Cortesia de wikipedia
A Enganosa Respiração da Manhã. Inês Lourenço
Faz-me frio este
Outono
«Faz-me frio este Outono,
a boiar sobre o corpo,
a poesia sem ancas,
a música passada
por ovo e pão ralado, faz-me
frio este fender castanho
este horizonte ao espelho,
faz-me frio o esmalte descascado
a tapar o interior
revelho»
Inês Lourenço, in ‘Cicatriz 100%’
«Uma das características que melhor define
a poesia da década de 80 em Portugal é, sem dúvida, a sutura de tendências das
décadas anteriores que, partindo do caule, se vão ramificando em diversas
direcções e que vão marcando, no entender de Nuno Júdice, quer um novo realismo
ligado à revalorização do quotidiano, quer um acentuar da tradição pela
recuperação de linguagens e modelos do passado; quer ainda por uma espécie de novo
romantismo característico de alguns poetas que se estrearam na década de 70 (Viagem por um Século de Literatura
Portuguesa, 1997), mas que continuam, com o seu cunho pessoal, a definir e
a determinar as décadas posteriores, como é o caso de José Agostinho Baptista. São poetas que evidenciam uma disforia
compreensível em relação a quaisquer uniões que pudessem querer estabelecer entre
si (Valter Hugo Mãe, Inês Lourenço e José Emílio-Nelson, a poesia de 80 em dois
exemplos, Esquina do Mundo, Centro de
Estudos Ferreira de Castro, 2003). Esta disforia perante agrupamentos
não deve ser entendida como uma quebra de intentos de participação, mas antes
como uma operação cirúrgica, visando uma intervenção atenta e cuidada na
diferenciação, inovação ou mesmo criação da poesia. Na realidade, uma das características
mais interessantes, dos poetas de 80, segundo Valter Hugo Mãe, terá que ver
com a convicção de que ainda é possível escrever poesia com novidade e
diferença avançando sem receios para espaços poéticos dotados de uma rara
criatividade, onde é visível uma participação na abertura de um tempo em que os
criadores se dividiram, um a um, por textos e contextos extremamente autónomos:
Inês Lourenço, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, José Emílio-Nelson, Adília Lopes,
terão pouco que ver uns com os outros, sobretudo quando no universo literário
de cada um confluem vivências e situações multifacetadas que marcam um percurso
dotado de inspiração e de rara criatividade. É precisamente neste cenário de tendências
tão opostas ou mesmo contraditórias que, ainda que votada a uma discrição
imerecida, Inês Lourenço surge como poeta representativa dos anos 80. De facto,
a sua progressão textual faz-se no sentido de uma mais alta definição da voz
poética, passando por experiências de dicção em que se podem distinguir
essencialmente três momentos (Daniela Braga (et al.), Inês Lourenço, Um
Quarto com Cidades ao Fundo, Apeadeiro,
revista de atitudes literárias, 2001) cruciais: uma primeira fase,
marcadamente engagée,
feminista e contestária, a que correspondem Cicatriz
100% e Retinografias; uma segunda
fase, da qual fazem parte Os Solistas,
onde assume uma atitude mais distante, descomprometida e mais irónica, sarcástica,
em que esboça os vectores axiais da sua poética; e um terceiro momento, que se
inicia com Teoria da Imunidade e se
estende por Um Quarto com Cidades ao
Fundo, no qual Inês Lourenço opta por uma poesia mais próxima da realidade,
comprometida com o quotidiano, o minimalismo, sempre com a acidez cortante
de uma ironia iconoclasta. É com Cicatriz
100% e com Retinografias que, num
primeiro momento, a poeta dá corpo a sucessivos jogos de espelhos que não visam
mais do que reflectir a problemática do eterno feminino e da voz feminina/feminista,
em torno de uma poesia comprometida, empenhada numa renovação social, espelho
de uma época em evidente luta pela emancipação da mulher. A mulher é, pois, o Corpus deste momento poético de Inês
Lourenço. Quase sempre anónima ou ocultada, velada pelos morfemas de género que
deixam entrever, nitidamente, um eu poético feminino, a mulher reveste-se,
assim, ora de mitos bíblicos, ora da antiguidade greco-latina, como forma de desmistificar
os estigmas ancestrais que a perseguem. É numa tentativa de regeneração da
sua feminilidade resplandecente que Madalena vai sendo pintada com tintas
apolíneas:
Madalena
«Tranças de gerânios deslaçados
sopro da flauta de lódão,
benzido sémen nácar
pela tua boca
néctar».
Inconstante é também a relação da autora
de Retinografias não só com o amor,
mas também com o sexo oposto, oscilando entre a solidão, a saudade do festim
ininterrupto dos teus olhos e uma sensualidade e um erotismo sugeridos:
Mural
«A glande macia do pincel molhando o flanco
do doce cimo longe da lonjura,
os olhos e as narinas como asas
do mais belo rosa húmido da vulva,
seios da generalidade
da geometria láctea das fontes
e a chuva escorrendo da boca
com os líquenes da permanência».
«A glande macia do pincel molhando o flanco
do doce cimo longe da lonjura,
os olhos e as narinas como asas
do mais belo rosa húmido da vulva,
seios da generalidade
da geometria láctea das fontes
e a chuva escorrendo da boca
com os líquenes da permanência».
In Cidália Dinis, Corpo Reflectido, Trabalho apresentado
no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa Contemporânea, do Modernismo ao
Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II
Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia.
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