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A porta do mundo
«(…) Chegamos!, dizia-me o
barqueiro com insistência, vendo-me distraído, enquanto, já muito perto da
margem, contornava um obstáculo e fazia manobra para acostar ao cais. Frei Fuão,
chegava do alto de uma amurada o ronco de um mareante de nariz vermelho e
dentes podres, passe na boa hora vossa paternidade, que com o que os meus olhos
têm visto e os meus ouvidos ouvido já não hei mister vossa bênção!, e grunhia
uma gargalhada avinhada que preludiava o vomito. E eu seguia pensando que
também havia aí lugar para destemperos que certamente seriam frutos naturais de
tempos de tanta convulsão e novidade. Desembarquei na Ribeira, junto dos
estaleiros, que fervilhavam na azáfama da construção e restauro de embarcações.
Perto de mim os carpinteiros pregavam já as pranchas curvas do bojo de um
costado que os tanoeiros tinham afeiçoado. Mais adiante procediam calafates,
manejando hábeis o maúlo, à substituição da estopa das junturas, de uma velha
caravela por estopa nova que primeiro mergulhavam num caldeirão de piche para
em seguida a encalcar outra vez nas juntas das tábuas com a encalcadeira. Uma
nau já pronta, a madeira crua ainda por pintar, toda branca, lembrava uma
criança acabada de nascer-que milagre!
Envernizava-se, mais à frente,
uma outra e revestia-se, até à linha de água, de espessas chapas de breu, que
fervia em enormes panelões fumegantes. Na taracena, um galeão arrombado
aguardava a sua vez de ser curado das feridas havidas nas traições das
sirtes... Não poucas vezes, depois, nas minhas deambulações pela cidade, vinha
até ali presenciar a faina, ver uma nau, toda garrida, deslizar pela primeira
vez na rampa do estaleiro e entrar baloiçante na água que chapinava. Era uma
espécie de baptismo e assim o bem entendiam os mesteirais, pois esse acto era
para eles uma verdadeira festa, que celebravam engalanando a nau e bebendo
vinho em sua honra. Aconteceu um dia estar presente à largada de uma armada na
praia do Restelo, cerimónia que a presença do rei em extremo solenizou. Cantou-se
missa no recente e formoso mosteiro dos frades jerónimos e, em seguida,
caminhou-se em procissão até ao areal, onde os mareantes haviam de tomar os
batéis em direcção às naus, que se viam ao largo embandeiradas. El-rei e a sua
comitiva já tomavam lugar no varandim rendilhado do baluarte de Belém, de cujas
ameias chanfradas, no pátio em baixo, o bispo dava a bênção à armada e aos marinheiros.
Era o momento mais penoso! Cenas lancinantes de lágrimas, gritos e desmaios!
Mães, esposas, filhos que se tinham de desarreigar dos braços dos que partiam!...
Bem se esforçavam estes por sorrir, por dizer palavras despreocupadas...
Via-se-lhes bem no brilho do olhar e no embargo da fala o que lhes ia lá por
dentro. Alguns, para conservarem a firmeza de ânimo tão necessária naquelas
circunstâncias, não olhavam de frente os seus, fingiam-se alheados e quase não
se despediam, viravam costas e metiam-se no primeiro batel que largava. Quando
todos já estavam embarcados, fez-se entre a multidão da praia um grande
silêncio e até aqueles que por seus ditos e resmungos se mostravam em desacordo
e inconformados deixavam de se ouvir. Só voltariam a falar e a vociferar
argumentos que calavam fundo em muitos dos que ficavam quando, consumado o acto,
já se não avistava a armada, encoberta pela terra ultrapassada a barra.
Dispersava então a multidão em pequenos grupos que, pela sua postura, procedimento
e aspecto, denotavam sentimentos e opiniões diversos e até contraditórios, a
tristeza, a dor, a angústia, a desolação, a raiva impotente, a euforia, o
orgulho contido, a serena aquiescência, de tal modo era tamanha a incerteza do
desfecho destes empreendimentos. Para muitos era um pranteado regresso, um
magoado silêncio, como quando se volta do cemitério após um enterramento; para
outros, um apressado e tagarelado debandar, como quem vem da romaria.
Caminhei
por entre as pessoas, ao longo da margem. Um bando de rapazes entre os dez e os
doze anos jogava o eixo e quando um saltava por cima do outro exclamava Vasco
da Gama à Índia!, e ia amochar mais adiante. De maneira que, considerava eu com
os meus botões, até nos jogos dos putos (como dizem os italianos, que tantas
vezes os ouvi, em Veneza, em Trento e noutras terras, chamar pulti à rapaziada e até
uma ocasião li num livro, já me não lembro qual, a mesma designação aplicada ao
Menino Jesus: quando Nostro Signore era putto…, até nos jogos dos putos se notava a influência da
novidade dos tempos. Volvi a vista atrás a apreciar, numa visão de conjunto, a
grande mole do Mosteiro dos Jerónimos a engastar a brancura da sua pedra na
verdura espessa da vertente da serra de Monsanto, e o perfil delicado do
baluarte do Restelo, que enfrentava o Tejo como a proa e o castelo de uma nau
altaneira e se recortava atenta no azul do céu. Esses dois monumentos a
ocidente, e a Madre de Deus, que andava em obras de ampliação e enriquecimento,
a oriente, fechavam os extremos por onde a cidade se estava a expandir. Por
toda a parte a febre da construção: eram os novos paços reais como o de
Enxobregas, o de São Cristóvão, o da Ribeira, que, de certo modo, destronavam o
velho paço dos Estaus; eram os edifícios do Hospital de Todos-os-Santos e da
Misericórdia, os solares da fidalguia, os armazéns, a Casa da Índia, as
oficinas dos mesteirais e lojas dos mercadores, que na cidade antiga adentro
das muralhas se arrumavam ordeiramente por ruas certas, do ordenamento do bom
rei João primeiro deste nome, mas agora se espalhavam indisciplinadamente extramuros.
Todavia era esta variedade e mistura de mesteres e mercâncias que dava a nota
inédita e peculiar da cidade nova que crescia e alastrava como óleo perfumado
de benjoim, pois se sentia por detrás de todo este afã e medrar a riqueza vinda
do ultramar. As casas de morada enfileiravam-se em novos bairros que galgavam e
desciam as colinas em redor da velha cerca. Abriam-se ruas novas e largas, mais
arejadas e limpas que as vielas e betesgas antigas, tão sujas e malcheirosas,
onde morava a doença e nascia a miúde a pestilência». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT