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«(…) Encolhi os ombros, despi as roupas de prisioneiro e
vesti umas calças e uma camisa que encontrara no armário. Contrariado, o árabe
mudou também de roupa. Contudo, não encontrámos sapatos que nos servissem e
tivemos de manter os que trazíamos da prisão, uma espécie de socas de pano,
nada úteis para correr naquele solo escavacado. De repente, ouvi o árabe a
falar sozinho, e vi-o perto de outro armário, onde descobrira dois casacos
castanhos. Eram demasiado pomposos para nós, e disse-lhe: quem nos vir com eles
vai desconfiar. Com pena, Muhammed atirou os casacos para o soalho. Estava na
altura de ir embora, mas pediu-me que esperasse mais um pouco, e abriu mais
gavetas, ao fundo da sala. O que fazes? Vamos, protestei. Esperar, haver sempre
jóias... Esvaziou as cómodas, mas desistiu, desiludido. Gente sovina, murmurou.
Se calhar, tiveram tempo para levar as jóias, afirmei. Saímos da casa,
em direcção à fonte. Quando lá chegámos, vimos os soldados, e escondemo-nos.
Foi aí que assistimos à cena que há pouco contei: a chegada do rapaz, os seus
gritos, os soldados a correrem atrás do espanhol, o Cão Negro a aparecer e o
rapaz a fugir. Esperava que o Cão Negro o perseguisse, mas, ao ver a fonte, o
espanhol parou de correr, e a sua escolta também. Havia pessoas, feridas e
combalidas, à espera da sua vez de beber, mas o Cão Negro passou à frente delas
e, quando um homem o tentou parar, ele abateu-o com a barra de ferro.
Assustadas, as outras pessoas afastaram-se imediatamente, e o Cão Negro e os
dois espanhóis beberam e depois lavaram-se. Dois homens ganharam coragem e
voltaram a aproximar-se da fonte, mas cometeram um erro. Os três bandidos
desataram a bater-lhes, mataram-nos e roubaram-nos. Só depois beberam mais água
e se foram embora, carregando às costas a roupa roubada. Muhammed e eu saímos
do esconderijo dez minutos mais tarde, dirigimo-nos à fonte e bebemos água.
Mais gente estava a aparecer e, mesmo que observassem os corpos dos caídos no
chão, ninguém se importava com eles. As pessoas só queriam beber água, não
queriam saber quem tinha morrido, nem como, nem porquê.
Só vários meses depois do terramoto, já de novo preso, é que
tomei conhecimento do que acontecera naquelas horas em Belém, aonde o rei José I
e a corte foram confrontados com o sismo. Nos dias que se seguiram, soube-se
que o rei não morrera, ao contrário do que chegou a correr nas primeiras horas,
e nem sequer ficara ferido. Também se soube que, em Belém, os estragos haviam
sido menores do que no centro da cidade; não se sentiram os efeitos das ondas
gigantes que inundaram o Terreiro do Paço; e os terríveis incêndios, que
alastraram durante dias nas zonas por onde nós andávamos, nunca chegaram lá.
Poupada a corte a males maiores, o monarca conseguiu, com a ajuda de Sebastião
José Carvalho Melo, reorganizar a vida do reino. Tudo isto era do conhecimento
geral, mas os detalhes, os pormenores do que se passara em Belém, só me foram
revelados na visita que Bernardino, um ajudante de escrivão ao serviço do rei,
meu conhecido do passado, e que por golpe do destino iria acabar como ajudante
principal de Sebastião José Carvalho Melo, me fez à prisão. Naquela manhã do
dia 1 de Novembro de 1755, Bernardino tinha acompanhado a corte desde o
Terreiro do Paço até Belém, num passeio matinal que se iniciara muito cedo,
pois o rei queria ir ouvir missa junto aos Jerónimos, e obrigara todos a
madrugarem, para
que a comitiva não se atrasasse. Sonolento e contrariado, Bernardino
apresentara-se no pátio do Paço para acompanhar a família real naquela
expedição. Na sua carruagem, viajavam também duas aias e um padre jesuíta,
chamado Malagrida, um homem agreste e desagradável, que o rei tinha em grande
estima e a quem se confessava. Tal como muitos outros, Bernardino considerava-o
enervante e sinuoso, e não conseguia trocar com ele mais do que duas palavras,
além de embirrar com a sua barbicha de bode, um triângulo pontiagudo que se
prolongava até meio do peito.
Como as aias eram gordas e feias, e o
padre rezava o terço em silêncio, apenas mexendo os lábios sem produzir
qualquer som, à medida que avançava ave-marias no seu rosário, Bernardino
adormeceu entre Remolares e a ponte de Alcântara. Só acordou na Junqueira, onde
apreciou os estéticos palacetes dos muitos nobres que se haviam ali instalado.
Sorumbático, o padre Malagrida produziu comentários pouco abonatórios sobre a
luxúria dos proprietários, um exemplo mais da perdição geral que, segundo ele,
contaminava a cidade. Sem lhe dar troco, Bernardino fingiu adormecer de novo,
mas mais não fez do que passar mentalmente em revista os seus afazeres. Depois
da missa, o rei certamente desejaria conhecer os assuntos pendentes, mas, tirando
aquela invulgar petição, não havia nada de especial com que valesse a pena
incomodar Sua Majestade
num sábado.
Com o secretário do Reino cada vez mais
velho e doente, os assuntos acumulavam-se, e muitos tinham de ser directamente
levados ao rei, ou então dirigidos ao secretário dos Negócios Estrangeiros, a
quem Sua Majestade recorria cada vez mais. Bernardino intimidava-se bastante na
presença de Sebastião José Carvalho Melo. O homem era altíssimo e os seus modos
ríspidos causavam apreensão. Não era boa ideia cair em desgraça junto dele.
Além disso, Bernardino temia que Sebastião José de Carvalho e Melo o
reconhecesse dos tempos da juventude, quando pertencera ao grupo de jovens
arruaceiros liderados pelo actual secretário dos Negócios Estrangeiros. Era
sabido que Sebastião José não gostava que lhe relembrassem esse passado
desviante e de má reputação, quando era conhecido por o
Carvalhão, e
por isso Bernardino sempre evitara reavivar as memórias desses tempos, curtos,
em que ambos tinham convivido. Contudo, aquela estranha petição tinha de obter
uma resposta. Provinha de um prisioneiro do Limoeiro, conhecido pelo nome de
Santamaria, um pirata árabe que tinha sido entregue às autoridades portuguesas
pelos franceses, e que agora revelava ser português. Segundo dizia, nascera em
Portugal, aqui se tornara marinheiro, e só depois fora preso pelos árabes». In
Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos
vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro,
2010, ISBN 978-972-461-986-6.
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