terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Nadja. André Breton. «É a minha própria experiência que me interessa, é ela e seu campo, eu próprio, que constituem para mim um motivo quase permanente de meditações e devaneios»

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«(…) Não esperem que vos dê contas do que me foi dado experimentar neste domínio. Aqui, limitar-me-ei a recordar sem esforço aquilo que, não correspondendo a qualquer iniciativa minha, algumas vezes me aconteceu, dando-me, ao vir ao meu encontro através de vias imprevisíveis, a medida da graça e da desgraça particulares de que sou objecto; falarei dessas coisas desordenadamente, segundo o capricho do momento que deixa vir à superfície o que consegue vir à superfície. Tomarei por ponto de partida o Hotel dos Grandes Homens, na praça do Panteão, minha morada em 1918, e por etapa a Mansão d’Ango, em Varengeville-sur-Mer, onde me encontro, decididamente sempre o mesmo, em Agosto de 1927. A Mansão d’Ango, onde me ofereceram alojamento, quando pretendia não ser incomodado, numa cabana artificialmente revestida de mato, na orla de um bosque, e de onde podia, dispondo do tempo à minha vontade, caçar aves nocturnas (seria possível que fosse de outro modo se pretendia escrever Nadja?). Não importa que erros ou omissões mínimas, mesmo alguma confusão ou sincero esquecimento, lancem por vezes uma sombra sobre o que descrevo, acontecimentos que não poderiam estar, no seu conjunto, sujeitos a caução. Enfim, gostaria que tais acidentes do pensamento não fossem reconduzidos à sua injusta proporção de factos anódinos; se eu digo, por exemplo, que em Paris a estátua de Etienne Dolet, na praça Maubert, sempre me atraiu e ao mesmo tempo causou um mal-estar insuportável, daí não se infere imediatamente que possa cair em absoluto sob a alçada da psicanálise, método que estimo e do qual penso não visar nada menos do que expulsar o homem de si próprio, o que equivale a dizer que espero dele, não proezas de meirinho, mas outros feitos. A psicanálise, aliás, não está em condições de abordar semelhantes fenómenos, a despeito dos seus grandes méritos, e já é conceder-lhe créditos excessivos admitir que esgota o problema do sonho ou que não ocasiona simplesmente novos falhanços de actos a partir da sua explicação dos actos falhados. É a minha própria experiência que me interessa, é ela e seu campo, eu próprio, que constituem para mim um motivo quase permanente de meditações e devaneios. No dia da estreia de Couleur du Temps, de Apollinaire, no Conservatório Renée Maubel, estava eu no balcão a conversar com Picasso durante o intervalo, aproximou-se de mim um jovem que começou por balbuciar algumas palavras e acabou por explicar ter-me tomado por um dos seus amigos, dado por morto na guerra. Como é natural, ficou por ali a nossa troca de palavras. Pouco tempo depois, por intermédio de Jean Paulhan, comecei a corresponder-me com Paul Éluard, sem que por essa altura tivéssemos a menor ideia do aspecto físico um do outro. Éluard teve uns dias de licença e veio ver-me: era ele quem tinha vindo ao meu encontro na estreia de Couleur du Temps.
As palavras bois-charbons (lenha-carvões) que se exibem na última página dos Campos Magnéticos valeram-me, todo um domingo em que andei ,a passear com Soupault, a possibilidade de exercer um talento extravagante de prospecção no que concerne as lojas que designam. Parece-me que podia dizer, fosse qual fosse a rua por onde enveredasse, a que altura à direita, à esquerda, essas lojas haviam de surgir, e afirmar que isso havia de verificar-se sempre. Sentia-me avisado, guiado, não pela imagem alucinatória das palavras em questão, mas antes pela de uma dessas tabuletas de madeira sumariamente pintadas, de cor uniforme com um sector mais sombrio, que se encontram de ambos os lados da entrada. Ao voltar para casa, esta imagem continuava a perseguir-me. A música de carrocel que vinha dos lados do largo Médicis evocava-me irresistivelmente a tabuleta. Da minha janela, o mesmo acontecia com o crânio de Jean-Jacques Rousseau, cuja estátua me aparecia de costas, dois ou três andares abaixo de mim. Recuei precipitadamente, tomado de pânico». In André Breton, Nadja, Editions Gallimard, 1964, Editorial Estampa, tradução de Ernesto Sampaio, Lisboa, 1971.

Cortesia EEstampa/JDACT