jdact
Repercussão de Alcácer Quibir. As Primeiras Notícias de Alcácer Quibir
«(…) Comovia-se ele, pensando no seu próprio fim, e comoveram-se muito
os circunstantes, quase todos com parentes em África de cuja sorte nada
conheciam. A armada de Diogo Sousa, a quem o monarca Sebastião I ordenara que o
esperasse em Larache, sem intentar a conquista da praça, depois de aguardar
dois dias os possíveis fugitivos, fez-se de vela para a Metrópole em 6 de
Agosto, trazendo apenas alguns raros combatentes que puderam alcançar a costa.
O capitão deixou, porém, a pairar nas proximidades daquela vila seu sobrinho
Francisco Sousa, com um galeão e duas zabras, para avisar de alguma tentativa
de assalto que o xerife, animado por tão retumbante vitória, esboçasse contra
as praças portuguesas. O regresso da armada de Diogo Sousa, com uns escassos
fugitivos e alguns pormenores da tragédia, que logo se divulgaram, ainda mais
aumentou a consternação do povo. Os escapos daquele inferno descreveram com
horror a mortandade a que assistiram. As damas nobres passavam a maior parte do
seu tempo nas igrejas a orar pelos maridos e pelos filhos e a falar com outras
infelizes como elas acerca do triste destino dos entes queridos. O desespero
levava muitos parentes alanceados a recorrerem supersticiosa e hereticamente, em
despeito da sua educação católica, ao conselho de bruxas e à prática de
feitiçarias para conhecerem o paradeiro de quem mais estimavam. E já havia
mulheres que, julgando-se viúvas, resvalavam em costumes tão dissolutos, que,
no dizer de certo cronista, se os maridos soubessem o que se passava, talvez preferissem
ficar no cativeiro.
Certificando-se de que os mouros não pensavam em atacar as praças
portuguesas, regressou Francisco Sousa, com sua pequena frota, chegando a
Lisboa, em 24 de Agosto, um domingo. Trouxe cartas com importantes notícias,
que não tardaram em divulgar-se, e a mais impressionante de todas foi a da
morte do monarca Sebastião I. Com esta fúnebre certeza, todo o povo português
compreendeu que a ameaça do domínio castelhano, a pairar, ora próxima ora
distante, durante mais de um quarto de século, sobre a nação, estava prestes a
converter-se numa realidade inevitável.
A notícia certa da morte de Sebastião I
Reveste-se de extraordinária importância, quer no supremo interesse da
verdade histórica, quer pelo fenómeno de psicologia colectiva que tantas vezes
a deturpa, transfigura ou sublima, estabelecer, com elementos que nos parecem
suficientemente sólidos, a maneira como se confirmou a morte do monarca
Sebastião em Álcácer Quibir. Logo no dia imediato à batalha o cadáver do
monarca foi reconhecido por pessoas da sua intimidade e como, decorrido mais um
dia, em consequência da rápida decomposição do corpo, outra pessoa já se
declarou incapaz de o reconhecer, e ainda como mais tarde, devido a um
incidente provocado por um homem que, ansioso por salvar-se às portas cerradas
de Arzila, se lembrou de fazer-se passar pelo monarca para lhas abrirem, se
gerou, sem querer e sem se prever as consequências do ludíbrio, o boato de que
Sebastião I estava vivo, boato esse que se foi avolumando, consoante o tempo
foi decorrendo.
É indispensável que principiemos por narrar o que ocorueu no dia 5 de
Agosto de 1578, vinte e quatro horas depois da funesta batalha, em que perderam
a vida os três reis que nela entraram: Mulei Moâmede, o xerife deposto; Abde
Almélique, o xerife reinante, e Sebastião, rei de Portugal. Mulei Amede, o novo
xerife, orgulhoso de uma vitória da qual ele fora o primeiro a descrer, ordenou
que se recolhessem os despojos. Ainda eram estes muito abundantes, apesar de um
primeiro saque, realizado pelos alarves, porque nunca houvera batalha no Norte
de África em que a fidalguia se apresentasse mais adornada de coisas ricas do
que nesta. Ao mesmo tempo, anunciou por toda a comarca as penas mais severas
para quem ocultasse prisioneiros de alta estirpe. Queria sacar o maior lucro possível
do resgate dos nobres. Os mouros tinham arrastado a maior parte dos
prisioneiros para suas casas, algumas destas relativamente distantes do local
da tragédia, e consideravam-nos propriedade muito sua. Procediam conforme as
bárbaras leis da guerra daquele tempo, que, afinal, não diferiam muito das dos nossos
dias». In Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique, o Homem e o Monarca,
Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1964.
Cortesia de LRTorres/JDACT