioso. Depois comentara: passaram muitos anos... Temeroso, Bernardino contou-me que acrescentara de imediato: não acredito nesta história. O tal Santamaria, um pirata, deve ter ouvido falar no barco português que ficou por lá, sem o resgate ser pago, e agora está a tentar fazer-se passar pelo verdadeiro português que ia no barco, que provavelmente está debaixo de terra há muitos anos. É uma artimanha, de certeza.

Sebastião José relera a petição. Depois, levantara-se e, pensativo, dera uns passos pela sala. Bernardino insistira: este Santamaria foi preso pelos franceses, que o entregaram como um acto de boa vontade. Se o libertarmos, vamos ficar malvistos... O ministro só se decidiu a falar algum tempo depois: um pirata é um criminoso. Pela minha parte, fica na cadeia, seja ele quem for. Mas, formalmente, não tenho poderes para libertar presos. Com o secretário do Reino doente, só o rei pode aceitar ou negar essa petição. Terás de levar-lhe o caso amanhã. Bernardino assim fez, e era essa a razão de viajar agora naquela carruagem, acompanhando a corte até Belém. De certa forma, espantava-o um homem tão resoluto como Sebastião José não ter tomado qualquer decisão acerca daquela estranha petição, mas só podia especular sobre as razões. De repente, a carruagem parou. Tinham chegado ao destino. As duas aias sacudiram as suas saias e compuseram-se, com trejeitos femininos. Uma delas, mais afoita, dirigiu-se ao confessor real: padre Malagrida, não leve a mal, mas estou em pecado e gostaria de me confessar antes da missa. O senhor padre pode fazê-lo? O jesuíta franziu a testa: não tenho tempo para ti, pecadora. Mas que fizeste? Como conspurcaste a tua alma? Aflita, a aia não ousou revelar as suas faltas em frente de estranhos. O padre Malagrida fez uma careta: não interessa... As mulheres são filhas do mal, transportam o demónio dentro delas. Não tenho tempo para ti, pecadora, vou confessar o rei antes da missa...

A criada fez um aceno submisso com a cabeça, e o confessor Malagrida saiu pela porta da carruagem. Bernardino encolheu os ombros e incentivou a rapariga: há mais padres na igreja, arranjas um confessor de certeza. Saltou da carruagem e apreciou os pátios, atulhados com a chegada da comitiva real. Centenas de pessoas tinham acompanhado o rei desde o Terreiro do Paço. Além dos cocheiros, dos soldados, das criadas e das aias, das cozinheiras e dos ajudantes-de-campo, dos escudeiros e das dezenas de escravos e escravas, havia também muitos nobres que tinham querido ouvir a missa junto da família real. Bem dizia Sebastião José que aquela gente se alapava ao rei, como carraças a um cão, mas pensamentos desses não eram admissíveis a alguém como Bernardino. O ajudante de escrivão observou a rainha e as suas filhas a recolherem aos seus aposentos, e viu o padre Malagrida aproximar-se do monarca José I, que o saudou. Trocaram palavras, e depois Malagrida seguiu uns passos atrás do rei, a caminho do palácio. Iria certamente apoderar-se dos pecados reais com voracidade, o jesuíta.

Deixando-se ficar nos pátios, Bernardino reflectiu na misteriosa petição. Seria eu quem dizia que era? Bernardino recordava-se de um bom moço em jovem. Pelos vistos tinha tido azar na vida, fora abandonado pelo rei anterior e enfiado nas masmorras árabes. Custava-lhe ter dito mal de mim, mas a última coisa que desejava era escarafunchar nas feridas do passado de Sebastião José. Era melhor deixar as coisas correrem o seu curso. Talvez o rei decidisse a minha libertação, reparando o erro do seu pai. A missa começou a horas e a maioria dos fiéis ou entrou na pequena igreja ou ficou junto à porta, escutando os padres e os seus cânticos em latim. Porém, Bernardino depressa perdeu a paciência. Sem dar nas vistas, decidiu-se por umas voltas aos jardins do palácio. Conhecia a predilecção especial do rei pelos animais exóticos, e tinha mais uma boa oportunidade para os apreciar sem que ninguém o incomodasse. Aproximou-se da zona das jaulas e entusiasmou-se ao ver os leões, enormes, com frondosas jubas a envolverem-lhes o focinho. Corriam de um lado para o outro, pareciam agitados e nervosos, mas sempre tivera a ideia de que eram assim por natureza». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,

terça-feira, 28 de julho de 2020

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Só vários meses depois do terramoto, já de novo preso, é que tomei conhecimento do que acontecera naquelas horas em Belém, aonde o rei José I e a corte foram confrontados com o sismo»

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«(…) Encolhi os ombros, despi as roupas de prisioneiro e vesti umas calças e uma camisa que encontrara no armário. Contrariado, o árabe mudou também de roupa. Contudo, não encontrámos sapatos que nos servissem e tivemos de manter os que trazíamos da prisão, uma espécie de socas de pano, nada úteis para correr naquele solo escavacado. De repente, ouvi o árabe a falar sozinho, e vi-o perto de outro armário, onde descobrira dois casacos castanhos. Eram demasiado pomposos para nós, e disse-lhe: quem nos vir com eles vai desconfiar. Com pena, Muhammed atirou os casacos para o soalho. Estava na altura de ir embora, mas pediu-me que esperasse mais um pouco, e abriu mais gavetas, ao fundo da sala. O que fazes? Vamos, protestei. Esperar, haver sempre jóias... Esvaziou as cómodas, mas desistiu, desiludido. Gente sovina, murmurou. Se calhar, tiveram tempo para levar as jóias, afirmei. Saímos da casa, em direcção à fonte. Quando lá chegámos, vimos os soldados, e escondemo-nos. Foi aí que assistimos à cena que há pouco contei: a chegada do rapaz, os seus gritos, os soldados a correrem atrás do espanhol, o Cão Negro a aparecer e o rapaz a fugir. Esperava que o Cão Negro o perseguisse, mas, ao ver a fonte, o espanhol parou de correr, e a sua escolta também. Havia pessoas, feridas e combalidas, à espera da sua vez de beber, mas o Cão Negro passou à frente delas e, quando um homem o tentou parar, ele abateu-o com a barra de ferro. Assustadas, as outras pessoas afastaram-se imediatamente, e o Cão Negro e os dois espanhóis beberam e depois lavaram-se. Dois homens ganharam coragem e voltaram a aproximar-se da fonte, mas cometeram um erro. Os três bandidos desataram a bater-lhes, mataram-nos e roubaram-nos. Só depois beberam mais água e se foram embora, carregando às costas a roupa roubada. Muhammed e eu saímos do esconderijo dez minutos mais tarde, dirigimo-nos à fonte e bebemos água. Mais gente estava a aparecer e, mesmo que observassem os corpos dos caídos no chão, ninguém se importava com eles. As pessoas só queriam beber água, não queriam saber quem tinha morrido, nem como, nem porquê.

Só vários meses depois do terramoto, já de novo preso, é que tomei conhecimento do que acontecera naquelas horas em Belém, aonde o rei José I e a corte foram confrontados com o sismo. Nos dias que se seguiram, soube-se que o rei não morrera, ao contrário do que chegou a correr nas primeiras horas, e nem sequer ficara ferido. Também se soube que, em Belém, os estragos haviam sido menores do que no centro da cidade; não se sentiram os efeitos das ondas gigantes que inundaram o Terreiro do Paço; e os terríveis incêndios, que alastraram durante dias nas zonas por onde nós andávamos, nunca chegaram lá. Poupada a corte a males maiores, o monarca conseguiu, com a ajuda de Sebastião José Carvalho Melo, reorganizar a vida do reino. Tudo isto era do conhecimento geral, mas os detalhes, os pormenores do que se passara em Belém, só me foram revelados na visita que Bernardino, um ajudante de escrivão ao serviço do rei, meu conhecido do passado, e que por golpe do destino iria acabar como ajudante principal de Sebastião José Carvalho Melo, me fez à prisão. Naquela manhã do dia 1 de Novembro de 1755, Bernardino tinha acompanhado a corte desde o Terreiro do Paço até Belém, num passeio matinal que se iniciara muito cedo, pois o rei queria ir ouvir missa junto aos Jerónimos, e obrigara todos a madrugarem, para que a comitiva não se atrasasse. Sonolento e contrariado, Bernardino apresentara-se no pátio do Paço para acompanhar a família real naquela expedição. Na sua carruagem, viajavam também duas aias e um padre jesuíta, chamado Malagrida, um homem agreste e desagradável, que o rei tinha em grande estima e a quem se confessava. Tal como muitos outros, Bernardino considerava-o enervante e sinuoso, e não conseguia trocar com ele mais do que duas palavras, além de embirrar com a sua barbicha de bode, um triângulo pontiagudo que se prolongava até meio do peito.
Como as aias eram gordas e feias, e o padre rezava o terço em silêncio, apenas mexendo os lábios sem produzir qualquer som, à medida que avançava ave-marias no seu rosário, Bernardino adormeceu entre Remolares e a ponte de Alcântara. Só acordou na Junqueira, onde apreciou os estéticos palacetes dos muitos nobres que se haviam ali instalado. Sorumbático, o padre Malagrida produziu comentários pouco abonatórios sobre a luxúria dos proprietários, um exemplo mais da perdição geral que, segundo ele, contaminava a cidade. Sem lhe dar troco, Bernardino fingiu adormecer de novo, mas mais não fez do que passar mentalmente em revista os seus afazeres. Depois da missa, o rei certamente desejaria conhecer os assuntos pendentes, mas, tirando aquela invulgar petição, não havia nada de especial com que valesse a pena incomodar Sua Majestade num sábado.
Com o secretário do Reino cada vez mais velho e doente, os assuntos acumulavam-se, e muitos tinham de ser directamente levados ao rei, ou então dirigidos ao secretário dos Negócios Estrangeiros, a quem Sua Majestade recorria cada vez mais. Bernardino intimidava-se bastante na presença de Sebastião José Carvalho Melo. O homem era altíssimo e os seus modos ríspidos causavam apreensão. Não era boa ideia cair em desgraça junto dele. Além disso, Bernardino temia que Sebastião José de Carvalho e Melo o reconhecesse dos tempos da juventude, quando pertencera ao grupo de jovens arruaceiros liderados pelo actual secretário dos Negócios Estrangeiros. Era sabido que Sebastião José não gostava que lhe relembrassem esse passado desviante e de má reputação, quando era conhecido por o Carvalhão, e por isso Bernardino sempre evitara reavivar as memórias desses tempos, curtos, em que ambos tinham convivido. Contudo, aquela estranha petição tinha de obter uma resposta. Provinha de um prisioneiro do Limoeiro, conhecido pelo nome de Santamaria, um pirata árabe que tinha sido entregue às autoridades portuguesas pelos franceses, e que agora revelava ser português. Segundo dizia, nascera em Portugal, aqui se tornara marinheiro, e só depois fora preso pelos árabes». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

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quinta-feira, 12 de março de 2020

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Dirigimo-nos a uma das casas e entrámos. Passámos largos minutos a vasculhar, até descobrirmos um armário com roupas, de homem e de mulher…»

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«(…) O árabe abriu um grande sorriso, levou a mão ao bolso das calças e mostrou-me umas moedas. Suspirei, com algum alívio: não é muito, mas já é alguma coisa. E Santamaria ter faca..., acrescentou ele. Com a faca e o dinheiro, as nossas possibilidades de fuga aumentavam. Observei a azáfama no interior da Sé e comentei: que confusão, cada vez chega mais gente. Um homem dirigia as operações de ajuda, executadas por um grupo de padres e frades. Ao examinar melhor a sua cara, descobri que era monsenhor Sampaio, o patriarca de Lisboa. Recordava as suas homilias, anos atrás. Ir conhecer ele?, perguntou Muhammed. Sim, respondi, mas ele não me conhece. Ainda por cima, assim vestidos, vai perceber que somos presos e chama os soldados. Muhammed mostrou-se preocupado: então, melhor nós ir fugir! Tínhamos de sair dali. Dirigimo-nos à saída principal, e foi nesse momento que se deu o terceiro abalo, aterrador como os outros, embora mais curto. A Sé abanou e ouviu-se um clamor, pois muitos pensaram que tinha chegado a sua hora. De cócoras, encostados a uma parede, Muhammed e eu esperámos que o tecto nos caísse em cima, o que não aconteceu. Vimos, do lado oposto da igreja, um desmoronamento, mas foi tudo. Mais uma vez, a antiga Sé romana resistiu. Porém, as pessoas descontrolavam-se, em pânico. Algumas levantavam-se e corriam, caíam ao chão, voltavam a levantar-se e tornavam a correr, saindo à pressa da igreja. Outras, ajoelhadas, erguiam os braços ao alto e berravam: misericórdia, misericórdia!!!
Muhammed e eu aproveitámos o alarido para sair por uma porta lateral da igreja. Na rua, nas redondezas, uma enorme nuvem de poeira quase nos cegou. O árabe espirrou e tossiu, antes de afirmar: pó ir queimar garganta, ir precisar água... Também eu estava cheio de sede, com a boca e a língua e a garganta ásperas. Inesperadamente, uma memória veio-me ao espírito. Há muitos anos, num domingo, viera à missa à Sé, seguindo uma rapariga formosa. Conversara com ela junto a uma fonte, enquanto outras mulheres enchiam os cântaros de água e os homens tagarelavam. Há uma fonte aqui perto, disse. Só preciso de me lembrar para que lado era... Dirigimo-nos à porta principal da Sé, para me situar, e visualizei o local da fonte. Apontei nessa direcção, mas o árabe disse-me, preocupado: cão Negro ir andar ali, nós não ir. Bufei, chateado. Ele tinha razão. Devíamos ir rio, ir fugir, sugeriu. Eu sei. Mas sem água vai ser difícil.
Então, o árabe olhou para uns prédios em frente, que ainda estavam de pé, e declarou: casas ter água. Abanei a cabeça: não, não depois do que aconteceu... Não deve haver uma vasilha que tenha resistido. Temos mesmo de ir à fonte... Estás com medo, rato? O árabe irritou-se: Muhammed não ter medo! Insultei-o, a rir: mentiroso. És um rato medroso e foi por isso que fugiste e não me ajudaste! Só pensavas era no cu do francês! A expressão no rosto dele mudou, passando de séria a divertida. Deu uma gargalhada: Santamaria ter mania, Santamaria só falar disso! Coloquei um ar indignado: eu?! Tu é que és assim! Alá fez-te ao contrário e, em vez de gostares de mulheres, gostas é de franceses bonitinhos! Parei e rimo-nos de novo, bem-dispostos, e depois ficámos em silêncio, apenas sorrindo e compreendendo, dentro de nós, a sorte que havíamos tido, pois estávamos vivos e a dizer piadas. Quando esse efeito passou, o árabe perguntou: Santamaria ir fugir de Lisboa ou ir ficar? Recordei a petição que enviara a Sebastião José e que ficara sem resposta, e depois revelei o meu sentimento: já passaram muitos anos, ninguém se lembra de mim aqui. Se me apanharem, prendem-me outra vez. E a ti também. Melhor fugir, afirmou o árabe. Apontou de seguida para as casas que haviam resistido: ir procurar roupas novas? Sorri: o árabe tinha boas ideias. Dirigimo-nos a uma das casas e entrámos. Passámos largos minutos a vasculhar, até descobrirmos um armário com roupas, de homem e de mulher. Brinquei com Muhammed: as de homem para mim, as de mulher para ti! Bem-disposto, Muhammed pegou num vestido e colocou-o à sua frente, como se o provasse a ver se lhe servia, e começou a dançar, divertido, imitando os trejeitos de uma prostituta numa estalagem de Tortuga. Rimo-nos. Por momentos, senti a nostalgia das nossas viagens de piratas, e saudades daquelas bailarinas sempre disponíveis a troco de umas moedas. Muhammed pigarreou, numa voz rouca e desagradável: soy una vieja putana, se me quieres vien... Dei uma gargalhada: o árabe era um comediante talentoso, sempre me haviam divertido as suas pantominas. Embalado, virou-se de costas para mim, desceu as calças e abanou o seu rabo branco à minha frente, enquanto trauteava: yo soy para ti, vien, vien! Explodi numa sonora gargalhada e atirei-lhe com os sapatos ao rabo. Mais surpreendido do que irritado, parou a sua exibição e enfrentou-me: que passar? Gritei-lhe: pára com isso, velho palerma, temos de mudar de roupa! Fingiu-se ofendido, como uma donzela: Santamaria muito sério, Santamaria nunca ir folgar...» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Muhammed e eu permanecíamos há longos minutos na Sé de Lisboa, onde se aglomerara muita gente. O velho edifício não caíra, e à medida que iam passando por ele muitos iam entrando»

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«(…) Sabes onde hai água? O rapaz respondeu: há uma fonte numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma careta assustadora, o salafrário ameaçou-o novamente: se my mientes, te arranco el corazón com los dientes... Não, gemeu o rapaz, é verdade, há água ali. O Cão Negro libertou-o e ordenou: vien. Entraram os dois dentro de casa. No meio da sala, em cima de um sofá, a mulher estava deitada de costas, com as saias levantadas, e um dos outros espanhóis, já com as calças a meio dos joelhos, preparava-se para penetrá-la. Ei cabrón, gritou o Cão Negro. O companheiro voltou-se para trás, aflito, e riu nervosamente. Ei, Cã Niegro, también tenemos derecho... O chefe ergueu-lhe o punho à frente dos olhos e perguntou: quien manda? Tu. Entonces, sou yo lo primero. O Cão Negro baixou as calças enquanto o outro se afastava um pouco. O rapaz assistiu aos seus actos. A mulher chorava; e depois do chefe veio o homem que ele afastara, e depois o terceiro homem praticou o mesmo acto, sempre com ela a chorar. O rapaz não podia fazer nada e quando aquilo acabou estava com medo que o quisessem a ele, mas nenhum dos três o quis. O Cão Negro proclamou que ela ainda aguentava outra rodada geral, e todos se riram muito e só depois se lembraram do rapaz, e o Cão Negro mandou-o procurar um jarro, ou uma panela grande, para ir buscar água à fonte, acompanhado por um dos espanhóis.
Dirigiram-se até à fonte pública e, quando lá chegaram, perceberam que muitos outros tinham tido a mesma ideia, havia muita gente próxima da fonte, incluindo dois guardas da prisão. De imediato, aos gritos, o rapaz denunciou o bandido como um fugitivo do Limoeiro. Ao ouvi-lo, o homem fugiu, deixando cair no chão o jarro e a panela. O rapaz contou aos soldados o que se passara e eles partiram, a correr, na direcção da casa onde estava o Cão Negro. Foi nesse momento que vi o rapaz pela primeira vez. Muhammed e eu, escondidos atrás de um casebre, assistimos ao que se passou de seguida. Junto à fonte, o rapaz esperou a sua vez de beber água. Entretanto, ouviram-se tiros e apareceu o Cão Negro e os seus dois homens, que o teriam apanhado, se ele não tivesse fugido. Só o voltei a ver horas mais tarde, mas a irmã Margarida contou-me que estes acontecimentos obrigaram o rapaz a demorar mais tempo a chegar ao que restava da sua morada. Ficou desolado e alarmado. A sua casa já não existia. Não sabia onde procurar a irmã e uma grande tristeza invadiu a sua alma, ao pensar que o mais certo era ela ter morrido.

Muhammed e eu permanecíamos há longos minutos na Sé de Lisboa, onde se aglomerara muita gente. O velho edifício não caíra, e à medida que iam passando por ele muitos iam entrando. Feridos, de braços ao peito, nucas ensanguentadas, vestes rasgadas, coxeando, cobertos de pó, imploravam por ajuda e água. Sentados em grupos ou solitários, no chão, os desgraçados choravam, gemiam, soluçavam, rezavam, criando na igreja um murmúrio geral lúgubre, uma ladainha triste e soturna. Muhammed e eu fomos circulando no interior, sempre a vigiar as portas, para ver se o Cão Negro também lá entrava à nossa procura. No entanto, nem ele nem os seus dois companheiros apareceram. Pedras ir cair em cima deles, murmurou Muhammed. Sorri e depois coloquei no rosto um ar exageradamente sério e disse: isso querias tu, seu rato traidor. Espantado, Muhammed perguntou: rato traidor? Muhammed não ir trair Santamaria! Olhei-o fixamente, fingindo-me zangado: deixaste-me sozinho a levar pancada! Se não fosse o tremor de terra, a esta hora já tinha esticado o pernil!
Muhammed estacou, sinceramente admirado: eles ir atacar Santamaria? Eu indignei-me: o Cão Negro quase me matou com a barra de ferro! Olha! Mostrei os sítios onde o espanhol me acertara: apanharam-me à saída das latrinas e depois enfiaram-me na sala ao lado. Se não fosse o terramoto, tinha morrido! E tu, meu saca…, meu crápula cobarde, escondido como um rato! Nada de vires ajudar o teu amigo! Foi a vez de Muhammed se indignar: Muhammed não ir ver eles ir bater em Santamaria! Ignorei-o e prossegui, sempre em tom acusatório: onde é que tu andavas, salafrário? A fazer poucas-vergonhas com os franceses logo de manhã? Eu ao menos ajudei-te. Se não fosse eu, o soldado tinha-te varado com um balázio! O árabe, tão falsário como eu, manteve uma indignação intensa: eu ir no pátio, ir jogar dados com franceses! Ir ganhar dinheiro antes de tudo ir cair! Bufei, fingindo que não acreditava nele, mas depois sorri. Muhammed era tudo menos corajoso, mas mesmo assim sabia que podia contar com ele. Perguntei: tens dinheiro?» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo»

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«(…) E Gold, o protestante, comentou comigo: Deus curioso, your God! Todo dia, everyday, padres everywhere! Today, terramoto, sofrimento, not one priest! Nem um, damn! Where are eles, quando we need? Sorri perante o seu habitual sarcasmo. Mas não era verdade. Naqueles dias, a vaguear pela cidade destruída, encontrámos muitos homens e mulheres de Deus, e percebemos que estavam tão perdidos como nós.
Dos vários personagens que conheci naqueles estranhos dias, o rapaz foi curiosamente o primeiro que vi. Cruzámos os nossos destinos logo na primeira manhã, e quando falei com ele já sabia o que tinha feito, a coragem que revelara. Hoje, tenho pena de não o ter elogiado. Talvez as coisas tivessem sido diferentes, talvez tivesse olhado para mim com outros olhos. Mas não foi assim e não há nada que possa fazer para mudar a história. O rapaz estava ainda próximo da arruinada Igreja de São Vicente de Fora quando se deu o terceiro abalo. Embora determinado a procurar a irmã, não lhe fora fácil atravessar aquele descalabro. Não existiam ruas, nem casas, nem prédios onde antes tinham existido. Quando a nuvem de poeira levantou, viu no meio daquela irrespirável bruma o Castelo de São Jorge e mais em baixo a Sé, e foi assim que se orientou em direcção à sua casa, próxima da Igreja da Madalena. Naquelas circunstâncias, andar era difícil: havia fendas inesperadas e fundos precipícios no terreno; as ruas apresentavam-se impedidas, atulhadas de pedras. Demorou a aproximar-se do Castelo e das suas muralhas. Os mortos atapetavam o chão, em posições complexas, semelhantes a estátuas esculpidas por desvairados. As pessoas corriam, atarantadas, como as crianças perdidas, aos berros. O rapaz prosseguiu, determinado. Próximo da Graça, uma pequena multidão observava o Rossio, em baixo, e a colina oposta, do Bairro Alto. Nada era como tinha sido. A cidade abatera, como que deitando-se no chão, e nem os seus edifícios mais simbólicos haviam escapado. Na praça, o Hospital de Todos-os-Santos era o único que parecia intacto, mas ao seu lado tanto o Convento de São Domingos, como o Palácio da Inquisição (maldito), haviam sido fortemente atingidos.
Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo, mas não encontrou razão. Por isso, cessou de procurar motivos e continuou a descer para a Sé, e com ele desciam muitas pessoas que tinham subido para as festas em São Vicente de Fora e agora regressavam às suas casas. Eram já pessoas diferentes, mudadas para sempre, partidas por dentro, cheias de mágoa e desespero e medo do futuro. Tinham ido encontrar-se com Deus naquele feriado e haviam sido massacradas de uma forma inimaginável. Ao passar perto da Sé ouviu tiros. Deviam ter fugido prisioneiros do Limoeiro e os soldados tentavam abatê-los, foi a sua conclusão, e decidiu ter precaução, receando ser apanhado no fogo cruzado dos confrontos. Algumas casas tinham ficado intactas, bem como a Sé, que, orgulhosa, apenas mostrava os flancos danificados. Foi então que, mesmo à sua frente, viu três homens a saírem de uma casa. Arrastavam um desgraçado, provavelmente o proprietário. Atiraram-no ao chão e deram-lhe um tiro, abatendo-o. O rapaz escondeu-se atrás de um monte de pedras e ficou a observar. Um dos homens, mais alto do que os outros dois, parecia ser o chefe. O seu cabelo e as suas barbas eram negros e dos seus olhos e dos seus gestos emanava uma energia maligna. Vasculhou os bolsos do proprietário e retirou um relógio. Depois, os três bandidos reentraram dentro da casa e ouviram-se mais gritos, seguidos de um silêncio mais assustador do que o barulho.
O rapaz aproveitou o momento e recomeçou a andar, mas foi surpreendido pelo regresso abrupto do homem mais alto, que se dirigiu ao morto. O rapaz sentiu medo. O grandalhão observou-o, enquanto vasculhava as roupas do defunto. Sorriu quando encontrou uma chave e depois perguntou ao rapaz: qué passa? O rapaz não respondeu, mas percebeu que o ladrão era espanhol. Um dos seus companheiros saiu também de casa, trazendo uma mulher pelos cabelos, que implorava: não, não, por favor, não! O homem enorme olhou para o rapaz e riu-se, e depois perguntou: hay visto una mujer morrer? O rapaz respondeu: sim. A minha mãe. O energúmeno soltou uma gargalhada e perguntou-lhe: como hay morrido tu pobre madre? O rapaz contou-lhe: morreu lá em cima, em São Vicente de Fora, na igreja. Executando uma mímica maldosa, o bisonte benzeu-se e murmurou: paz à su alma... Pero, esta vai gozar mucho más que tu madre... Aproximou-se da mulher, agarrou-a pela nuca e depois ordenou ao seu subordinado: leva-la!!! O outro riu e acatou a ordem, mas antes aconselhou-o, apontando na direcção do rapaz: matá-lo. Muertos no hablam con soldados... O homem mais alto deu nova gargalhada, aproximou-se do rapaz e perguntou: chico, quieres morrer? O rapaz disse que não. O matodonte agarrou-o pelo cachaço, levou a mão ao cinto e empunhou uma faca, que depois lhe encostou à garganta. A mi me gustan los chicos... Apesar do medo, o rapaz disse: eu só queria água... O bandido, ao ouvir falar em água, pensou uns segundos». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Regressaram os gritos, os gemidos e os seres que, como répteis, saíam debaixo das pedras, para prosseguir a sua caminhada. O capitão Hugh Gold limpou o pó da cara e depois lembrou-se da mulher…»

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«(…) Embora muitas paredes ainda estivessem de pé, a maior parte dos prédios caíra. Montanhas de detritos haviam nascido no lugar da rua. O ar estava quase irrespirável, carregado de nuvens escuras de poeira que subiam aos céus. O capitão Hugh Gold reparou então que estava de camisa de noite e de chinelos nos pés. Sentiu um ligeiro embaraço, mas, ao ver quem passava à sua frente, aceitou melhor a sua sorte. A maioria das pessoas estava nua. Homens e mulheres e crianças sem nada em cima da pele, só poeira e sangue e terra. Andavam sem falar, só a gemer, em pânico. Os olhos eram o mais impressionante: esgazeados, a fitarem o vazio, sem verem os outros, sem verem nada a não ser o horror das imagens que tinham visto momentos antes. Ninguém se importava com a sorte de ninguém. Era como se cada um daqueles seres humanos estivesse a sós no mundo, a sós com o seu sofrimento e a sua angústia e o seu desespero, e nada mais existisse do que a vontade individual de escapar dali. Os maridos esqueciam as mulheres, os pais e as mães esqueciam os filhos. O egoísmo individual, contou-me Gold, era um imperativo totalitário. Nos primeiros momentos depois do grande terramoto, os humanos transformaram-se em seres que só pensavam na sua própria sobrevivência. Morrer era ficar para trás, como ficaram o carcereiro, a mãe do rapaz, a criada de Gold; e ficar para trás, mesmo que vivo, era morrer para os outros. Viver era só fugir, sair de onde se estava, e foi o que fizemos, os que sobreviveram.
Além disso, havia aquela comoção brusca e inesperada que provocava a visão dos cadáveres. As pessoas também fugiam disso. O capitão inglês relatou-me que, no espaço de apenas vinte metros, viu uma mulher sem cabeça, uma criança com o tronco e os braços esmigalhados, e também uma perna solitária, erguida para o céu, emergindo de um monte de caliça. Não admira que as pessoas também fugissem destes insuportáveis monumentos macabros. Quando se libertou desse estado de perturbação, Gold lembrou-se da esposa. Decidiu subir a rua, na direcção em que ela fora para a missa. Escalou os montes de entulho, cruzando-se com mais pessoas nuas. Caminhavam todas para o rio, descendo para o largo da Igreja de São Paulo. Ele foi no sentido contrário, à procura da mulher. Encontrou-a ao fim de cinquenta metros, a touca ainda na cabeça, tingida de sangue. Encostada a uma parede, estava ligeiramente tombada para a direita, também morta. Hugh Gold reconheceu-me a culpa que sentiu nesse momento por, minutos antes, ter desejado que ela desaparecesse da sua vida. Sentou-se no chão, ao lado do cadáver da mulher, e pensou que, se tivesse vindo ao andar de baixo falar-lhe, dar-lhe o dinheiro que ela queria, talvez ela agora estivesse viva. Contudo, não lhe adiantava pensar desta forma. Poderia levá-la dali? Examinou as hipóteses, mas, com o braço naquele estado, não a conseguia carregar. Para mais, para onde a levaria, se a sua casa ruíra?
À sua frente, prosseguia a peregrinação de seres sujos, como que saídos de um banho de lama, mas notou que agora alguns já falavam. À medida que os abalos se afastavam no tempo, a voz das pessoas ia regressando, bem como uma certa estabilidade dos seus olhares. Hugh Gold decidiu que era melhor descer também na direcção do rio. Deixou a mulher no local onde a encontrara e recomeçou a caminhar, fazendo o percurso inverso. Ao passar perto de uma parede que se mantivera de pé, ouviu uma voz a chamar. Uma mulher tinha uma criança ao colo, mas estava incapaz de se libertar das pedras que a cobriam. O inglês ajudou-a, e ela levantou-se, sempre com o bebé ao colo, muda. Olhava para ele, e depois para a rua, e depois para o filho que trazia nos braços. O capitão perguntou: the criança is viva? A mulher parecia alucinada, sem reacção. O capitão tocou na criança, que abriu os olhos, e então ela recuou e gritou: não!!!!
O capitão acalmou-a, mas ela segurou o bebé com mais força junto ao peito, como que para protegê-lo. Gemeu e soluçou. O capitão subiu um monte de entulho e, no topo, fez um gesto para a mulher o seguir. Foram subindo e descendo os escombros, escutando os gemidos dos moribundos, a mulher carregando a criança, uns metros atrás do capitão. De súbito, um terceiro tremor abalou a terra, tão violento como os anteriores, mas de mais curta duração. Hugh Gold deitou-se numa cama irregular de pedregulhos, tentando proteger-se. Algumas estruturas que haviam resistido aos primeiros abalos tombavam agora, e quando tudo acabou, entre as nuvens de poeira, o capitão verificou que, na sua rua, já não restava nenhum prédio de pé. Ficou longos minutos deitado à espera de que fosse possível caminhar de novo e, quando se levantou, pasmou-se. Daquele local, antes uma rua lateral de Santa Catarina, com prédios dos dois lados e sem vistas, podia agora ver o rio lá em baixo e a outra margem. A cidade desaparecera, não passava de um cobertor de entulho, de onde se elevava um capacete escuro de poeira.
Regressaram os gritos, os gemidos e os seres que, como répteis, saíam debaixo das pedras, para prosseguir a sua caminhada. O capitão Hugh Gold limpou o pó da cara e depois lembrou-se da mulher que ajudara há pouco. Viu-a, soterrada, só a cabeça acima do nível da terra. Na sua boca aberta, um grito parecia ter ficado paralisado por uma golfada de caliça. A um metro da mãe, a criança sufocara igualmente. O capitão inglês deu meia volta, com o coração pesado, e desceu a colina. Quando chegou ao largo da Igreja de São Paulo encontrou muita gente como ele, almas perdidas que não sabiam o que fazer ou onde se dirigir. Todos estavam espantados com tanta desagregação, e havia já quem dissesse que Deus os castigava, até tinha destruído as igrejas, e assim era, pois a de São Paulo estava também ela em ruínas, e ninguém, nenhum dos milhares de padres ou frades ou freiras de Lisboa, aparecera para os confortar». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT