domingo, 26 de julho de 2020

Os Cavaleiros de São João Baptista. Domingos Amaral. «Descanse o coração. Ela deve estar a chegar. Se calhar, tem o talento do pai para entradas tardias e espectaculares, declarou dona. Laurentina»

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A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) Nervoso, João Pedro levou o copo à boca, deu um gole no Quinta de Camarate e disse: todos temos de ganhar a vida. Pela forma gélida como o olharam, sentiu desprezo geral pelo seu pragmatismo profissional. E é verdade o que dizem dele?, perguntou dona Laurentina. Dizem tanta coisa dele, respondeu João Pedro, evasivo. Que é maçon..., murmurou dona Laurentina, arrumando no prato os talheres de peixe, com nojo, como se fossem eles o alvo da sua repugnância. Não faço ideia, disse João Pedro. Num ano, nunca me quiseram iniciar. Ouviu-se um murmúrio, quase despercebido: talvez seja um templário... O pintor Afonso debruçou-se para a frente, como que evitando ser escutado pelas outras, acto desnecessário, pois o barulho na tenda era intenso, e usou um tom confidencial: disseram-me que ele anda com o fisco à perna. Everybody knows, confirmou Raulzito, penteando a melena loura, num gesto afectado. Como vê, abundam os rumores sobre o seu patrão, comentou dona Laurentina, piscando o olho ao pintor, numa súbita e até inesperada reconciliação.
Ao menos a si paga-lhe a horas?, provocou o professor Bernardino, sorrindo. Não me posso queixar, confessou João Pedro. O João Pedro tem uma relação muito boa com o doutor Marcos Portugal, contou Inês. E ainda melhor com a filha dele, não é João Pedro? O que era isto, pensou João Pedro? Estaria Inês apostada em arruinar-lhe a noite? É hoje que ficamos a saber se há namoro?, perguntou Francisco, também divertido com o embaraço visível de João Pedro. Não sei... Por acaso estou preocupado, ela ainda não apareceu, contou João Pedro, olhando para o lugar vazio a seu lado, guardado para Mariana Portugal.
Descanse o coração. Ela deve estar a chegar. Se calhar, tem o talento do pai para entradas tardias e espectaculares, declarou dona. Laurentina, e o pintor Afonso, agora já claramente um aliado da senhora, deu uma curta gargalhada. Nesse momento, os empregados, vestidos de smoking (casaco branco), começaram a servir o prato principal. Lombo e batatinhas interromperam o embaraço público de João Pedro, mas não a sua perturbação interior. Porque continuava Mariana sem chegar? Desde as seis da tarde desse sábado, hora a que Inês falara com ela, e para já Inês era a última pessoa que tinha falado com ela, ninguém sabia do seu paradeiro. É estranho..., comentara Inês ao sentarem-se à mesa. Falei com ela às seis. Disse-me que não vinha à missa, mas devia estar cá por volta das sete e meia. Já falaste para casa? Já falara, sem resultado. Mariana morava no Restelo, o casamento era numa quinta em Sintra, a viagem era coisa para demorar meia hora. Teria adormecido? Era pouco provável, mas possível. As restantes possibilidades eram mais desagradáveis. Há uma coisa que me está a preocupar, observara Inês. Ela estava assustada. Disse-me: há bocado, bateram-me à porta dois homens. Não tinham nada bom aspecto... Eu perguntei-lhe o que eles queriam e ela respondeu: não sei, disseram que andavam à procura de não sei quem, mas acho que estavam a mentir. Ela estava em casa?, perguntara João Pedro.
João Pedro, já bebeste? Não te acabei de dizer que os homens tinham batido à porta? Claro que estava em casa! Inês abanara a cabeça, exasperada com a sua distracção. Mas não era uma distracção. Uma frase perturbara João Pedro. Mariana dissera terem-lhe batido à porta. Ora, bater à porta não é costume num prédio de vários andares. O normal é que toquem à campainha, se não à da porta da frente, pelo menos à porta do apartamento. Para mais, Mariana vivia num prédio com porteiro permanente na entrada. Como é que dois homens tinham entrado sem que o porteiro a avisasse? Você parece atormentado, comentou o professor Bernardino, trazendo-o à terra. Só os dois estavam agora sentados à mesa. Os outros tinham ido servir-se das sobremesas. João Pedro encolheu os ombros. É por causa da rapariga?, perguntou o professor, indicando com os olhos o lugar vago». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.

Cortesia de Leya/BIS/JDACT