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«(…) Com Figueiro d’Amaral tive um debate quase furioso no
encontro arturiano de Saint-Malo quando eu defendi a tese de que o ciclo de
Chrétien de Troyes testemunha a crise da cavalaria ou o início da irreversível
crise da cavalaria e que só a chamada literatura cavalheiresca manteve com vida
o mito do cavaleiro medieval até que foi definitivamente substituído pelo
mercenário renascentista e mesmo admitindo que alguma vez houvesse cavaleiros
como aqueles que foram descritos literariamente, estiveram sempre muito
próximos de ser mercenários, como é o caso do Cid, invento que por vezes creio
historificado e outras meramente literaturizado pelo não menos eminente don
Ramon Menéndez Pidal. Que zombasse sobre a existência real ou literária do Cid
indignou o português, que começou a gritar disparates como, por exemplo, que
ele, apesar de ser marxista-leninista, insistiu, marxista-leninista, acreditava
na existência histórica do Cid e na honesta historicidade do Cantar del Mio Cid. Disse-lhe que eu não
era marxista-leninista, mas sim só aproximadamente popperiano e não acreditava
nem deixava de acreditar na existência real biológica ou literária do Cid, antes
pelo contrário. Quando recuperei o meu assento junto de Myrna senti um beliscão
no antebraço e um sussurro junto da minha orelha: desde quando é que tu és
popperiano? Disse-o só para o fo… Quanto ao outro, o extremado Estremoz, repetia
até à exaustão que era meu discípulo, apesar de se ter doutorado pela Universidade
de Salamanca, e tudo isso porque fiz parte do júri do seu doutoramento e também
do que lhe outorgou a cátedra, votando a seu favor porque a tese de
doutoramento não era má e os meus votos para a sua cátedra outorgavam-me os de
outros dois membros do júri quando eu quisesse beneficiar um dos meus
discípulos optantes igualmente à cátedra. Sabia, pois, que mal me visse no cais,
o grande cretino do Estremoz García se baixaria em inclinada reverência e
exclamaria: salve, divino mestre!
E o menéndezpidalianomarxistaleninista
português faria com a mão uma pistola e dava-me dois tiros, enquanto os olhos
de Myrna me diriam: não os pude evitar. Mas alguma coisa transtornou as nossas
vidas porque, à medida que se aproximam, os três olham-me cada vez mais
sorridentes e já desembarcados não há salve nem tiros, nem os olhares cúmplices
de Myrna, como se alguma coisa tivesse mudado em mim, não neles, e a minha nova
natureza os forçasse a alterar a pose em presença de um ilustre professor já
embalsamado e Myrna capta-o melhor que ninguém porque adopta compostura de
récita teatral e exclama: Deus salve Carlos Magno, aquele por quem a alegria e
o prazer regressou à nossa corte! Deus salve o mais bem-aventurado dos criados
por Deus ! Era mais ou menos um fragmento coral do final de Erec e Enide, com o acrescento da
alusão ao Prémio Carlomagno, e agradeço com um sorriso que procuro que seja
simpático. Oferece-me a sua face para que a beije e procuro aproximar o meu
beijo à comissura dos seus lábios, ao mesmo tempo que estendo a mão aos dois
cabrestos arturianos, que ma apertam com vontade de ma amputar. Como é que se
come por aqui? Myrna tinha chegado com uma das suas fomes míticas e era inútil
desviá-la desta obsessão quando o corpo lhe pedia alimento e calorias, pelo que
ilustrei-a sobre o digno jantar que a esperava no hotel, tendo em conta que o
seu funcionamento estava em fase experimental e em certo sentido tinha-se
esforçado para receber a minha homenagem. Ocupa-nos tanto o cérebro o ruído do
rodar das malas sobre o empedrado que não fica espaço mental para urdir uma
conversa e as sombras não ajudam a que os meus olhos ou os de Myrna transmitam
uma mensagem suficiente. Mas o seu meio-sorriso revela-me que está consciente
de que há uma conversa muda entre nós e que se tornaria explícita mal
superássemos os obstáculos da fome, do português e do cretino do meu falso discípulo
falsamente predilecto. Recordei-a nua, acentuando com as suas mãos a tenacidade
dos seus seios, despreocupada da humidade quente do seu sexo loiro e não fui
capaz de juntar a imagem com o seu tempo ou com o seu exacto congresso, ou
talvez fosse o ícone erótico que sugeria a história dos nossos encontros
arturianos acamados». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide,
2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.
Cortesia de Difel/JDACT