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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) Tão logo chega
ao primeiro andar, escuta o movimento das dobradiças da porta de baixo. Um
estrépito grave que incomoda os ouvidos, ainda mais no meio da escuridão da
casa. Havia muito tinha a intenção de mandar lubrificá-las, mas protelara
sempre, por uma ou outra razão. Ficara na intenção; mas não pensa nisso Sarah
Monteiro. O que a incomoda nesse momento é a porta que se abriu e os passos
intrusos no interior da própria casa. Caminha em direção ao quarto, sempre de
ouvidos atentos, os sentidos da sobrevivência totalmente despertos, assim como
o medo aterrador.
O
intruso passeia pelo andar inferior, calmamente, sem se incomodar em disfarçar
sua presença. O peso do calçado faz estalar o soalho muito devagar. Sarah
imagina-o passando o local a pente-fino, à cata de algo que nem mesmo ela sabe
o que é. Uma sensação frustrante de impotência toma conta do seu corpo e
lança-a num torpor de imagens desconexas do quarto onde acaba de entrar, o seu,
mergulhado na escuridão. Uma cortina vermelha, igual às do piso inferior,
filtra a luz externa, arroxeando a divisão e emprestando-lhe um ar soturno
arrepiante. Afasta-a sem fazer barulho, o carro negro continua lá em baixo, no
mesmo local onde o viu pela primeira vez. A impávida serenidade do veículo a
destoar do seu próprio estado de espírito. Não, é necessário manter a lucidez.
Não se deixe abater, pensa. Vamos, coloque essa cabeça para funcionar. O que
tem de fazer? Os passos em baixo continuam a fazerem-se ouvir, como um martelo
batendo em madeira. Rudes, fortes, desregrados, como a dizerem em voz alta: estou aqui!
O que
fazer? Há sempre solução para tudo. Não pode sair por um lado, saia por outro,
dizia a avó. Saia por outro... Saia por outro... Na casa da avó era possível
sair pela janela do primeiro andar porque estava construída na encosta do
monte, literalmente. Mas adaptar a realidade àquela casa, àquela cidade
inglesa, absolutamente plana, não é a mesma coisa. No entanto, há sempre que se
contar com a famosa circunspecção britânica. Tudo tem saídas de emergência,
mesmo as casas. O perigo de incêndio em Londres é iminente, dadas as
construções dos interiores feitas em madeira e a idade dos edifícios. De grande
incêndio, bastou o de 2 de Setembro de 1666. Até essa casa tem uma saída de
emergência. Mas onde? Não existem portas nesse andar. As janelas abrem muito
pouco. A não ser..., a do banheiro. É isso! A janela do banheiro abre
totalmente. E, ao lado, fixas na parede, há escadas de ferro para saída de
emergência. A solução. Obrigada, avó!
Uma
solução, um plano, um intruso. Sarah Monteiro respira fundo. O banheiro fica
logo em frente. É só passar a porta, atravessar a extensão do corredor e
entrar. Segundos, meros segundos, separam-na do exterior. Um..., dois...,
três... Inicia a corrida, para tropeçar e cair logo no carpete do corredor. O
intruso, que ouviu os passos de Sarah, lança-se para as escadas. Ela se levanta
e corre para o banheiro. Pancadas fortes sobre os degraus. Sarah, dentro do
banheiro, sobe para cima da banheira e tenta abrir a janela. A falta de uso
emperrou o corrediço de tal maneira que nenhuma força a abrirá. Prova disso é a
expressão de esforço no rosto de Sarah, que, não fosse a escuridão, mostraria o
rubor declarado que lhe provoca o afogueamento da respiração. Os passos
ultrapassaram as escadas e são audíveis no corredor. A pessoa em questão já não
corre: caminha lentamente pelo corredor, espreitando cada divisão por onde
passa. Sarah faz uma última tentativa para abrir a maldita janela..., nada
feito. Aquilo não levaria a nada. No corredor, um homem, envergando um
sobretudo negro, enrosca o silenciador na Beretta. Sarah esmaga-se contra a
parede do banheiro. Talvez ainda dê tempo de fazer alguma coisa. Se conseguisse
quebrar o vidro todo de uma vez... De quantos segundos necessitaria para
quebrá-lo e sair? Cinco? Dez? De quantos segundos precisará o assassino para
percorrer os poucos metros que faltam assim que escutar os estilhaços? Dois?
Três? Talvez menos. Provavelmente morreria com um pé para fora da janela, se
tivesse tempo para tanto. Provavelmente...
Mais um
passo, outro... O ranger da madeira, o ranger dos dentes de Sarah, reflexos
inconscientes do corpo alerta. O medo paralisa seus movimentos. Só consegue
ouvir o ruído do soalho a cada passo, a respiração muito calma do intruso bem
dentro da sua cabeça. Está acostumado àquilo, com certeza. Um profissional.
Para ele, Sarah não passa de mais uma vida descontinuada, consegue ainda pensar
a jovem. Uma vida sem nenhum interesse nem relevância para quem vem tirá-la. Um
corpo em breve inerte, sem sonhos, sem projectos, sem nada. Um corpo não passa
de um corpo. É então que a voz do pai e da avó substituem todos os outros
pensamentos. Lembra-se do que dizia a avó? Há sempre solução para tudo. Só não
há para a morte. De súbito, exacerbada por uma sensação de urgência, Sarah sai
da banheira o mais silenciosamente possível. As meias e o seu diminuto peso
ajudam nesse efeito. Procura algo, os olhos há muito habituados à pouca
iluminação. O secador? Não. O spray de cabelo? Também não. Toalhas, perfumes,
cremes, toalhas, vassoura..., não, não, não. Encosta-se na parede junto à pia,
impotente». In
Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-969-7.
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