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«(…) Não se entregavam mais. E a
dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a
morte dentro de si. O ódio. O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu
peito, tentacular, repetitivo e por isso mesmo com uma incidência única em
todos os momentos da vida a partir desse momento: quando Henrique falou. Quando
Henrique falou da sua traição. É o amor que me perde, pensa Constança. O ódio,
pelo contrário, alimenta-a. O amor queima-a, desguarnece-a. O amor reduz a
cinzas, é a porta do caos e do desassossego. Quebra-a. Quebra-a.
O ódio, pelo contrário,
fortalece-a. Pertinaz, forra-lhe as emoções, nunca a entrega. E a odiar, as
mulheres são melhores que os homens. Como diz Françoise Giroud, elas podem ser
duras e frias como pedras, com arame farpado no coração. Constança sabe,
sente-o crescer no seu peito, como se fosse uma planta, tomando conta de todo o
seu imaginário, de todos os seus sentimentos, de todos os seus pensamentos: o
arame farpado. No seu coração palpitante e incandescente.
Conturbado,
turvo. O ódio centrado. Quase visto, quase tocado. Tocado. Henrique H. matou-se
um ano depois da prisão de Constança. Cortou os pulsos dentro do banho. Foram
os filhos, quando chegaram do colégio, que deram com ele na banheira, a cabeça
inclinada, encostada a nuca no rebordo de mármore cor-de-rosa pálido. Parecia dormir.
As pestanas pretas e grandes sombreando os olhos verde-musgo, apenas entreabertos.
A boca fechada num ricto duro. E toda aquela água de um vermelho diluído â
escorrer para o chão de azulejos pretos até à alcatifa do corredor, que
começava a ficar empapada ao pé da porta onde eles permaneciam muito quietos e
mudos a olharem o pai morto na banheira, um dos pulsos aberto pendente sobre o
lençol turco caído no chão e o outro pulso debaixo de água, como que a
descansar em cima do peito. A ferida do pulso que caía para fora da banheira
fez-lhes lembrar a do pescoço de Adele, os bordos abertos um pouco afastados, o
sangue a coagular já, num simulacro grosseiro de uma cicatriz. O ruído da água
que continuava a correr, fumegante, submergindo quase o corpo imóvel do pai, recordou-lhes
igualmente o barulho molhado das ondas, quando eles começaram a correr para
casa depois de o imenso grito ter varado as areias geladas da manhã para ir
perder-se, estrangulado, de súbito, numa espécie de soluço, num gorgolhar
rasgado. Só que desta vez nenhum deles se atrevia a fazer o primeiro gesto de
fuga. A pele de Henrique H., mantinha um tom vivo, róseo, devido à temperatura
da água que o cobria.
O
mar. Sempre ao fundo da paisagem. A marcar o horizonte. Sonhava que corria
sozinha na praia de areia molhada. Nunca sonhava com os filhos. Ela não sabia
que tinha filhos. Não se lembrava? O teu corpo, a febre acesa da tua língua, meu
amor! ... a partir do clítoris De bruços De borco... o teu pénis As mãos
subindo, trepando pelo avesso do corpo Constança H. Como se tacteasse na
escuridão de uma gruta húmida; na penumbra encoberta de um confessionário; na
cela nua de uma prisão de mulheres; na enfermaria de um hospital psiquiátrico».
In
Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora,
Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.
Cortesia
de BertrandE/JDACT