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«(…)
Oh, claro. É agora uma personagem importante das Forças Francesas Livres. Tem
conferências particulares com sir Mountolive. Este também lá ficou. Verá,
Darley, vai encontrar muita gente do seu tempo. Mnemjian parecia
satisfeitíssimo por me ter causado tantas surpresas. Foi então que me disse
qualquer coisa que me provocou um sobressalto violento. Parei e obriguei-o a
repetir o que dissera, tão incrível me parecia. Venho de fazer uma visita a
Capodistria. Olhei-o por um momento, incrédulo. Capodistria! Mas ele morreu!, exclamei. O barbeiro deixou-se
cair para trás como quem se recosta numa poltrona de molas e ficou a oscilar
sobre as pernas curtas. Desta vez o gracejo era de primeira ordem e demorou-se
a saboreá-lo durante um extenso minuto. Por fim, soltando um suspiro deliciado,
retirou do bolso um postal e apresentou-mo: nesse caso, quem é este sujeito? Era
uma fotografia pouco nítida, precipitadamente revelada por um fotógrafo
ambulante. Viam-se dois homens caminhando à beira-mar, mas um deles era
Mnemjian. O outro... Observando-o com atenção, não havia dúvida possível... Capodistria
vestia calças do mais puro estilo eduardino e calçava sapatos pretos
pontiagudos. Cobria-o um sobretudo académico, com gola e punhos de peles.
Finalmente, coroava-o um chapeau melon
que o fazia parecer-se irresistivelmente com uma espécie de ratazana de
desenhos animados. Tinha deixado crescer um bigode à Rilke, que caía
ligeiramente sobre os cantos da boca. Cravada entre os dentes via-se ainda uma
comprida boquilha. Era incontestavelmente Capodistria. Mas, então..., comecei,
mas o pequeno Mnemjian fechou um olho levando um dedo discreto aos lábios. Há
sempre mistérios, murmurou.
E,
como para guardá-los melhor, engoliu em seco como um enorme sapo e olhou-me de
frente com um ar de maldosa satisfação. Talvez me tivesse esclarecido se nesse
momento o apito do vapor de Esmirna não começasse a ouvir-se para lá da aldeia.
Tomado de pânico, apressou vivamente o passo. Depressa. Ah! Já me esquecia de
entregar-lhe a carta de Hosnani. O sobrescrito estava dobrado em dois no fundo
do bolso interior do casaco, e acabou por retirá-lo, todo amarrotado, enquanto
acelerava o andamento, quase correndo já. Bem, até à vista, disse ele. Está
tudo arranjado. Até breve. Apertei-lhe a mão e fiquei a vê-lo precipitar-se
para o cais, surpreendido e indeciso. Depois retomei o caminho do olival e
sentei-me numa pedra para ler a carta de Nessim. Era breve e continha em
pormenor as disposições que tinha tomado para a nossa viagem. Um barco viria
buscar-nos à ilha. Fixava-me uma data aproximada e pedia-me para estar
preparado. Tudo isso exposto de maneira clara e precisa. Depois Nessim
acrescentava em pós-escrito, na sua letra generosa: será agradável tornar a
vê-lo sem qualquer espécie de reservas. Creio que Balthazar lhe fez a descrição
de todos os nossos infortúnios. Espero que não exigirá um arrependimento
excessivo por parte daqueles que só lhe querem bem. Que o passado seja para
todos nós como um livro definitivamente fechado. Foi assim que as coisas se
decidiram.
Durante
os últimos dias a ilha presenteou-nos generosamente com o seu melhor tempo e
com essas austeras simplicidades das Cíclades, que nos foram direitas ao coração
como abraços calorosos, e eu sabia que ia sentir saudades quando os miasmas do
Egipto se tivessem cerrado sobre a minha cabeça. Na noite da partida toda a
aldeia saiu para nos oferecer o prometido banquete: cordeiro no espero e esse dourado
rezina, um vinho delicioso. As mesas
e as cadeiras tinham sido arrumadas em todo o comprimento da rua principal, e
cada família trazia a sua própria contribuição para o festim. Até os dois
orgulhosos dignitários, o presidente da câmara e o padre, lá estavam, ocupando
cada um a sua cabeceira na extensa mesa. Fazia frio, ali sentados ao ar livre
como se estivéssemos em pleno Verão; mas a Lua, erguendo-se por sobre o mar, veio
dar a sua contribuição para o brilhantismo da festa, realçando a brancura dos
guardanapos e polindo os copos de vinho. As faces buriladas dos velhos,
aquecidas pelas libações, avermelhavam-se como caldeirões de cobre. sorrisos
antigos, saudações arcaicas, gracejos tradicionais, cortesias do mundo antigo
que já desaparece e se afasta de nós. Velhos capitães das flotilhas de pesca
das esponjas, que despejavam todos os ganhos nas canecas de vinho de esmalte
azul..., os seus abraços cordiais cheiravam a batata no forno e as guias dos
grandes bigodes amarelados pelo tabaco subiam para as orelhas». In
Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Clea, 1960, Publicações dom
Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia
PdQuixote/JDACT