quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Clea. O Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Creio que Balthazar lhe fez a descrição de todos os nossos infortúnios. Espero que não exigirá um arrependimento excessivo por parte daqueles que só lhe querem bem»

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«(…) Oh, claro. É agora uma personagem importante das Forças Francesas Livres. Tem conferências particulares com sir Mountolive. Este também lá ficou. Verá, Darley, vai encontrar muita gente do seu tempo. Mnemjian parecia satisfeitíssimo por me ter causado tantas surpresas. Foi então que me disse qualquer coisa que me provocou um sobressalto violento. Parei e obriguei-o a repetir o que dissera, tão incrível me parecia. Venho de fazer uma visita a Capodistria. Olhei-o por um momento, incrédulo. Capodistria! Mas ele morreu!, exclamei. O barbeiro deixou-se cair para trás como quem se recosta numa poltrona de molas e ficou a oscilar sobre as pernas curtas. Desta vez o gracejo era de primeira ordem e demorou-se a saboreá-lo durante um extenso minuto. Por fim, soltando um suspiro deliciado, retirou do bolso um postal e apresentou-mo: nesse caso, quem é este sujeito? Era uma fotografia pouco nítida, precipitadamente revelada por um fotógrafo ambulante. Viam-se dois homens caminhando à beira-mar, mas um deles era Mnemjian. O outro... Observando-o com atenção, não havia dúvida possível... Capodistria vestia calças do mais puro estilo eduardino e calçava sapatos pretos pontiagudos. Cobria-o um sobretudo académico, com gola e punhos de peles. Finalmente, coroava-o um chapeau melon que o fazia parecer-se irresistivelmente com uma espécie de ratazana de desenhos animados. Tinha deixado crescer um bigode à Rilke, que caía ligeiramente sobre os cantos da boca. Cravada entre os dentes via-se ainda uma comprida boquilha. Era incontestavelmente Capodistria. Mas, então..., comecei, mas o pequeno Mnemjian fechou um olho levando um dedo discreto aos lábios. Há sempre mistérios, murmurou.
E, como para guardá-los melhor, engoliu em seco como um enorme sapo e olhou-me de frente com um ar de maldosa satisfação. Talvez me tivesse esclarecido se nesse momento o apito do vapor de Esmirna não começasse a ouvir-se para lá da aldeia. Tomado de pânico, apressou vivamente o passo. Depressa. Ah! Já me esquecia de entregar-lhe a carta de Hosnani. O sobrescrito estava dobrado em dois no fundo do bolso interior do casaco, e acabou por retirá-lo, todo amarrotado, enquanto acelerava o andamento, quase correndo já. Bem, até à vista, disse ele. Está tudo arranjado. Até breve. Apertei-lhe a mão e fiquei a vê-lo precipitar-se para o cais, surpreendido e indeciso. Depois retomei o caminho do olival e sentei-me numa pedra para ler a carta de Nessim. Era breve e continha em pormenor as disposições que tinha tomado para a nossa viagem. Um barco viria buscar-nos à ilha. Fixava-me uma data aproximada e pedia-me para estar preparado. Tudo isso exposto de maneira clara e precisa. Depois Nessim acrescentava em pós-escrito, na sua letra generosa: será agradável tornar a vê-lo sem qualquer espécie de reservas. Creio que Balthazar lhe fez a descrição de todos os nossos infortúnios. Espero que não exigirá um arrependimento excessivo por parte daqueles que só lhe querem bem. Que o passado seja para todos nós como um livro definitivamente fechado. Foi assim que as coisas se decidiram.
Durante os últimos dias a ilha presenteou-nos generosamente com o seu melhor tempo e com essas austeras simplicidades das Cíclades, que nos foram direitas ao coração como abraços calorosos, e eu sabia que ia sentir saudades quando os miasmas do Egipto se tivessem cerrado sobre a minha cabeça. Na noite da partida toda a aldeia saiu para nos oferecer o prometido banquete: cordeiro no espero e esse dourado rezina, um vinho delicioso. As mesas e as cadeiras tinham sido arrumadas em todo o comprimento da rua principal, e cada família trazia a sua própria contribuição para o festim. Até os dois orgulhosos dignitários, o presidente da câmara e o padre, lá estavam, ocupando cada um a sua cabeceira na extensa mesa. Fazia frio, ali sentados ao ar livre como se estivéssemos em pleno Verão; mas a Lua, erguendo-se por sobre o mar, veio dar a sua contribuição para o brilhantismo da festa, realçando a brancura dos guardanapos e polindo os copos de vinho. As faces buriladas dos velhos, aquecidas pelas libações, avermelhavam-se como caldeirões de cobre. sorrisos antigos, saudações arcaicas, gracejos tradicionais, cortesias do mundo antigo que já desaparece e se afasta de nós. Velhos capitães das flotilhas de pesca das esponjas, que despejavam todos os ganhos nas canecas de vinho de esmalte azul..., os seus abraços cordiais cheiravam a batata no forno e as guias dos grandes bigodes amarelados pelo tabaco subiam para as orelhas». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Clea, 1960, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia PdQuixote/JDACT