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«(…) Não esperem que vos dê contas do que me foi dado experimentar
neste domínio. Aqui, limitar-me-ei a recordar sem esforço aquilo que, não
correspondendo a qualquer iniciativa minha, algumas vezes me aconteceu, dando-me,
ao vir ao meu encontro através de vias imprevisíveis, a medida da graça e da
desgraça particulares de que sou objecto; falarei dessas coisas desordenadamente,
segundo o capricho do momento que deixa vir à superfície o que consegue vir à
superfície. Tomarei por ponto de partida o Hotel dos Grandes Homens, na praça
do Panteão, minha morada em 1918, e por etapa a Mansão d’Ango, em Varengeville-sur-Mer,
onde me encontro, decididamente sempre o mesmo, em Agosto de 1927. A Mansão d’Ango,
onde me ofereceram alojamento, quando pretendia não ser incomodado, numa cabana
artificialmente revestida de mato, na orla de um bosque, e de onde podia,
dispondo do tempo à minha vontade, caçar aves nocturnas (seria possível que
fosse de outro modo se pretendia escrever Nadja?). Não importa que erros
ou omissões mínimas, mesmo alguma confusão ou sincero esquecimento, lancem por
vezes uma sombra sobre o que descrevo, acontecimentos que não poderiam estar,
no seu conjunto, sujeitos a caução. Enfim, gostaria que tais acidentes do
pensamento não fossem reconduzidos à sua injusta proporção de factos anódinos;
se eu digo, por exemplo, que em Paris a estátua de Etienne Dolet, na praça
Maubert, sempre me atraiu e ao mesmo tempo causou um mal-estar insuportável,
daí não se infere imediatamente que possa cair em absoluto sob a alçada da
psicanálise, método que estimo e do qual penso não visar nada menos do que
expulsar o homem de si próprio, o que equivale a dizer que espero dele, não
proezas de meirinho, mas outros feitos. A psicanálise, aliás, não está em
condições de abordar semelhantes fenómenos, a despeito dos seus grandes
méritos, e já é conceder-lhe créditos excessivos admitir que esgota o problema
do sonho ou que não ocasiona simplesmente novos falhanços de actos a partir da
sua explicação dos actos falhados. É a minha própria experiência que me
interessa, é ela e seu campo, eu próprio, que constituem para mim um motivo quase
permanente de meditações e devaneios. No dia da estreia de Couleur du Temps,
de Apollinaire, no Conservatório Renée Maubel, estava eu no balcão a conversar
com Picasso durante o intervalo, aproximou-se de mim um jovem que começou por
balbuciar algumas palavras e acabou por explicar ter-me tomado por um dos seus amigos,
dado por morto na guerra. Como é natural, ficou por ali a nossa troca de
palavras. Pouco tempo depois, por intermédio de Jean Paulhan, comecei a
corresponder-me com Paul Éluard, sem que por essa altura tivéssemos a menor
ideia do aspecto físico um do outro. Éluard teve uns dias de licença e veio
ver-me: era ele quem tinha vindo ao meu encontro na estreia de Couleur du Temps.
As palavras bois-charbons (lenha-carvões) que se exibem na última página
dos Campos Magnéticos valeram-me, todo um domingo em que andei ,a
passear com Soupault, a possibilidade de exercer um talento extravagante de
prospecção no que concerne as lojas que designam. Parece-me que podia dizer,
fosse qual fosse a rua por onde enveredasse, a que altura à direita, à
esquerda, essas lojas haviam de surgir, e afirmar que isso havia de verificar-se
sempre. Sentia-me avisado, guiado, não pela imagem alucinatória das palavras em
questão, mas antes pela de uma dessas tabuletas de madeira sumariamente
pintadas, de cor uniforme com um sector mais sombrio, que se encontram de ambos
os lados da entrada. Ao voltar para casa, esta imagem continuava a
perseguir-me. A música de carrocel que vinha dos lados do largo Médicis
evocava-me irresistivelmente a tabuleta. Da minha janela, o mesmo acontecia com
o crânio de Jean-Jacques Rousseau, cuja estátua me aparecia de costas, dois ou
três andares abaixo de mim. Recuei precipitadamente, tomado de pânico». In
André Breton, Nadja, Editions Gallimard, 1964, Editorial Estampa, tradução de
Ernesto Sampaio, Lisboa, 1971.
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