quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Corpo Reflectido. Cidália Dinis. «… a poeta dá corpo a sucessivos jogos de espelhos que não visam mais do que reflectir a problemática do eterno feminino e da voz feminina/feminista…»

Cortesia de wikipedia
A Enganosa Respiração da Manhã. Inês Lourenço
Faz-me frio este Outono
«Faz-me frio este Outono,
a boiar sobre o corpo,
a poesia sem ancas,
a música passada
por ovo e pão ralado, faz-me
frio este fender castanho
este horizonte ao espelho,
faz-me frio o esmalte descascado
a tapar o interior
revelho»
Inês Lourenço, in ‘Cicatriz 100%
«Uma das características que melhor define a poesia da década de 80 em Portugal é, sem dúvida, a sutura de tendências das décadas anteriores que, partindo do caule, se vão ramificando em diversas direcções e que vão marcando, no entender de Nuno Júdice, quer um novo realismo ligado à revalorização do quotidiano, quer um acentuar da tradição pela recuperação de linguagens e modelos do passado; quer ainda por uma espécie de novo romantismo característico de alguns poetas que se estrearam na década de 70 (Viagem por um Século de Literatura Portuguesa, 1997), mas que continuam, com o seu cunho pessoal, a definir e a determinar as décadas posteriores, como é o caso de José Agostinho Baptista.  São poetas que evidenciam uma disforia compreensível em relação a quaisquer uniões que pudessem querer estabelecer entre si (Valter Hugo Mãe, Inês Lourenço e José Emílio-Nelson, a poesia de 80 em dois exemplos, Esquina do Mundo, Centro de Estudos Ferreira de Castro, 2003). Esta disforia perante agrupamentos não deve ser entendida como uma quebra de intentos de participação, mas antes como uma operação cirúrgica, visando uma intervenção atenta e cuidada na diferenciação, inovação ou mesmo criação da poesia. Na realidade, uma das características mais interessantes, dos poetas de 80, segundo Valter Hugo Mãe, terá que ver com a convicção de que ainda é possível escrever poesia com novidade e diferença avançando sem receios para espaços poéticos dotados de uma rara criatividade, onde é visível uma participação na abertura de um tempo em que os criadores se dividiram, um a um, por textos e contextos extremamente autónomos: Inês Lourenço, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, José Emílio-Nelson, Adília Lopes, terão pouco que ver uns com os outros, sobretudo quando no universo literário de cada um confluem vivências e situações multifacetadas que marcam um percurso dotado de inspiração e de rara criatividade. É precisamente neste cenário de tendências tão opostas ou mesmo contraditórias que, ainda que votada a uma discrição imerecida, Inês Lourenço surge como poeta representativa dos anos 80. De facto, a sua progressão textual faz-se no sentido de uma mais alta definição da voz poética, passando por experiências de dicção em que se podem distinguir essencialmente três momentos (Daniela Braga (et al.), Inês Lourenço, Um Quarto com Cidades ao Fundo, Apeadeiro, revista de atitudes literárias, 2001) cruciais: uma primeira fase, marcadamente engagée, feminista e contestária, a que correspondem Cicatriz 100% e Retinografias; uma segunda fase, da qual fazem parte Os Solistas, onde assume uma atitude mais distante, descomprometida e mais irónica, sarcástica, em que esboça os vectores axiais da sua poética; e um terceiro momento, que se inicia com Teoria da Imunidade e se estende por Um Quarto com Cidades ao Fundo, no qual Inês Lourenço opta por uma poesia mais próxima da realidade, comprometida com o quotidiano, o minimalismo, sempre com a acidez cortante de uma ironia iconoclasta. É com Cicatriz 100% e com Retinografias que, num primeiro momento, a poeta dá corpo a sucessivos jogos de espelhos que não visam mais do que reflectir a problemática do eterno feminino e da voz feminina/feminista, em torno de uma poesia comprometida, empenhada numa renovação social, espelho de uma época em evidente luta pela emancipação da mulher. A mulher é, pois, o Corpus deste momento poético de Inês Lourenço. Quase sempre anónima ou ocultada, velada pelos morfemas de género que deixam entrever, nitidamente, um eu poético feminino, a mulher reveste-se, assim, ora de mitos bíblicos, ora da antiguidade greco-latina, como forma de desmistificar os estigmas ancestrais que a perseguem. É numa tentativa de regeneração da sua feminilidade resplandecente que Madalena vai sendo pintada com tintas apolíneas:
Madalena
«Tranças de gerânios deslaçados
sopro da flauta de lódão,
benzido sémen nácar
pela tua boca
néctar».
Inconstante é também a relação da autora de Retinografias não só com o amor, mas também com o sexo oposto, oscilando entre a solidão, a saudade do festim ininterrupto dos teus olhos e uma sensualidade e um erotismo sugeridos:
Mural
«A glande macia do pincel molhando o flanco
do doce cimo longe da lonjura,
os olhos e as narinas como asas
do mais belo rosa húmido da vulva,
seios da generalidade
da geometria láctea das fontes
e a chuva escorrendo da boca
com os líquenes da permanência».
In Cidália Dinis, Corpo Reflectido, Trabalho apresentado no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa Contemporânea, do Modernismo ao Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia. 
Cortesia de RFLPorto/JDACT