quinta-feira, 23 de julho de 2020

Poesia Completas & Dispersos. Alexandre O’Neill. «Chorar encostada a uma saudade bem maior do que eu, que não fosse esta tristeza absurda de cada dia»

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Meditação na Pastelaria
«Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!

A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte…

Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever, se tanto for preciso!

O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!

O amor de Raul é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade…

(O escritório
Toma-lhe todo o tempo?
Desconfio que não…)

Filhos tivemos um:
Desapareceu…
E já nem sei chorar!


Chorar…
Como eu queria poder chorar!

Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia…

Perdi tudo, quase tudo…

Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece».

Poema de Alexandre O’Neill, Poesia Completas & Dispersos, Edição de Maria Antónia Oliveira, Assírio & Alvim, No Reino da Dinamarca, 2018, ISBN 978-972-371-947-5.

Cortesia de AssírioandAlvim/JDACT