A
Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) Nervoso, João Pedro levou o
copo à boca, deu um gole no Quinta de Camarate e disse: todos temos de ganhar a
vida. Pela forma gélida como o olharam, sentiu desprezo geral pelo seu
pragmatismo profissional. E é verdade o que dizem dele?, perguntou dona
Laurentina. Dizem tanta coisa dele, respondeu João Pedro, evasivo. Que é
maçon..., murmurou dona Laurentina, arrumando no prato os talheres de peixe,
com nojo, como se fossem eles o alvo da sua repugnância. Não faço ideia, disse
João Pedro. Num ano, nunca me quiseram iniciar. Ouviu-se um murmúrio, quase
despercebido: talvez seja um templário... O pintor Afonso debruçou-se para a
frente, como que evitando ser escutado pelas outras, acto desnecessário, pois o
barulho na tenda era intenso, e usou um tom confidencial: disseram-me que ele
anda com o fisco à perna. Everybody knows, confirmou Raulzito, penteando
a melena loura, num gesto afectado. Como vê, abundam os rumores sobre o seu
patrão, comentou dona Laurentina, piscando o olho ao pintor, numa súbita e até
inesperada reconciliação.
Ao menos a si paga-lhe a horas?,
provocou o professor Bernardino, sorrindo. Não me posso queixar, confessou João
Pedro. O João Pedro tem uma relação muito boa com o doutor Marcos Portugal,
contou Inês. E ainda melhor com a filha dele, não é João Pedro? O que era isto,
pensou João Pedro? Estaria Inês apostada em arruinar-lhe a noite? É hoje que ficamos
a saber se há namoro?, perguntou Francisco, também divertido com o embaraço
visível de João Pedro. Não sei... Por acaso estou preocupado, ela ainda não
apareceu, contou João Pedro, olhando para o lugar vazio a seu lado, guardado
para Mariana Portugal.
Descanse o coração. Ela deve
estar a chegar. Se calhar, tem o talento do pai para entradas tardias e
espectaculares, declarou dona. Laurentina, e o pintor Afonso, agora já
claramente um aliado da senhora, deu uma curta gargalhada. Nesse momento, os
empregados, vestidos de smoking (casaco branco), começaram a servir o prato
principal. Lombo e batatinhas interromperam o embaraço público de João Pedro,
mas não a sua perturbação interior. Porque continuava Mariana sem chegar? Desde
as seis da tarde desse sábado, hora a que Inês falara com ela, e para já Inês
era a última pessoa que tinha falado com ela, ninguém sabia do seu paradeiro. É
estranho..., comentara Inês ao sentarem-se à mesa. Falei com ela às seis.
Disse-me que não vinha à missa, mas devia estar cá por volta das sete e meia.
Já falaste para casa? Já falara, sem resultado. Mariana morava no Restelo, o
casamento era numa quinta em Sintra, a viagem era coisa para demorar meia hora.
Teria adormecido? Era pouco provável, mas possível. As restantes possibilidades
eram mais desagradáveis. Há uma coisa que me está a preocupar, observara Inês. Ela
estava assustada. Disse-me: há bocado, bateram-me à porta dois homens. Não
tinham nada bom aspecto... Eu perguntei-lhe o que eles queriam e ela respondeu:
não sei, disseram que andavam à procura de não sei quem, mas acho que estavam a
mentir. Ela estava em casa?, perguntara João Pedro.
João Pedro, já bebeste? Não te
acabei de dizer que os homens tinham batido à porta? Claro que estava em casa!
Inês abanara a cabeça, exasperada com a sua distracção. Mas não era uma
distracção. Uma frase perturbara João Pedro. Mariana dissera terem-lhe batido à
porta. Ora, bater à porta não é costume num prédio de vários andares. O normal
é que toquem à campainha, se não à da porta da frente, pelo menos à porta do
apartamento. Para mais, Mariana vivia num prédio com porteiro permanente na
entrada. Como é que dois homens tinham entrado sem que o porteiro a avisasse? Você
parece atormentado, comentou o professor Bernardino, trazendo-o à terra. Só os
dois estavam agora sentados à mesa. Os outros tinham ido servir-se das
sobremesas. João Pedro encolheu os ombros. É por causa da rapariga?, perguntou
o professor, indicando com os olhos o lugar vago». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros
de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.
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