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de wikipedia
«(…)
A frincha da porta fazia parte da casa, como as paredes ou o tecto, como o
forno ou o chão de terra apisoada. Em voz baixa, para não acordar a mulher, que
continuava a dormir, pronunciou a primeira bênção do dia, aquela que sempre
deve ser dita quando se regressa do misterioso país do sono, Graças te dou,
Senhor, nosso Deus, rei do universo, que pelo poder da tua misericórdia, assim
me restituis, viva e constante, a minha alma. Talvez por não se encontrar
igualmente desperto em cada um dos seus cinco sentidos, se é que, então, nesta
época de que vimos falando, não estavam as pessoas ainda a aprender alguns
deles ou, pelo contrário, a perder outros que hoje nos seriam úteis, José
olhava-se a si mesmo como se fosse acompanhando, a distância, a lenta ocupação
do seu corpo por uma alma que aos poucos estivesse regressando, igual a fios de
água que, avançando sinuosos pelos caminhos das regueiras, penetrassem a terra
até às mais fundas raízes, transportando a seiva, depois, pelo interior dos
caules e das folhas. E por ver quão trabalhoso era este regresso, olhando a
mulher, a seu lado, teve um pensamento que o perturbou, que ela, ali
adormecida, era verdadeiramente um corpo sem alma, que a alma não está presente
no corpo que dorme, ou então não faz sentido que agradeçamos todos os dias a
Deus por todos os dias no-la restituir quando acordamos, e nesta altura uma voz
dentro de si perguntou, O que é que em nós sonha o que sonhamos, porventura os
sonhos são as lembranças que a alma tem do corpo, pensou a seguir, e isto era
uma resposta. Maria moveu-se, acaso a alma dela estaria ali por perto, já
dentro de casa, mas no fim não despertou, apenas andaria em afãs de sonho, e, tendo
soltado um suspiro fundo, entrecortado como um soluço, chegou-se para o marido,
num movimento sinuoso, porém inconsciente, que jamais ousaria quando acordada.
José puxou o lençol grosso e áspero para os ombros e aconchegou melhor o corpo
na esteira, sem se afastar. Sentiu que o calor da mulher, carregado de odores,
como de uma arca fechada onde tivessem secado ervas, lhe ia penetrando pouco a
pouco o tecido da túnica, juntando-se ao calor do seu próprio corpo. Depois,
deixando descer devagar as pálpebras, esquecido já de pensamentos, desprendido
da alma, abandonou-se ao sono que voltava.
Só
tornou a acordar quando o galo cantou. A frincha da porta deixava passar uma
cor grisalha e imprecisa, de aguada suja. O tempo, usando de paciência,
contentara-se com esperar que se cansassem as forças da noite e agora estava a
preparar o campo para a manhã chegar ao mundo, como ontem e sempre, em verdade
não estamos naqueles dias fabulosos em que o sol, a quem já tanto devíamos,
levou a sua benevolência ao ponto de deter, sobre Gabaon, a sua viagem, assim
dando a Josué tempo de vencer, com todos os vagares, os cinco reis que lhe
cercavam a cidade. José sentou-se na esteira, afastou o lençol, e nesse momento
o galo cantou segunda vez, lembrando-lhe que se encontrava em falta de uma
bênção, aquela que se deve à parte de méritos que ao galo coube quando da
distribuição que deles fez o Criador pelas suas criaturas, Louvado sejas tu,
Senhor, nosso Deus, rei do universo, que deste ao galo inteligência para distinguir
o dia da noite, isto disse José, e o galo cantou terceira vez. Era costume, ao
primeiro sinal destas alvoradas, responderem-se uns aos outros os galos da
vizinhança, mas hoje ficaram calados, como se para eles a noite ainda não
tivesse terminado ou mal tivesse começado. José, perplexo, olhou o vulto da
mulher, estranhando-lhe o sono pesado, ela que o mais ligeiro ruído fazia
despertar, como um pássaro. Era como se uma força exterior, descendo, ou
pairando, sobre Maria, lhe comprimisse o corpo contra o solo, porém não tanto
que a imobilizasse por completo, notava-se mesmo, apesar da penumbra, que a
percorriam súbitos estremecimentos, como a água de um tanque tocada pelo vento.
Estará mal, pensou, mas eis que um sinal de urgência o distraiu da preocupação
incipiente, uma instante necessidade de urinar, também ela muito fora do
costume, que estas satisfações, na sua pessoa, habitualmente manifestavam-se
mais tarde, e nunca tão vivamente. Levantou-se, cauteloso, para evitar que a
mulher desse pelo que ia fazer, pois escrito está que por todos os modos se
deve preservar o respeito de um homem, só quando de todo em todo não for
possível, e, tendo aberto devagar a porta que rangia, saiu para o pátio. Era a
hora em que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo.
Encaminhou-se para um alpendre baixo, que era a barraca do jumento, e aí se
aliviou, escutando, com uma satisfação meio consciente, o ruído forte do jacto
de urina sobre a palha que cobria o chão». In José Saramago, O Evangelho segundo Jesus
Cristo, Editorial Caminho (o Campo da Palavra), Lisboa, 1991, ISBN
972-210-524-8.
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