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«(…)
Quer que a açoite, dom José?, perguntou o capataz enquanto voltava a agarrar Caridad
por um braço. Não, decidiu depois de pensar. Não a quero levar molestada para
Espanha. E aquele negro enorme, chamado Cecilio, soltou-a e arrastou a criança para
a cabana após um gesto severo do capataz. Caridad caiu de joelhos e o seu
pranto misturou-se com o da criança. Foi a última vez que viu o filho. Não a deixaram
despedir-se dele, não lhe permitiram... Caridad! O que estás a fazer aí parada,
mulher? Ao ouvir o seu nome voltou à realidade e entre o bulício reconheceu a voz
do padre Damián, o velho capelão do La Reina, que também desembarcara.
Deixou cair de imediato a sua trouxa, tirou o chapéu, baixou o olhar e fixou-o
na puída peça de palha que começou a apertar entre as mãos. Não podes ficar no
cais, continuou o sacerdote, que se aproximou dela e lhe pegou no braço. O
contacto durou um instante; o religioso quebrou-o enverÍgonhado. Vamos,
acompanha-me, instou lhe com certo nervosismo. Percorreram a distância que os
separava da Porta do Mar: o padre Damián carregado com um pequeno baú, Caridad
com a sua trouxa e o chapéu nas mãos e sem tirar os olhos das sandálias do
capelão. Deixem passar um homem de Deus, pediu o sacerdote aos marinheiros que
se aglomeravam em frente da porta. Pouco a pouco, a multidão foi-se afastando
para lhe dar passagem. Caridad seguia-o, arrastando os pés descalços, negra
como o ébano, cabisbaixa. A simples camisa comprida e acinzentada que lhe servia
de vestido, de pano grosseiro e áspero, não conseguia esconder uma mulher forte
e bem constituída, tão alta como alguns dos marinheiros que levantaram o olhar
para se fixar no seu espesso cabelo preto encrespado, enquanto outros o perdiam
nos seus seios, grandes e firmes, ou nas suas voluptuosas ancas. O capelão,
sempre a andar, limitou-se a levantar uma mão quando ouviu assobios, comentários
desavergonhados e um ou outro convite atrevido.
Sou
o padre Damián García, capelão do navio de guerra La Reina, da armada de
Sua Majestade, apresentou-se o sacerdote estendendo os seus papéis a um dos
alcaides depois de ter ultrapassado a marinhagem. O alcaide passou os olhos
pelos documentos. Vossa Paternidade permite-me que inspeccione o baú? Bens
pessoais..., respondeu o sacerdote enquanto o abria. As mercadorias
encontram-se devidamente registadas nos documentos. O alcaide assentiu enquanto
remexia no interior do baú. Algum contratempo na viagem?. perguntou o oficial
sem olhar para ele, sopesando uma pequena barra de tabaco. Algum encontro com naus
inimigas ou alheias à frota? Nenhum. Tudo como estava previsto. O alcaide assentiu.
A sua escrava?, inquiriu apontando para Caridad depois de dar por concluída a
inspecção. Não consta dos papéis. Ela? Não. É uma mulher livre. Não parece,
afirmou o alcaide colocando-se à frente de Caridad, que se agarrou ainda mais à
sua trouxa e ao seu chapéu de palha.
Olha
para mim, negra!, resmungou o oficial. O que escondes? Alguns dos oficiais que
inspecionavam a marinhagem interromperam o trabalho e viraram-se para o alcaide
e para a mulher que permanecia cabisbaixa à frente dele. Os marinheiros que lhes
tinham dado passagem aproximaram-se. Nada. Não esconde nada, replicou o padre
Damián. Cale-se, padre. Todos os que não se atrevam a olhar para um alcaide nos
olhos escondem algo.O que esta desgraçada há de ocultar?, insistiu o sacerdote.
Caridad, dá-lhe os teus papéis. A mulher revolveu a trouxa em busca dos
documentos que o escrivão do barco lhe entregara enquanto o padre Damián
continuava a falar. Embarcou em Havana com o seu amo, dom José Hidalgo, que
pretendia regressar à sua terra antes de morrer e que faleceu durante a
travessia, que Deus o tenha na sua glória. Caridad entregou ao alcaide os seus
documentos amachucados». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça,
2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa,
2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia
Bertrand/JDACT