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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Cardeal-rei Henrique. O Homem. O Monarca. Mário Domingues. «… em que perderam a vida os três reis que nela entraram: Mulei Moâmede, o xerife deposto; Abde Almélique, o xerife reinante e Sebastião, rei de Portugal. Mulei Amede, o novo xerife, orgulhoso de uma vitória…»

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Repercussão de Alcácer Quibir. As Primeiras Notícias de Alcácer Quibir
«(…) Comovia-se ele, pensando no seu próprio fim, e comoveram-se muito os circunstantes, quase todos com parentes em África de cuja sorte nada conheciam. A armada de Diogo Sousa, a quem o monarca Sebastião I ordenara que o esperasse em Larache, sem intentar a conquista da praça, depois de aguardar dois dias os possíveis fugitivos, fez-se de vela para a Metrópole em 6 de Agosto, trazendo apenas alguns raros combatentes que puderam alcançar a costa. O capitão deixou, porém, a pairar nas proximidades daquela vila seu sobrinho Francisco Sousa, com um galeão e duas zabras, para avisar de alguma tentativa de assalto que o xerife, animado por tão retumbante vitória, esboçasse contra as praças portuguesas. O regresso da armada de Diogo Sousa, com uns escassos fugitivos e alguns pormenores da tragédia, que logo se divulgaram, ainda mais aumentou a consternação do povo. Os escapos daquele inferno descreveram com horror a mortandade a que assistiram. As damas nobres passavam a maior parte do seu tempo nas igrejas a orar pelos maridos e pelos filhos e a falar com outras infelizes como elas acerca do triste destino dos entes queridos. O desespero levava muitos parentes alanceados a recorrerem supersticiosa e hereticamente, em despeito da sua educação católica, ao conselho de bruxas e à prática de feitiçarias para conhecerem o paradeiro de quem mais estimavam. E já havia mulheres que, julgando-se viúvas, resvalavam em costumes tão dissolutos, que, no dizer de certo cronista, se os maridos soubessem o que se passava, talvez preferissem ficar no cativeiro.
Certificando-se de que os mouros não pensavam em atacar as praças portuguesas, regressou Francisco Sousa, com sua pequena frota, chegando a Lisboa, em 24 de Agosto, um domingo. Trouxe cartas com importantes notícias, que não tardaram em divulgar-se, e a mais impressionante de todas foi a da morte do monarca Sebastião I. Com esta fúnebre certeza, todo o povo português compreendeu que a ameaça do domínio castelhano, a pairar, ora próxima ora distante, durante mais de um quarto de século, sobre a nação, estava prestes a converter-se numa realidade inevitável.

A notícia certa da morte de Sebastião I
Reveste-se de extraordinária importância, quer no supremo interesse da verdade histórica, quer pelo fenómeno de psicologia colectiva que tantas vezes a deturpa, transfigura ou sublima, estabelecer, com elementos que nos parecem suficientemente sólidos, a maneira como se confirmou a morte do monarca Sebastião em Álcácer Quibir. Logo no dia imediato à batalha o cadáver do monarca foi reconhecido por pessoas da sua intimidade e como, decorrido mais um dia, em consequência da rápida decomposição do corpo, outra pessoa já se declarou incapaz de o reconhecer, e ainda como mais tarde, devido a um incidente provocado por um homem que, ansioso por salvar-se às portas cerradas de Arzila, se lembrou de fazer-se passar pelo monarca para lhas abrirem, se gerou, sem querer e sem se prever as consequências do ludíbrio, o boato de que Sebastião I estava vivo, boato esse que se foi avolumando, consoante o tempo foi decorrendo.
É indispensável que principiemos por narrar o que ocorueu no dia 5 de Agosto de 1578, vinte e quatro horas depois da funesta batalha, em que perderam a vida os três reis que nela entraram: Mulei Moâmede, o xerife deposto; Abde Almélique, o xerife reinante, e Sebastião, rei de Portugal. Mulei Amede, o novo xerife, orgulhoso de uma vitória da qual ele fora o primeiro a descrer, ordenou que se recolhessem os despojos. Ainda eram estes muito abundantes, apesar de um primeiro saque, realizado pelos alarves, porque nunca houvera batalha no Norte de África em que a fidalguia se apresentasse mais adornada de coisas ricas do que nesta. Ao mesmo tempo, anunciou por toda a comarca as penas mais severas para quem ocultasse prisioneiros de alta estirpe. Queria sacar o maior lucro possível do resgate dos nobres. Os mouros tinham arrastado a maior parte dos prisioneiros para suas casas, algumas destas relativamente distantes do local da tragédia, e consideravam-nos propriedade muito sua. Procediam conforme as bárbaras leis da guerra daquele tempo, que, afinal, não diferiam muito das dos nossos dias». In Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique, o Homem e o Monarca, Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1964.

Cortesia de LRTorres/JDACT

Luz e Sombra no Oriente. Uma Viúva Apaixonada. Um Péssimo Galã. João III. Mário Domingues. «Pois, foi mesmo na presença destas altas personagens que o insolente Cristóvão Barroso se dirigiu à rainha, proibindo-a, em nome de seu amo, de ir mais além…»

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Uma Viúva Apaixonada
«(…) Como a corte se transferisse do Barreiro para Almeirim, logo dona Leonor, talvez conn excessiva precipitação, a quis seguir, como se não pudesse estar um só minuto longe do bem-amado. Esta perseguição assumia foros de escândalo. E Cristóvão Barroso, o torvo embaixador castelhano, nãc podendo conter por mais tempo a sua indignação e esquecendo o respeito que devia a quem lhe era herarquicamente superior, agravou esse escândalo com uma intervenção abrupta. Anteriormente, já ele levara a sua ousadia, intrometendo-se na política portuguesa, até o ponto de manifestar publicamente a sua oposição às mensagens do município de Lisboa que solicitavarn o casamento do monarca com a rainha viúva. Nessa viagem para Almeirim, dona Leonor fazia-se acompanhar da infanta dona Isabel e de Jaime, duque de Bragança. Pois, foi mesmo na presença destas altas personagens que o insolente Cristóvão Barroso se dirigiu à rainha, proibindo-a, em nome de seu amo, de ir mais além, quando o séquito atingiu a povoação de Muge. Sentiu-se dona Leonor tão vexada que, embora interrompendo a sua viagem como lhe ordenavam, formulou a seu irmão uma indignada queixa contra o seu representante, estranhando que este se atrevesse a ditar tão estranha proibição em nome do imperador. Carlos V mandou chamar Cristóvão Barroso e condenou-o às galés.
É muito difícil definir os sentimentos das pessoas, quando delas nos separam quatro séculos. Só através dos seus actos e por intermédio dos acontecimentos podemos sondar um pouco os caracteres. Se pelas atitudes da rainha dona Leonor e de seu enteado João III não é possível duvidar-se de que, após a morte de Manuel I, tivesse havido contacto amoroso entre eles, o mesmo não sucede quanto à genuidade desse amor. Tudo indica que a viúva experimentava uma séria paixão de mulher pelo homem que primitivamente lhe fora destinado como noivo e que o império das circunstâncias arredara durante dois anos do seu caminho, para de novo a viúvez lho oferecer livre de compromissos. Ela teria sentido reanimar-se o antigo amor com mais pujança e, confiada na lealdade do bem-amado, não hesitara em entregar-se-lhe antes de um casamento que lhe parecia mais do que certo. Quantas amorosas, por esse mundo, têm caído na cilada de um futuro matrimónio por confiarem inteiramente no galã que, depois de saciado, se esquiva a recebê-las como esposas legítimas! É certo que João III contrariou a presensão de Carlos V fazer regressar sua irtmã à corte castelhana. Mas pergunta-se: se o seu empenho em tornar dona Leonor sua mulher fosse mais do que mero capricho ditado pelo despeito de ver o imperador mostrar preferência em casá-la com outro rei que não fosse ele, João, não teria impedido que a madrasta saísse de Portugal, indo assim ao encontro dos mais ardentes desejos da sua amada?
O jovem monarca não chegou a esgotar todos os recursos de que os verdadeiros apaixonados costumam lançar mão para transformarem em esposa a mulher longamente desejada. No entanto, tinha à sua disposição, acima de tudo, como trunfo mais valioso, a boa vontade de dona Leonor, e além disto, os bons argumentos de que esta não devia abandonar uma filha de pouco mais de dois anos de idade, e de que esta criança, a infanta dona Maria, por ser simultâneamente filha do falecido rei Manuel I, não podia sair da corte portuguesa, e ainda de que o povo, a Nação, suplicava que ele se casasse com a rainha viúva. Pois, todas estas razões tão poderosas, que Carlos V poderia discutir, mas ainda não era bastante forte para aniquilar pela força, usou-as João III tão frouxamente, com um entusiasmo tão reduzido para um genuíno enamorado, que dona Leonor acabou por se enfastiar e, desiludida daquele a quem dera tudo, incluindo a sua reputação de mulher, apressou o seu regresso a Castela, que se verificou em Maio de 1523, apenas cerca de ano e meio depois de enviuvar. O mais grave, porém, era que ainda muito antes de dona Leonor se rerirar, já João III dava mostras de uma leviandade pouco simpática e ainda menos abanatória do seu carácter. O seu panegirista frei Luís Sousa dá-nos nesta frase uma ideia do seu desrespeito pela mulher que a assiduidade das suas visitas tão mal colocara publicamente e da falta daquela compostura que ele próprio devia observar como monarca: dois anos havia que o poder e a liberdade real junta com o fervor da mocidade trazia el-rei distraído com mulheres de que houve filhos, vício da fraqueza humana a que os moços, por muito prudentes que sejam, sabem mal resistir…» In Mário Domingues, D. João III, o Homem e a Sua Época, Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1962.

Cortesia de RTorres/JDACT

terça-feira, 3 de março de 2015

Uma Viúva Apaixonada. Luz e Sombra no Oriente. Um Péssimo Galã. D. João III. Mário Domingues. «A viúva dona Leonor foi-lhe no encalço. Apenas para fugir ao flagelo? Não. Toda a gente sabia que ela só desejava achar-se perto do enteado. E as visitas deste tornaram-se mais notórias e descaradas»

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Uma Viúva Apaixonada
«(…) Morto este, porém o obstáculo à felicidade dos dois apaixonados desaparecera. O bonito romance que se arquitectara em volta de um possível idílio podia ter o auspicioso e lógico epílogo: o casamento. Ninguém duvidava de que tudo se encaminhava nesse sentido. E da atitude de dona Leonor se depreende que o seu maior desejo, seria realmente transformar o enteado em marido. A assiduidade do novo rei junto dela era tão notória que até o povo, representado pelo município de Lisboa, julgando ir ao encontro do que os enamorados mais apeteciam, pois já ninguém punha en dúvida a existência de ilícitas relações amorosas entre eles, dirigiu uma nensagern a cada um, rogando-lhes que se unissem pelos laços do matrimónio.
Esse enlace serviria simultaneamente todos os interesses em jogo: primeiro, o dos namorados, que acabavam com uma situação desairosa e veriam satisfeitas as suas mais ardentes aspirações; segundo, os do Tesouro, que já não teria de devolver a dona Leonor o dote, caso ela regressasse a Castela, como seu irmão Carlos V desejava; e, por fim, os dos contendores portugueses e castelhanos, que ainda não tinham chegado a acordo acerca do destino da infanta dona Maria, última filha de Manuel I, menina ainda de colo, que Portugal exigia que ficasse no reino e Castela reclamava com a devolução da mãe.
Tanto João III como sua madrasta responderam com evasivas à mensagem popular. Supôs-se que não acediam imediatamente, para simularem surpresa ante uma sugestão imprevista, por uma questão de pudor, de recato, salvando as aparências. E seria realmente assim por parte de dona Leonor. Queria fingir que não admitia sequer a hipótese de que já houvesse relações pecaminosas entre ela e o enteado, um homem que legalmente se encontrava no lugar de seu filho. As evasivas de João III, porém, exprimiam o verdadeiro estado do seu espírito. É que, talvez depois de saciado o interesse do adolescente pela mulher apetecida, já não experimentasse grande empenho em recebê-la como esposa.
O que o animava ainda era o orgulhoso capricho de contrariar o imperador Carlos V, que tinha interesse em readmitir de novo a irmã na sua corte, onde voltaria a ser um valor negociável, pois queria obter a paz com a França em troca dela, oferecendo-a em casamento a Francisco I daquele reino. Seria urn elemento de conciliação e um trunfo inestimável da sua estratégia política para o domínio da Europa. Dona Lecnor, porém, não se mostrava nada interessada em solucionar com o sacrifício do seu amor os problemas do irmão.
Os boatos daqueles amores teriam chegado aos ouvidos de Carlos V e o seu remate num enlace contrariava-lhe os planos. Por isso, nomeara Cristóvão Barroso seu embaixador em Portugal, corn a missão específica de vigiar os actos da viúva que ele queria oferecer em segundas núpcias ao rei de França. Por sinal, este fiel servidor castelhano caractetizou-se pela arrogância e pelo excesso de zelo, imperdoáveis num diplomata. Mais parecia um cão de guarda do que um embaixador. Sucedeu que, lavrando a peste em Lisboa, calamidade que à força de frequente já não causava estranheza a ninguém, resolveu a corte transferir-se para a margem sul (não será margem esquerda?, JDACT) do Tejo. A viúva dona Leonor foi-lhe no encalço. Apenas para fugir ao flagelo? Não. Toda a gente sabia que ela só desejava achar-se perto do enteado. E as visitas deste tornaram-se mais notórias e descaradas. Entretanto, Carlos V e João III discutiam diplornaticamente o destino a dar à infanta dona Maria, última filha de Manuel I e de dona Leonor. Não queria esta separar-se da menina, o que lhe serviria de óptimo pretexto para ficar em Portugal junto do homem amado. Contudo, acerca da sugestão de casar-se com o monarca, declarava comedidamente não poder tomar qualquer resolução sem que seu irmão Carlos V se pronunciasse. E o tempo ia correndo e as visitas do enteado continuavam». In Mário Domingues, D. João III, o Homem e a Sua Época, Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1962.

Cortesia de RTorres/JDACT

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «… se não fosse a corrupção, habilmente, espalhada, em longos meses, pelos agentes espanhóis; se os cinco governadores tivessem a isenção, o patriotismo, a energia, que as suas altas funções de guardas da independência nacional…»

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A repercussão internacional do problema português
«(…) Tanto a Inglaterra como a França não podiam ficar indiferentes perante os preparativos de conquista evidenciado pela Espanha. Desejavam auxiliar os Portugueses, mas o sou auxíiio tinha de ser discreto, para não desafiar as iras de um senhor tão poderoso como Filipe II; e, para se tornar eficaz, preciso era que também a nação lusitana se tornasse apta a recebê-lo e a usá-lo. Por isso, dona Isabel Tudor respondeu aos governadores, em 4 de Abril, manifestando o seu sincero desejo de ajudar Portugal a manter a sua independência, mas recomendando que seria conveniente que eles se esforçassem por reconciliar os Portugueses, pois, unidos, com mais facilidade repeliriam a agressão estrangeira. Na verdade, comenta Queiroz Veloso; se não fosse a corrupção, habilmente, espalhada, em longos meses, pelos agentes espanhóis; se os cinco governadores tivessem a isenção, o patriotismo, a energia, que as suas altas funções de guardas da independência nacional imperiosarnente lhes impunham; se o duque de Bragança e o Prior do Crato se unissem, em vez de se hostilizarem em mesquinhas rivalidades: Portugal resistiria, pois as forças de Filipe II eram mais aparentes que reais, e a nossa união teria animado o auxílio dos soberanos estrangeiros, que viam com apreensões, o engrandecimento do rei católico. Por seu lado, dona Catarina, duquesa de Bragança, muito rnais enérgica do que o jarrão do seu marido, não permanecera inactiva e solicitara o apoio da Inglaterra e da França para a sua causa. Através dos factos, colhe-se a impressão de que ela, se não fosse a inoperância balofa do duque e as antipatias gerais que este provocava, ter-se-ia sentado no trono e conciliaria os Portugueses em sua volta para lho defenderem, mas em história os factos são os factos e as hipóteses dos historiadores, embora possam constituir salutar lição, não passam de hipóteses. Vimo-la chegar a Almeirim, sem régia autorização, onde foi encontrar o monarca seu tio já moribundo. Logo após a morte do cardeal, mandou dizer aos governadores que estava pronta a obedecer-lhes, aguardando a sentença dos juízes nomeados para apreciar a causa da sucessão. Já vimo como o rnarido deu este recado, ajuntando-lhe umas vagas ameaças, certamente da sua lavra, que intimidavam ninguém. Nessa mesma ocasião escreveu ela a Filipe II, a pedir-lhe que se submetesse, como ela própria, à decisão dos julgadores. Confiante em que lhe assistiam mais direitos do que a qualquer outro pretensor, convinha-lhe que todos os outros se sujeitassem à decisão jurídica, que forçosamente teria de ser-lhe favorável». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de RTorres/JDACT

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Camões. A sua Vida e a sua Época. Mário Domingues. «… os pais tiranos daquela época, refreara-o muito nos seus ímpetos juvenis, que já então faziam da mocidade ciombrã a mais tumultuosa de todo o reino. Se alguma vez por outra lograra escapar-se à apertada vigilância…»

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Como Luís de Camões teria obtido o grau de bacharel latino
«(…) Tem muito interesse o cerimonial que o Regimento dado por João III à Universidade ordenava para a obtenção do grau de Bacharel. Diz o curioso documento:
  • Item, ordenamos que o Bacharel  em qualquer ciência pague para a Arca do Estudo uma dobra de ouro de banda, e uma ao escrivão e bedel e um barrete com um par de luvas ao padrinho que lhe há-de dar o grau e luvas ao Reitor e Lentes que presentes forem ao Auto [Acto]; e será obrigado o Reitor com a Universidade e o Bedel diante com a sua maça, ir pelo graduado à sua pousada se for no bairro, e o trarão às Escolas honradamente, onde logo em princípio do Auto [Acto] fará uma arenga, e depois lerá uma lição, e acabada a lição e disputa se for em Artes... pedirá o grau arengando [discursando]; e depols disto dará as luvas aos sobreditos e fará juramento em as mãos do escrivão ou bedel, segundo abaixo se dirá, e, isto acabado, o Doutor ou Mestre lhe dará o grau, e depois de reeebido o grau, o graduado dará graças a Deus e aos presentes. E o que houver de receber grau tomará do Doutor ou Mestre da Universidade que lhe aprouver, e logo o tornarão honradamente para sua casa donde o trouxeram; e assirn havemos por bem que qualquer que se graduar arme [ornamente] o Geral de panos finos por honra do Auto [Acto].
Festejava-se assim, como ainda hoje se festeja por maneiras diferentes, a obtenção da Licenciatura. Luís de Camões devia ter-se submetido, talvez com espírito faceto, a todas estas praxes. Assim era preciso para obter o grau de Bacharel em Artes. Deduz-se que,
se o graduado iniciou o seu curso aos treze anos (admitindo que realmente nasceu em 1524), cursou durante três anos, de 1537 a 1539, Gramática e Retórica; depois, mais dois anos de Lógica e Filosofia Natural, isto é, de 1539 a 1542. Teria sido assim, de facto, que teria beneficiado de uma prerrogativa concedida pelo aludido Regimento, que permitia considerar os escolares habilitados a receber o pretendido grau, desde que testemunhas juradas provassem perante o escrivão do Estudo e o Reitor ou Mestre que o há-de graduar, que frequentara o Curso pela maior parte do ano? Esta porta escusa do Regimento facilitou o abuso de alguns pseudo-estudantes se diplomarem ràpidamente, sem chegarem a pôr os pés nas aulas, apesar de se submeterem a um suposto exame em que tinham de ler três lições disputadas, apontadas de um dia para o outro.
Luís de Camões, porém, revelou desde cedo uma bagagem de conhecimentos tão vasta e tão profunda que não nos permite a hipótese de ter recorrido a estes subterfúgios para obter o seu grau-de Doutor em Letras ou de Bacharel Latino, se acaso o obteve. Sabia tanto eomo os mestres e possuia a mais do que estes uma imaginação criadora, que se pode educar, mas que nunca se adquire nas escolas por mais eficientes que elas sejam.

Como o poeta viu e descreveu a vida devassa de Lisboa
Em 1542, contaria Luís de Camões entre dezoito e vinte anos, quando alcançou o seu grau de Bacharel e regressou a Lisboa, a casa de seus pais. Devia trazer a mente repleta de formosos projectos, bem próprios da sua idade. Sentia-se vigoroso, mais culto do que a maioria dos jovens, garboso, saudável e trazendo na bagagem alguns poemas da sua lavra que já o tinham notabilizado em Coimbra. Parece, não há a certeza que, terminado o seu curso, não quisera seguir a carreira eclesiástica para o qual o tio Prior Crastense gostaria de vê-lo encaminhar-se. Bento de Camões, certamente ainda mais austero do que os pais tiranos daquela época, refreara-o muito nos seus ímpetos juvenis, que já então faziam da mocidade ciombrã a mais tumultuosa de todo o reino. Se alguma vez por outra lograra escapar-se à apertada vigilância daquele tutor atento e severo, por via de regra ver-se-ia punido pela mais leve falta e mantido numa disciplina férrea, da qual estaria ansioso por libertar-se». In Mário Domingues, Camões, A sua Vida e a sua Época, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1968.

Cortesia de LRTorres/JDACT

Camões. A sua Vida e a sua Época. Mário Domingues. «E quando acontecer o dito Cancelário ser ausente, ou ter outro impedimento, tenha suas vezes em o dito ofício Religioso que as tiver em a governança do dito Mosteiro. … e mando que daqui em diante tudo seja e se chame uma Universidade, e todos juntamente hajam e gozem de uns mesmos privilégios…»

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Como Luís de Camões teria obtido o grau de bacharel latino
«A profunda reforma do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra começou em 1527, quando Luís de Camões contaria três ou quatro anos de idade. Ao mesmo tempo que os cónegos regrantes se sujeitavam à clausura claustral, desenvolviam o ensino por meio de mestres que estudaram em Paris, o que tornava o colégio desse mosteiro o centro mais importante de cultura da mocidade lusitana de então. Segundo Teófilo Braga, foi este progresso pedagógico que determinou João III a trasladar a Universidade de Lisboa para Coimbra em 1537, suavisando a violência de aplicar uma grande parte dos rendimentos de Santa Cruz aos gastos da Universidade. Durante o lapso que vai de 1527 a 1539, sucederam-se por períodos de três anos, vários priores crasteiros e, nesta última data, findo o triénio de Miguel Araújo (1536 a 39),o monarca, querendo honrar o mosteiro que muito cooperara com a Universidade com o prestígio do seu ensino e os rendimentos da sua comunidade, concedeu então o título de Cancelário da Universidade de Coimbra aos Priores crasteiros de Santa Cruz. Ora, precisamente em 5 de Maio de 1539, no capítulo geral dos conventos augustinianos, Bento de Camões, pela sua ilustração e virtude, foi eleito Prior Geral, do que resultou vir ele a ser automaticarrrente o primeiro Cancelário daUniversidade, para muita satisfação do rei João III. O encadeamento destes sucessos exerceu com certeza bastante influência na vida escolar de Luís de Camões.
Teria sido entre 1537 e 39, contando ele treze ou catorze anos, o máximo, que o jovem iniciou os seus estudos mais sérios, com vista à obtenção do grau de Doutor em Letras ou, mais provàvelmente, de Bacharel Latino, como mais tarde viriam a classificá-lo. É de presumir que já sua mãe se tivesse retirado para a companhia do marido, em Lisboa, deixando o filho totalmente entregue à austera vigilância do tio. A coincidência de ser este o Cancelário da Universidade só beneficiaria o moço estudante, não por lhe criar uma situação de favor, mas por lhe fazer sentir a sua autoridade e o orientar superiormente nos estudos. O mosteiro de Santa Cruz possuía então uma das bibliotecas mais ricas da Europa, se não do mundo, e o douto Cancelário não deixaria de indicar ao sobrinho as suas peças mais valiosas que solidamente o instruíssem acerca dos melhores clássicos, desde os Gregos e Romanos, Arábicos e Hebreus.
À margem das lições integradas no programa do curso, Luís Vaz devia ter-se enfronhado na leitura dos mais famosos autores de outrora, conforme o denuncia através da sua obra tão rica em erudição. Filósofos, Historiadores, Geógrafos, Poetas da Antiguidade poucos teriam escapado ao seu olhar curioso e à sua inteligência sedenta de saber. Essa sede de conhecimentos teve a mitigá-lo o mais evoluído corpo docente que, por feliz coincidência, leecionou em Coimbra exactamente nos anos em que ele fez os seus estudos mais importantes. Esses mestres, apelidados de parisienses, foram Pedro Henriques, Gonçalo Álvares, Vicente Fabrício, os gramáticos João Fernandes, Belchior Beliago, Inácio Morais, Máximo Sousa e Heliodoro Paiva. Com eles, a seguirem o exemplo dos famosos Gouveias gue tanto prestigiaram a cultura portuguesa em França, lidou Luís de Camões durante o seu curso de Humanidades, ao mesmo tempo que seu tio Bento exercia o alto cargo de Cancelário desde 1539 a 1542.
Das importantes funções de Cancelário podemos fazer uma ideia através de alguns passos da Carta régia de 15 de Dezembro de 1539, em que João III outorga esse cargo aos Priores de Santa Cruz. Eis um trecho bem significativo:
  • E mando que das portas a dentro do dito Mosteiro e da sua Capela de São João, e de todos os seus colégios, a saber, do Colégio de São João e do Colégio de Santo Agostinho e do Colégio de Todos os Santos, o dito Padre Cancelário haja e tenha toda a jurisdição em os Mestres, Estudantes e Oficiais que em eles lerem, estudarem e servirem. A qual jurisdição se entenderá em os Mestres somente em o que tocar às lições e falta dos lentes, e em o fazer dos exercícios e disputas, e em as horas que hão-de ler, e em lhes darem as licenças para irem fora, e para lerem outros por eles, e em lhes mandar pagar seus salários, e em os mandar multar em eles quando em as sobreditas coisas lhe forem desobedientes. E em os Estudantes e Colegiais em lhes dar licenças, e em os repreender e emendar, quando forem escandalosos, mal ensinados ou desonestos, e em as coisas que dão turvação a bem estudar. 
  • E quando acontecer o dito Cancelário ser ausente, ou ter outro impedimento, tenha suas vezes em o dito ofício Religioso que as tiver em a governança do dito Mosteiro, e pela dita maneira hei por unidos e incorporados, os ditos Colégios com a dita Universidade; e mando que daqui em diante tudo seja e se chame uma Universidade, e todos juntamente hajam e gozem de uns mesmos privilégios, assim dos que até aqui lhe são concedidos, como de todos os que ao diante se concederão à dita Universidade.
É de supor que Luís de Camões fora um bom estudante, embora, pelo temperamento inquieto que revelaria mais tarde, não se exclua a hipótese de ter colaborado, ou mesmo tomado a iniciativa, nas diabruras a que os escolares se entregavam com frequência. Esse espírito buliçoso e irreverente, que ainda hoje se mantém por tradição, apesar de mais atenuado, era, aliás, comum a todos os grandes centros estudantis da Europa e até por vezes, por cá se imitavam as facécias que se verificavam em Salamanca, Paris, Bolonha ou Mompilher». In Mário Domingues, Camões, A sua Vida e a sua Época, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1968.

Cortesia de LRTorres/JDACT

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Restava o ‘braço popular’. Foi Rodrigo Vásquez, que desempenhava funções de embaixador, quem lhe apresentou a carta de Filipe II. Apesar de oficialmente dissolvidas as Cortes, ainda se encontravam em Santarém muitos procuradores dos concelhos»

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Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
«(…) Ora, à data em que as cartas chegaram ao seu destino, já as Cortes se tinham dissolvido, embora muitos procuradores dos três braços do Estado ainda se eïncontrassem em Almeirim e Santarém. Os governadores levaram ao Conselho do Estado a carta que lhe fora endereçada pelo rei católico. Bem se esforçou o bispo de Leiria, que fazia o jogo de Castela, por que o referido Conselho favorecesse o monarca estrangeiro, mas não o conseguiu. Aquele alto organismo corusultivo votou que os governadores não tinham poderes para aprovar convénios e, como as Cortes acabavam de ser dissolvidas, só novas Cortes poderiam apreciar e decidir sobre o magno problema. Além disso, era preciso que o rei de Castela ouvisse e respondesse aos embaixadores que Portugal lhe enviara e que tinham saído de Almeirim em 4 de Março (a 20 de Março, data do Memorial, ainda se ignorava que Filipe II receberia a embaixaoa). No braço do clero, como os prelados Teotónio Bragança e o bispo de Miranda, anticastelhanos, considerassem uma afronta a abusiva intromissão do rei católico nos assuntos portugueses, os restantes membros acabaram por compor esta resposta dúbia: que, dissolvidas as Cortes, nenhum valor jurídico teria o que pudessem decidir; contudo, fiados nas grandes virtudes de Filipe II, aguardavam a resposta que lhes trariam os embaixadores portugueses. No braço da nobreza também se ouviram protestos contra a insolência de um monarca estrangeiro gue ousava dirigir-se à assembleia suprema de outro reino. No entanto, a sua resposta foi idêntica à do braço do clero.
Restava o braço popular. Foi o licenciado Rodrigo Vásquez, que também desempenhava funções de embaixador, quem lhe apresentou a carta de Filipe II. Apesar de oficialmente dissolvidas as Cortes, ainda se encontravam em Santarém muitos procuradores dos concelhos. Escutaram-no em profundo silêncio. Por fim, Febo Moniz limitou-se a declarar secamente que a Junta não tinha nenhuma resposta a dar. Com autorização dos governadores, as câmaras municipais de Lisboa, Coimbra e Évora receberam os emissários do monarca estrangeiro. Pois, apesar de no seu seio já alguns procuradores se encontrarem secretamenüe peitados, nenhuma entregou carta de adesão ou qualquer promessa de obediência ao sôfrego pretendente ao trono de Portugal. Não havia dúvidas de que ninguém se atrevia a entregar-lhe o reino. Se queria o trono, tinha de empregar a violência. O que, em despeito da desorientação dos portugueses, seria sempre contingente.

A repercussão internacional do problema português
Ainda com as Cortes de Santarém e Almeirim em actividade, a meados de Fevereiro, ou seja cerca de duas semanas depois da morte do cardeal-rei Henrique, os governadores escreveram ao papa Gregório XIII e a alguns soberanos cristãos, a participar-lhes o falecimento do monarca. Desejosos, porém, de passarem por muito atentos à defesa da independência de Portugal, tanto aos olhos de nacionais como de estrangeiros, e talvez para iludirem, também, os dois colegas de governo,João Telo Menesres e Jorge Almeida, arcebispo de Lisboa, que não se tinham vendido, aproveitaram o ensejo para pôr em foco a situação do reino que, faltando-lhe o rei natural, se quedava como que órfão e indefeso. Mas à rainha Isabel I de Inglaterra dirigiram-se num tom mais comovente, recordando-lhe as velhas alianças, quer políticas quer de sangue, que havia mais de dois séculos uniam as duas nações, e predindo-lhe, ante as claras ameaças de Filipe II, rápido auxílio para defesa da justiça.
Nesse período sombrio da história, meia Europa odiava a Espanha pelo domínio tirânico que exercia na Flandres, em grande parte da Itália, em regiões germânicas e pela ameaça que constituía para a França e as Ilhas Britânicas. Os mais poderosos desses reinos ameaçados tinham toda a conveniência em evitar que o rei católico aumentasse ainda mais o seu poder, absorvendo Portugal, que, além de lhe oferecer magnífica posição estratégica no Atlântico, lhe abria ainda mais largos caminhos para as riquezas da Ásia e do Brasil, no Novo Continente». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de RTorres/JDACT

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «… expediu para território luso um correio especial, portador de cartas dirigidas aos governadores do reino, uma colectiva e cinco individuais; uma à duquesa de Bragança e seu marido; outra a “António, prior do Crato”...»

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Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
«(…) Havia mais de um ano qu'e se tinham iniciado os preparativos militares em Espanha. Agora, só faltava nomear o comandante-chefe da expedição, o que criava ao rei católico um problema muito difícil. Ogeneral mais prestigioso dessa época, não só em Castela, mas também em toda a Europa, era Fernando Álvares de Toledo, o velho duque de Alba, então caído em desgraça perantes, seu régio amo. No entanto, a opinião pública castelhana, como o próprio Cristóvão Moura, recalcando ressentimentos de uma questão antiga que tivera com o famoso militar, indicava-o como o chefe que a difícil expedição guerreira exigia. Como sempre, o rei católico pensou maduramente antes de se decidir. É que Fradique de Toledo, marquês de Cória, filho do duque de Alba, celebrara tempos antes um casamento secreto, do qual o monarca discordava, motivo por que desterrara os duques para o seu castelo de Uceda. Mas parece que Filipe II, não vendo no momento outro chefe mais capaz, resolveu, por sua conveniência, sempre por sua conveniência, levantar o desterro ao nobrre militar, nomeá-lo comandante supremo das operações e ordenar-lhe que seguisse imediatamenüe para Llerena, na Estremadura espanhola, onde teria de reunir-se ao seu exército.
A 6 de Março de 1580, ainda as Cortes, em Portugal, não se tinham dissolvido, tratou Filipe II de aproximar-se da fronteira portuguesa, saindo de Aranjuez para Guadalupe, com a rainha D. Ana de Áustria, sua quarta mulher, e a sua corte. Durante esse trajecto, a 13 desse mês, expediu para território luso um correio especial, portador de cartas dirigidas às seguintes entidades: aos governadores do reino, uma colectiva e cinco individuais; uma a cada braço do Estado; uma à duquesa de Bragança e seu marido; outra a António, prior do Crato; e às câmaras de Lisboa, Coimbra e Évora, uma a cada. Variando apenas no tratamento, consoante a entidade a que se endereçavam, todas elas repetiam, em síntese, as razões por que o rei católico se considerava com direito ao trono: a sua qualidade de mais velho dos sobrinhos varões do cardeal-monarca. Prometia generosas graças e mercês, se o aceitassem pacificamente como soberano. Dera, porém, ordem para que as cartas dirigidas aos três Estados, nessa data ainda reunidos em Cortes, fossem acompanhadas de um Memorial de las grácias y mercedes que el Rey mi Señor concederá a estos Reynos, quando fuere jurado por Rey e Señor, dellos, en que se incluien las que les concedió el Serenissimo Rey don Manuel año 99, y outras de grande importância para el bien universal y particular dellos.
Este Memorial, datado de Almeirim em 20 de Março, era assinado pelo embaixador Pedro Girón, duque de Ossuna. Nele se rnencionavam todos os artigos do acordo estabelecido com o cardeai-rei Henrique, com excepção daquele que proibia Filipe II e seus sucessores de prover quaisquer ofícios ou cargos em pessoal a quem o cardeal os tirara. Por outro lado, incluía artigos novos, com as seguintes promessas: Que os portugueses seriam admitidos aos ofícios da sua Casa, a exemplo do que se praticava com castelhanos e demais vassalos seus de outras nações; que a rainha traria, ordinariamente, ao seu serviço, senhoras portuguesas nobres, casando-as em Portugal ou Castela; que os portos secos da fronteira seriam abolidos; que ordenaria todas as facilidades possíveis na importação de cereais de Castela; que mandaria dar 300000 ducados, repartidos da maneira seguinte: 120000 para o resgate dos cativos, postos à disposição da Misericórdia de Lisboa; 150000 para instituir e acrescentar depósitos de trigo nos lugares necessitados, conforme entendesse a Câmara de Lisboa; 30000 para remediar as maiores desgraças causadas pela peste; que para a provisão das armadas da Índia, defesa do reino, conservação dos lugares de África e castigo dos corsários, concorreria, quando fosse preciso, com a ajuda de outros Estados seus e muito maior custo de sua real Fazenda; que não podendo, pelo governo dos outros Reinos e Estados, que Deus lhe confiou, residir sempre em Portugal, aqui viveria todo o tempo que pudesse dispensar e, não havendo emharaço maior, deixaria no reino o príncipe, seu fiiho, para que, criado entre portugueses, se acostumasse a conhece-los e amá-los. Convém desde já prevenir que os vinte e cinco capítulos deste Memorial foram mais tarde integralmente reproduzidos na comunicação feita às Cortes de Tomar, pelo secretário de Estado Miguel Moura, e constam da Carta patente de 12 de Novembro de 1582, que devia ser o estatuto pelo qual se regessem os reis castelhanos como reis de Portugal». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Se a força é que ia ditar a lei, para que havia de preocupar-se com ninharias de etiquetas, que só serviriam para irritar o ânimo de um povo, que ele desejava manter sossegado, como que adormecido?»

Filipe II
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Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) Parecia que os Goverrradores só revelavam grande pressa e empenho em cumprir a vontade das Cortes. Mas a verdadeira missão daqueles embaixadores era outra, bem mais do interesse particular dos regentes altamente comprometidos na sua manobra pró-castelhana. É que Cristovão Moura, já farto da timidez e da inoperância dos Governadores seus cúmplices, propusera a seu régio amo publicar as negociações secretas realizadas em vida do cardeal-rei. Seria um tremendo escândalo que desvendaria aos portugueses até que ponto foram traídos pelos seus dirigentes, entre os quais também se encontrava a maioria dos actuais Defensores do Reino. Estes achavam-se aterrados. Não só perderiam os rendimentos do negócio, mas também se arriscariam a perder a própria vida. Daí o mandarem pedir particularmente ao rei católico, por intermédio desta embaixada, que os poupasse a tanto perigo e vexame.
Claro que Filipe II manteve o segredo, não porque lhe custasse sacrificar quem se lhe vendera, mas porque nisso estava acirna de tudo a sua conveniência. T'alvez, pela primeira vez na sua vida, Cristóvão Moura desse a seu amo uma sugestão desastrosa. Lá estava, porém, o frio e astuto monarca a evitar o erro, que só o prejudicaria. Revelar que subornara dirigentes e pagara a espiões equivaleria a perder o seu já tão débil prestígio ante o povo lusitano, a quem ele prometia governar com humana generosidade e paternal benevolência.

Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
Este breve período de mês e meio, entre a morte do cardeal-monarca e a dissolução das Cortes, foi fértil em pequenos acontecimentos, que fervilharam como que a denunciarem a alta ebulição a que se chegaria com o terçar das armas. O rei católico querira preparar por todos os meios a fácil entrada dos seus exércitos, pois estava persuadido de que não teria outra forma de apoderar-se do apetecido trono lusitano. Não fora sem alguma hesitação que acabara por receber, com aparente cortesia os embaixadores Manuel Melo e bispo de Coimbra que os regentes lhe enviaram. É que, pensava ele, recebe-los na qualidade de representantes diplomáticos equivalia a reconhecer a independência de um país de que se considerava soberano. Significaria conceder, por inadvertência, uma arma jurídica e política aos portugueses que se lhe opunham.
Para evitar a seu régio amo uma situação tão embaraçosa, ainda Cristóvão Moura tentara convencer os regentes a sustar a partida da embaixada, ameaçando-os com as iras de Filipe II. Os governadores, porém, apesar de aterrados, não o atenderam, porque, por um lado, queriam fazer alguma coisa que persuadisse o povo português de que estavam sinceramente decididos a defender a pátria, por outro, porque desejavam obter do monarca espanhol a garantia de que não divulgaria documentos que desmascarassem a sua venalidade. Já de Espanha, mandaram-lhes dizer os enviados diplomáticos que o rei católico estava na disposição de não os receber; os Governadores expediram-lhes ordens terminantes para que insistissem em ser recebidos; precisavam absolutamente de obter essa efémera vitória que passasse aos olhos do povo por um lampejo vivo da sua pureza patriótica, lampejo que, afinal, se reduzia a um brilho fugaz de fogo-fátuo, irradiado pela podridão da sua venalidade. Chegara-se quase a um rompimento formal, que produziria, tanto nos embaixadores como nos regentes, o efeito de uma catástrofe. Mas, por fim, para grande alívio dos subornados, decidiu-se Filipe II a recebê-los, embalando-os em meras palavras de cortesia que em coisa alguma o comprometiam. Os governadores cantaram vitória, embora soubessem que apenas tinham obtido uma ilusão; a tal ilusão de que tanto necessitavam para deitar poeira nos olhos da grei.
Tivera Filipe II aquela pequena transigência porque, nessa data, os seus preparativos militares achavam-se praticamente concluídos. Se a força é que ia ditar a lei, para que havia de preocupar-se com ninharias de etiquetas, que só serviriam para irritar o ânimo de um povo, que ele desejava manter sossegado, como que adormecido? Não queria entrar em Portugal como conquistador. Ainda tivera esperança de que os próprios governadores, sob o estímulo do ouro e o temor das ameaças de lhes desmascararem a venalidades em que caíram como uma armadilha diabólica, o proclamassem herdeiro da coroa. Mas, apesar de vendidos, apesar de constantemente ameaçados pelos embaixadores castelhanos, eles não se abalançavam a cometer acto de tanta audácia, que lhes poderia custar a vida. Mesmo atascados na lama do suborno até as orelhas, esses portugueses venais não chegaram à baixeza de entregar Portugal ao monarca que os enchia de ouro e promessas. Embora muito débeis, uns restos de pudor ainda os impediam de descer esse último degrau de ignomínia. Filipe II viu então que, se quisesse apoderar-se do trono, teria de promover uma guerra de agressão, teria de enveredar abertamente pelo caminho da violência, que o conduziria à perda das razões jurídicas, embora com noventa e nove probabilidades contra uma de vencer». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

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O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Os embaixadores usaram então dos meios secretos que lhes eram peculiares. E, assim, tiveram logo conhecimento de que o cardeal, no seu testamento de 27 de Janeiro de 1580, não indicara a pessoa que lhe havia de suceder»

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Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) O monarca espanhol escreveu o seguinte à margem deste documento: vejo esta o conde de Portalegre, e & resposta que será conveniente lhe deis. E João da Silva, a seguir à recomendação do soberano, escreveu: são muito bons estes de Vila Real. Responda-se a D. Jorge com muita aprovação do que vai fazendo, pedindo-lhe continue, e restitua-se estes papéis como é de razão. Era assim que, na sombra, se ia tecendo a rede de corrupção que havia de embaraçar os movimentos dos genuínos Portuguesos, quando estes, apoiando António, prior do Crato, quiseram lutar contra os invasores. Na sua insistente tarefa de exercer toda a espécie de pressões, para obterem o triunfo da causa de Filipe II, os embaixadores caste1hanos, mal terminaram as exéquias do cardeal-rei Henrique, apresentaram-se a pedir aos Governadores uma audiência, a fim de se elucidarem sobre os negócios da sucessão. Os regentes evitaram esse encontro, alegando que a preocupação de problemas de mais urgência os impedia de lhes dar informações seguras sobre o assunto. Os embaixadores usaram então dos meios secretos que lhes eram peculiares. E, assim, tiveram logo conhecimento de que o cardeal, no seu testamento de 27 de Janeiro de 1580, não indicara a pessoa que lhe havia de suceder, e se limitara a recomendar aos seus súbditos que prestassem vassalagem ao pretendente que os juízes por ele nomeados reconhecessem como herdeiro do trono.
O padre Leão Henriqures, confessor do monarca, e Miguel Moura, secretário, tiveram a incumbência, designada no testamento, de escolher e queimar todos os papéis do cardeal-rei que julgassem conveniente suprimir. Ninguém sabe até que ponto esta destruição teria prejudicado a história desse período. Não se atrevera o embaixador-espião a abordar Leão Henriques, que, resistindo às suas investidas corruptoras, permanecera até então desafecto a Castela. Mas Miguel Moura, rico e sem filhos, embora não mostrasse interesse em deixar-se subornar, acabara por tornar-se simpaticamente inofensivo, pela exploração hábil que Cristóvão Moura soubera fazer do seu fanatismo religioso. Após a morte do cardeal-rei, Miguel Moura retirou-se de Almeirim, por ter tido notícia de que sua esposa se encontrava muito doente. Antes dele partir, porém, teve Cristóvão tempo de o interrogar acerca dos documentos queimados. Miguel de Moura caiu, ou simulou cair, em indiscrições, entre as quais a de que o testamento nenhuma alusão fazia a qualquer pacto secretamente firmado.
A propósito deste episódio, escreve Rebelo da Silva: a indiscrição nada inocente de Miguel Moura ministrou à embaixada de Castela os fios para se não perder no Labirinto das complicações desta época; e o caso que depois fez o rei católico do velho secretário, a modo singular por que o honrou, mostram que não quis ser esquecido nem ingrato. Miguel Moura era desses homens que se ufanam de fugir às ocasiões perigosas; que navegam acautelados em todos os mares, sempre com os olhos fitos nos escolhos; que, trazendo constantemente o desinteresse na boca e a abnegação nas palavras, nunca se descuidam de assoalhar os próprios merecimentos, para, sem as pedirem, lhes baterem à porta as mercês com o agrado dos soberanos. Esta espécie de cifra, que o brilhante historiador nos revela, esclarecrendo-nos acerca do carácter de Miguel Moura, oferece-nos a chave do enigma que constituía a extrema benevolência de Filipe II para com o patriota amigo do falecido monarca.
Naquela época de intriga subterrânea, de duplicidade de atitudes, de jogo de escondidas atrás de uma nação em almoeda, certos acontecimentos têm de ser vistos por dois lados: o direito e o avesso. E muitas vezes o avesso apresenta muito mais interesse do que o direito. É o caso daquela recomendação que as Cortes fizeram aos Governadores de mandarem uma embaixada extraordinária a Madrid, com o fim de persuadir Filipe II de desistir de qualquer intento de apoderar-se do trono português pelas arrnas, pedindo-lhe que se submetesse à sentença da causa da sucessão, que seria guardada com imparcial justiça. Neste ponto apressaram-se os regentes a obedecer às Cortes e dessa missão encarregaram a embaixada extraordinária, constituída pelo bispo de Coimbra e Manuel Melo. Também apresentaram pêsames ao rei católico pela morte de seu tio, cardeal Henrique, a quem o sobrinho castelhano dizia muito estimar». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

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Invasão Liberal no Algarve. A Derrocada do Absolutismo. Mário Domingues. « A esquadra absolutista não só foi derrotada como também ficou quase totalmente em poder dos constitusionais. Apenas a Isabel Maria e a Cíbele puderam fugir, regressando salvas a Lisboa»

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A Esquadra Miguelista Derrotada e Apresada
«(…) Por outro lado, acodem ao sul do país as tropas do brigadeiro Raimundo, enviadas de Lisboa, e, em Coimbra, o brigadeiro Nuno Augusto Taborda, vindo do Porto com uma brigada, anexava às suas forças um batalháo de infantaria 8, outro de infantaria 17 e um esquadrão de cavalaria 4, milícias de Aveiro, realistas de Penafiel e duas bocas de fogo. Entretanto, precisamente a 2 de Julho, o vice-almiranrüe Napirer saía de Lagos, tomando o rumo de Lisboa. Sucedia, porém, que na véspera largara da capital a esquadra miguelista com ordem de combater a frota constitucional. Foi um erro crasso do governo, pois em virtude de os navios não estarern preparados para operação de tal envergadura, os comandantes manifestaram relutância em partir em tais condições. Embarcara, por assim dizer, à força. Era António Correia Aboim quem comandava a esquadra absolutista, enquanto não chegava o capitão de marinha inglesa Eliot, contratado em Londres pelos agentes de Miguel. Compunha-se a referida esquadra dos seguintes nove navios: naus D. João IV e Rainha, fragatas Martim de Freitas e Princesa Real, corvetas Isabel Maria, Princesa Real e Cibele e brigues Tejo e Audaz.
Foi pelas oito honas da manhã do dia 3 que por alturas de São Vicente os marinheiros liberais avistaram velas miguelistas. De um e outro lado se procedeu a manobras, tomando posições para uma batalha. Esta, porém, não viria a ferir-se senão no dia seguinte,quando o mar, mais calmo, se tornara propício. O entrectroque foi terrível, segundo o relato do próprio vice-almirante britânico. Apesar da má vontade e das precárias condições morais em que embarcaram, os marinheiros absolutistas bateram-se com arreganho. Mas não puderam resistir ao grande poder dos liberais, superiormente comandados por um autêntico lobo-do-mar, valente e sabedor. A esquadra absolutista não só foi derrotada como também ficou quase totalmente em poder dos constitusionais. Apenas a Isabel Maria e a Cíbele puderam fugir, regressando salvas a Lisboa. O brigue Audaz tratou de reunir-se em Lagos à esquadra liberal, e o Tejo, abandonando igualmente a esquadra miguelista, foi ter à ilha da Madeira. Assim, no dia 5 de Julho de 1833, Lisboa, que até então era considerada pelos miguelistas a cabeça do Estado Absolutista, achou-se desamparada de qualquer defesa por mar. Encontrava-se no começo do declive para a sua derrota total.

O infante Miguel festeja uma derrota
A notícia de que o vice-almirante Napier largara do Porto com rumo ao Sul, possivelmente a Lisboa; onde o Absolutismo parecera ter criado fundas raízes, dera ânimo ao infante Miguel, que entretanto aguardava com impaciência um novo chefe militar capaz de emendar a triste série de erros cometidos pelos generais que se tinham mostrado incapazes de vencer a resistência das forças liberais instaladas no Porto. A falta de confiança nos generais portugueses levara o infante usurpador a optar pela escolha de um marechal francês, cuja história militar parecia adaptar-se melhor à sorte das armas absolutistas. Era este o conde de Chaisme de Bourmont, o mesmo que, em 1815, por ocasião da batalha de Waterloo, traíra Napoleão, desertando para as fileiras contrárias. Depois, em 1830, fora-lhe atribuído o comando superior a 40000 homens que a França expediu contra o rei da Argélia. Conseguiu com eles anexar aos domínios franceses a importantíssima colónia argelina aos riquíssimos domínios franceses, o que lhe valeu o bastão de marechal precisamente na altura em que teve de homiziar-se com Carlos X, o rei a quem servira.
Devia-lhe Portugal a seguinte prova moral: como agradecimento por ter recebido hospitalidade neste país quando em 1804 se evadira de Besanção, onde o tinham encarcerado por questões políticas, Bourmont aceitou, em 1807, o cargo de chefe do estado-maior da divisão do célebre Loison, na invasão francesa comandada por Andoche Junot. Era Bourmont o general que as forças retrógradas iam ter agora à sua frente. Enquanto aguardavam a chegada do novo chefe militar para se decidirem a mais uma tentativa contra o Porto, divulgaram a notícia de ter ficado a cidade apenas defendida por voluntários paisanos e alguns estrangeiros, afirmando que toda a tropa liberal da primeira linha já embarcara. Apressaram os necessários preparativos de um novo ataque, por vezes presidido pelo próprio infante Miguel, que dera em visitar quase todos os dias os seus acampamentos, mas já preocupado com o desfecho da luta». In Mário Domingues, A Derrocada do Absolutismo, Evocação Histórica, Edição Romano Torres, série Lusíada, Lisboa, 1977.

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Evocação Histórica. Afonso Henriques. Mário Domingues. «A história, porém, é muito escassa de informes acerca do que sucedeu ao conde de Portugal no seu país de origem. Sabe-se que o prenderam. Mas, porquê, ignora-se. Contudo, Henrique pôde evadir-se em 1111 e, regressando à Península…»

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Luta obstinada pela Independência
Os condes Raimundo e Henrique firmam aliança secreta para se apoderarem da herança de Afonso VI
«(…) Se as coisas corressem como os condes de Portugal e da Galiza calculavam, o conde Henrique ficaria dominando a sul toda a fronteira muçulmana, bem como os distritos contíguos da margem direita do Tejo e em boa posição para alongar as suas invasões pelo Al-Gharb e a Andaluzia. Mas, nestas engenhosas combinações em que tudo preveem, os mortais nunca incluem o único elemento certo e inevitáve1: a morte. Raimundo, falecendo no ano seguinte, 1107, transtornou profundamente os planos de Henrique, inutilizando o bem elaborado pacto secreto. Por outro lado, Sancho, o filho querido do monarca, pereceu em luta contra os mouros, junto das muralhas de Uclés, em 1108, o que conferiu automaticamente a D.Urraca os direitos de sucessão ao trono do pai. Afonso VI, com cuja morte todos contavam, só veio a falecer em Toledo, em 1109, inconformado com a falta de Sancho, o seu filho predilecto, que a formosa Zaida lhe dera e em quem ele depositara tantas esperanças. As pedras do xadrez da Espanha cristã, com esta mudança brusca e imprevista, iam dar ensejo a outra movimentação no jogo dos interesses.

Todos os meios, mesmo os condenáveis, serviam ao conde Henrique para se engrandecer
Como a morte de Raimundo desmanchara os bem urdidos planos secretos que tantas vantagens trariam ao conde Henrique, parece que este ainda tentou obter alguma coisa do monarca seu sogro, cujo falecimento se previa para muito breve. Urraca achava-se a um passo do trono. Mal o pai deixasse de existir, Henrique converter-se-ia de seu aliado que fora em simples vassalo. Seria essa situação que o Bolonhês pretenderia evitar. Não o conseguiu, como claramente se depreende do decurso dos acontecimentos. Furioso, abandonou a corte de Toledo, com o sogro ainda vivo. Quase em seguida, o grande monarca falecia, não sem ter tido tempo de declarar única herdeira da coroa sua filha Urraca, viúva do conde Raimundo. Estava aceso o rastilho para a explosão dos conflitos que, naqueles tempos, se sucediam habitualmente à morte de um rei. As ambições latentes erguiam-se em labaredas altas de furiosas lutas entre os que se sentiam ansiosos por desfrutar ou partilhar das delícias do poder supremo. Como de costume, também, o inimigo muçulmano aproveitava o ensejo para tirar partido das dissensões dos cristãos, tal como estes não deixavam de tentar obter vantagens das desavenças entre os maometanos. Assim, os mouros de Sintra, que eram vassalos e tributários do conde Henrique, trataram logo de revoltar-se. Mas o conde, marchando resoluto sobre eles, reduziu-os à obediência e puniu-os com severidade.
Entretanto, ao findar o ano 1109, a rainha D. Urraca, com plena concordância de seus súbditos, tomava posse dos Estados de Leão e Castela, dos quais era vassalo o condado Portucalense. Henrique não suportava a suserania da cunhada. A apetecida independência parecer-lhe-ia agora mais longínqua. Disposto a obtê-la pela força, já que não a lograra pela astúcia, partiu em 1110 para França, no intuito de aliciar homens de armas que o ajudassem a concretizar os seus sonhos. A história, porém, é muito escassa de informes acerca do que sucedeu ao conde de Portugal no seu país de origem. Sabe-se que o prenderam. Mas, porquê, ignora-se. Contudo, Henrique pôde evadir-se em 1111 e, regressando à Península, encaminhou-se para o reino de Aragão. Dois anos antes, em fins de 1109, D. Urraca, cujo temperamento sensual as crónicas nos denunciam, custando-lhe suportar a viuvez, casou em segundas núpcias, apesar da má vontade de alguns fidalgos e do clero, com Afonso I, rei de Aragão. Parece que este fora mais talhado para a guerra do que para o amor.
Brutal por índole, entediavam-no as doçuras do lar. Por seu lado, a rainha depressa verificou que não conseguia subjugar o marido como dominava quase toda a gente. As discórdias particulares dos cônjuges breve se transformaram em conflitos políticos. O clero, que a1iás sempre se declarara contra aquele casamento, obteve que o papa decretasse o divórcio, baseando a nulidade do enlace no parentesco dos esposos em grau proibido. Por seu turno, os fidalgos galegos rebelaram-se contra Afonso I, alegando que a sua autoridade régia era nula, devido a uma disposição testamentária de Afonso VI que estabelecia que, no caso de Urraca contrair segundas núpcias, ficasse reinando na Galiza seu neto Afonso Raimundes. Por esta doutrina estava disposta a bater-se a nobreza galega, chefiada por Pedro Froilaz, conde de Trava». In Mário Domingues, D. Afonso Henriques, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1970.

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O Regente Pedro. Príncipe Europeu. Mário José Domingues. «… teve uma conversa particular com o infante Henrique, então de dezoito anos, o mais novo dos três primeiros filhos de D. Filipa. Falou-lhe numa expedição a Ceuta. Ceuta?»

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A Ínclita Geração
«(…) Para distrair seus filhos e dar prazer à fidalguia do seu reino, pensou João I em organizar em Portugal uns luzidos torneios, com basta participação de campeões estrangeiros que por muito tempo recordassem esses festejos como a coisa mais bela de que houvesse memória. Seria um pretexto para armar solenemente cavaleiros os seus filhos Duarte, Pedro e Henrique. Supunha que eles iriam ficar maravilhados com esta ideia. Enganou-se, porém. Os rapazes queriam ganhar as suas esporas de ouro, ser armados cavaleiros, é certo, mas não numa lide em família, sob os olhares complacentes das damas, diante do palanquim engalanado, onde o pai, todo benevolência, cercado da corte embevecida, lhes concederia honras, que eles só entendiam por genuinamente merecidas, quando conquistadas com risco de sua vida ou ao preço do seu próprio sangue. Por um ideal bem diferente do de cavalaria medieva, que ainda animava a nova geração no primeiro quartel do século XV, a mentalidade burguesa dos governantes de então achava-se de acordo com os filhos do monarca. E assim se formou no seio da corte uma espécie de conjura benévola entre nobres e burgueses contra o comodismo um tanto ingénuo de João I.

A semente do ódio
Não era muito fácil tirar-se da cabeça do antigo mestre de Avis a ideia pueril dos torneios que ele vinha acarinhando com tanto enlevo. Os filhos, não a aceitando de boa mente, não se sentiam, entretanto, com coragem de tentar dissuadi-lo. Andavam desgostosos, e a sua contrariedade não passava despercebida aos conselheiros do monarca, a quem a ideia tão-pouco seduzia. O problema que mais os preocupava, o de dar uma tarefa de certo modo absorvente à juventude nobre, cuja idade rondava a dos infantes, não se resolveria com festejos mais ou menos vistosos, muito agradáveis, mas sem qualquer finalidade prática. Essas festas, em que haveria necessidade de fazer ostentação de riqueza, apenas serviriam para desfalcar o Tesouro, que, continuando uma velha tradição, não era dos mais desafogados. Extintos os últimos ecos dos combates na liça, das canções dos jograis na praça pública e das vozes maviosas dos trovadores nos paços régios, que ficaria à nação mais do que um vácuo no erário e na alma de uma mocidade, que tanto desejava realizar-se plenamente?
Os conselheiros de espírito prático, de mentalidade acentuadamente burguesa, esses, tinham uma ideia que se lhes afigurava muito mais vantajosa do que os festejos com que o monarca sonhava. Parece que essa ideia brotara da mente de João Afonso Azambuja, um dos homens que mais se esforçava, como João das Regras e Lourenço Vicente, arcebispo de Braga, por imprimir um rumo novo à barca do Estado, nessa época em que já se apercebiam os primeiros alvores da Renascença. Portugal, país de modestos recursos naturais, precisava de enriquecer. Limpo o seu território, primeiro, dos mouros, que por tantos séculos o ocuparam, depois, dos seus vizinhos castelhanos, que em vão intentaram submetê-lo, porque não ir bater o inimigo tradicional em sua própria casa?
Muito em segredo, os conselheiros vinham premeditando uma conquista, sem se atreverem a falar dela ao seu rei, que se mostrava cada vez mais satisfeito na sua inactividade. Decidiram então aproveitar-se do descontentamento dos infantes e, por intermédio deles, comover o coração do pai. João Afonso Azambuja teve uma conversa particular com o infante Henrique, então de dezoito anos, o mais novo dos três primeiros filhos de D. Filipa. Falou-lhe numa expedição a Ceuta. Ceuta? Esta cidade muçulmana tinha fama de fabulosamente rica e encontrava-se, por assim dizer, a dois passos, no Norte de África. O seu comércio de produtos, que recebia do Oriente e reexportava para a Europa, era considerável. Se fosse possível conquistar essa praça e fortificá-la, lograr-se-ia cravar uma lança cristã em território de infiéis e simultaneamente canalizar para Portugal o imenso rendimento do tráfego mercantil do seu porto. Transmitida por Henrique a ideia da expedição a Pedro e a Duarte, herdeiro do trono, os três irmãos sentiram-se empolgados. Tal empresa não podia ajustar-se melhor às suas vagas aspirações de acção, nem corresponder de maneira mais perfeita à ansiedade da nobreza, que dir-se-ia angustiada na sua ociosidade. Parecia impossível nunca lhes ter ocorrido esta ideia, que já se lhes afigurava tão simples. Conhecedores da predilecção que o pai experimentava por seu filho Henrique, foi este incumbido pelos outros dois irmãos de expor-lhe os seus desejos». In Mário Domingues, O Regente Pedro, Príncipe Europeu, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção de História de Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.

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sábado, 31 de agosto de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «… o monarca estrangeiro não tardaria em persuadir-se da fidelidade canina de Jorge de Noronha, da qual chegara a duvidar, quando teve conhecimento dos bons serviços do traidor português…»

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Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) O que progredia sempre, intimidando, entibeando, manietando os homens que poderiam opor-se às pretensões de Filipe II, ,era a corrupção de Castela, sabiamente ministrada pelo duque de Ossuna e, Cristóvão de Moura, os embaixadores espanhóis. Os corruptos usavam na sua linguagem particular termos que torpemente expressavam a sua visão moral da vida. Assim, cada português que aderia à causa castelhana, vendendo os seus irmãos, fazia-se crrstão. Mais um traidor era, em seu distorcido critério, mais um cristão. Jorge de Noronha, neto do segundo marquês de Vila Real, cuja adesão ao monarca vizinho se revestira de tanta baixeza como de ridículo, expediu de Almeirim, a 24 de Março de 1580, uma carta típica de fidalgo venal dessa época, em que o termo cristão se emprega no sentido que referimos: Que se deram as cartas e recados de S. M. [Sua Majestade] aos governadores e Braços [braços ou Estados do reino], e que se fizeram mui boas diligências com todos, cujo proveito vai aparecendo, porque já os mais deles estão rendidos, convertidos e feitos cristãos, e que se baptizararn na água das listas de mercês que S. M. fez a todos, as quais são mal merecidas, porque ainda não estão os caminhos de Portugal e Guadalupe cobertos de Portugueses. Pede licença para ser ele o primeíro que o faça, pois talvez muitos o sigam, sendo tão natural nos Partugueses a inveja.
Queria ele que os portugueses se postassem no caminho de Filipe II, na sua entrada em Portugal, para o reverenciar, e desejava ser o primeiro desses portugueses, esperando ainda que o seu exemplo, por emulação, por inveja contagiasse todos os seus compatriotas. Media o estofo moral dos outros pelos seus próprios sentimentos. Contudo, Sua Majestade duvidou da veracidade das informações e de tão cornpleta baixeza moral do informador, porque, à margem do extracto que lhe foi remetido, exarou a seguinte nota: Fica cá a carta, porque creio que será, míster enviá-la ao duque ou D. Cristóvão, pela razão que vos disse, e pela que há a respeito de quem a escreve.

Entretanto, o monarca estrangeiro não tardaria em persuadir-se da fidelidade canina de Jorge de Noronha, da qual chegara a duvidar, quando teve conhecimento dos bons serviços do traidor português, descritos no seguinte extracto de outra sua carta: Que muitos dos procuradores de bom e mutto bom ânimo no negócío se foram [por ocasião da dissolução das Cortes]; porque os melhores, já enfadados de não estarem todos de acordo, e de serem os de Lisboa, que era a cabeça, mal inclinados, começaram a partir. Que Manuel Sousa Pacheco, um dos procuradores de Lisboa, já não é companheiro de Febo Moniz, porque se fez cristão, e deu palavra ao bispo e ao arcebispo de Évora, de sê-lo sempre, e que todos se vão baptizando.
No mesmo papel que remete com a carta (datada de Santarém a 15 de Março e escrita por um procurador chamado Rodrigo Abreu) o nome que vai riscado é o dele, Jorge, e declara que assim se deu a ler aos Governadores. Nele representam aos ditos Governadores o desejo que tem a maior parte dos procuradores de paz e quietação, em conformidade do que o governo deseja, tudo pelo bem da cristandade. Aí dizem que é um engano pensar que prara tratarem dos concertos convém que sejam menos, quando todos querem paz e concórdia, porque já caíram na razão, e vêm que é necessário. O meio que apontam para isto se poder alcançar é chamá-lo dois a dois, pois chamando-os juntos dizem que não, por não haver quem queira em público.
Jorge diz que testifica i por que falou com os mais deles. Recomenda o segredo e a brevidade da execução. Que depois de se conseguir o resultado dirá quem fez a proposta, para ser agraciado. Adverte que até das terras escrevem cartas avulsas, em que lhe significam o mesmo, mas que não ousam falar, tanto pelas agitações que andam, como pelo que diz o vulgo. Pede que se restitua este papel, porque é de letra conhecida».

In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

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O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Toda a gente conhecia a índole indecisa e frouxa do duque, em despeito das suas atitudes de brigão para a dissimular. Fosse ele um pouco mais ousado […] ter-se-iam reunido em sua volta, embora as suas faculdades não fossem brilhantes»

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As Cortes reduzidas ao silêncio e à inoperância
«(…) Estava quebrada a coesão da classe popular, que, nesse momento histórico, representava o genuíno espírito nacional de resistência às ameaças estrangeiras. Logo para eleger os representantes do povo, que deviam permanecer como consultores, se estabeleceu luta entre os partidários do duque de Bragança e do Prior do Crato, ambos empenhados em que seus representantes predominassem nesse grupo. E os Governadores, sempre muito preocupados em que a ordem pública não se alterasse, e para que a retirada dos delegados se fizesse espaçadamente e muito discreta, concederam que as câmaras lhes pagassem os respectivos subsídios até 10 de Abril. Assim, os partidários de Castela reduziram ao silêncio e à inoperância o supremo organismo político da nação, Que não logrou concretizar em decisões claras a iniludível repulsa portuguesa pelo monarca estrangeiro.

Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
Neste breve período, que vai desde a morte do cardeal-rei Henrique (31 de Janeiro de 1580) à data da dissolução das Cortes em Santarém e Almeirim (15 de Março do mesmo ano), isto é, num lapso de mês e meio, verificaram-se simultaneamente diversos e episódios, uns mais espectaculares, outros mais discretos, que directa ou indirectamente viriam a ter a sua influência no curso da história. Um deles foi, sem dúvida, o passo que o duque de Bragança deu, logo após a morte do monarca, tio de sua mulher, a infanta D. Catarina, única pessoa pretendente ao trono acerca da legitimidade da qual não se levantavam objecções válidas. E seria a única que Filipe II realmente deveria temer, se acaso seu marido dispusesse de força e popularidade com que pudesse opor-se aos seus planos de absorção.
Quase todos os historiadores nos dizem que, ainda o cadáver do monarca estava quente, já João, duque de Bragança, se apresentava aos Governadores e Defensores do Reino para lhes declarar que se sujeitava à decisão dos juízes nomeados para resolverem o processo da sucessão. O mais curioso, porém, não está na sua declaração, mas sim nas insinuações de que a acompanhou. Deu a entender, através de frases dúbias, que, se fosse prejudicado na sua pretensão, lançaria mão de outros meios para a impor. Ora, não havia outros meios senão a força e o dinheiro. E a casa de Bragança possuía-os. O duque era o fidalgo mais rico e mais poderoso do reino. Mas era também, sob aquela máscara de fanfarrão, o homem mais prudente, hesitante e timorato. Tendo à sua disposição um poder enorme e uma fortuna fabulosa, vivia no temor de tudo perder numa cartada irreflectida. Ambicionava ver-se rei, por via de sua mulher, cujos direitos ao trono eram incontestáveis. Não arriscaria, porém, a sua fortuna e muito menos a sua cabeça para o conseguir.
Toda a gente conhecia a índole indecisa e frouxa do duque, em despeito das suas atitudes de brigão para a dissimular. Fosse ele um pouco mais ousado, e parte da nobreza e do alto clero, que ainda o apoiavam sem entusiasmo, e mesmo as classes populares ter-se-iam reunido em sua volta e preferido ao monarca estrangeiro o duque de Bragança por ser português, embora as suas faculdades não fossem brilhantes. Teria consolidado a unidade nacional e com ela impedido o domínio castelhano, cujo poder militar, mais famoso do que verdadeiro, se esboroaria contra uma nação decidida a manter a sua independência.
A fanfarronada do duque não intimidou os Governadores, em sua maior parte já secretamente ao serviço de Castela, nem animou os procuradores às Cortes nessa data reunidas, como supremo orgão político do reino e legítimo intérprete da vontade nacional, a elegê-lo rei, inutilizando com uma vassourada enérgica toda a papelada do processo de sucessão, todos aqueles pareceres de letrados duvidosos, todas aquelas pérfidas notas diplomáticas. A vontade da nação erguer-se-ia acima dessa balbúrdia, como nas Cortes de Coimbra de 1385, em que, proclamando rei João, mestre de Avis, anularam a legitimidade de D. Beatriz, filha única do monarca Fernando I e mulher do rei de Castela, e criaram uma nova dinastia, esta mesma que, após dois séculos deslumbrantes, agonizava agora em apagada e vil tristeza».

In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de RTorres/JDACT