sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «Ignora o passado, mesmo sabendo que o fazendo estará sempre condenado a repeti-lo. Não existe Amor (ou antes, Caridade) apenas uma instituição com esse nome, a qual usam para angariar fundos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Um jornalista levado dos diabos
Prefácio
«Encontrei o Palavras Cínicas num sebo de Bragança Paulista, ao preço irrisório de 50 centavos. Engracei-me com o título, mas jamais poderia esperar o que encontrei ao folhear aquele libreto de 96 páginas, já bastante esgarçado pelos anos: uma alma inteiramente compatível com a minha, totalmente frustrada com a Humanidade. Eu já havia lido alguns livros mórbidos, como As Flores do Mal, de Baudelaire, Crime e Castigo, de Dostoiewsky, Uma Estadia no Inferno, de Rimbaud, e ainda inúmeros contos de Poe, Óscar Wilde, Maupassant, Apollinaire e outros tantos, porém nada que chegasse àquele nível de crónico desencanto, àquele desespero existencial, àquela amargura em estar vivo. Pesquisando na Internet, posteriormente descobri que o autor o escrevera aos vinte anos! Como pôde chegar a semelhantes definições tão cedo? Sim, havia lido bastante, e nos livros que lera percebera reflexos de sua própria consciência já prematuramente destroçada. E de que outra forma compreendemos nós as desilusões que nos acometem? Se não tivermos parâmetros externos, acabaremos achando que desgraças são eventos maravilhosos como querem que pensemos os interessados em nos desgraçar. Forjaz de Sampaio não é elegante com as palavras, apesar da sua evidente cultura. Chega a ser enfadonho com suas repetições. Mas não se pode negar a evidência das suas conclusões. A vida, apesar de todas as melhorias que sofreu nos últimos cem anos, não deixou de ser trabalhosa, negativa e cruelmente tediosa. Nervos á flor da pele, atentados, rebeliões, moléstias, penúria, calamidades, injustiças sociais e outras tantas misérias ainda dão o ar da graça, mesmo no início deste nosso terceiro milénio. Quando deixaremos de nos matar em nome da ganância? Quando reconheceremos a nossa igualdade, a nossa ínfima condição perante nós mesmos? O homem não aprende com os seus erros. Ignora o passado, mesmo sabendo que o fazendo estará sempre condenado a repeti-lo. Não existe Amor (ou antes, Caridade) apenas uma instituição com esse nome, a qual usam para angariar fundos cujo real fim é sempre um mistério. A Paz é algo negociado como carne, e carne é a moeda que usam para negociá-la. Os pobres são um incómodo que costumam varrer para debaixo do tapete às vezes literalmente. Todos estão interessados no seu próximo, mas em como ele poderá tornar-se lucrativo, quando não um mero estorvo. A ignorância é cultivada como um estado interessante para as massas afinal, um povo idiota é facilmente manipulado. Políticos corruptos garantem a solução dos problemas sociais durante o período eleitoral sumindo logo depois. Quando reaparecem, é porque estão envolvidos em desvios de verba, super-facturamentos, maracutaias e coisas do tipo. As igrejas hoje às centenas de milhares continuam prometendo o céu sem demonstrar como seria possível que um tal playground post mortem realmente possa existir. Não seria justo que criassem uma filial aqui na Terra, para que os fiéis fossem já se acostumando com o paraíso? Mas nada disso é feito. Talentos são ignorados o talento era apenas uma moeda de prata no tempo da dominação romana, não é mesmo? Nada de granjear subjectividades, tem algum dinheiro com você? Só o dinheiro é adorável por aqui! E assim todo o potencial de uma pessoa é reduzido ao que ela pode obter comprando. Tenho uma indagação que define muito bem esse estado de coisas: Se não posso viver como quero, como posso querer viver? Bem, é necessário que eu diga que não pretendo ser podre de rico, não tenho ambições mirabolantes. Refiro-me a um estilo de vida tranquilo, de acordo com uma relativa sobriedade é claro que ambiciono algum luxo, o mínimo dentro de minhas parcas pretensões mas, enfim, uma existência sem notícias desastrosas que não me digam respeito como o impacto da alta do petróleo no preço do pão, ou a crise do dólar e a sua nefasta influência na economia do país que infelizmente habito. Será que tudo é motivo para arrancarem o nosso couro? Será que algum dia o povo aprenderá a dizer CHEGA? Espero que ainda nessa minha encarnação. Mas voltando ao Forjaz Sampaio, pode-se dizer que ele nasceu à frente do seu tempo. Mas seria uma palhaçada, pois ninguém é capaz disso. Ele apenas não foi hipócrita, viveu o submundo lisboeta de uma forma intensa e não poupou a sociedade do seu tempo de sua crítica furiosa. É claro, li apenas o Palavras Cínicas, não tive em mãos nenhum outro material seu [eu tenho] ou a seu respeito (o que, com excepção de alguns textos biográficos pouco explanatórios em determinados sítios) mas, partindo dele, posso bem imaginar o resto. O seu estilo, aos vinte anos, lembra o de um poeta nosso, Álvares Azevedo, o malfadado garoto prodígio da Lira dos Vinte Anos. O seu spleen é superior ao de Baudelaire, o seu amargor ainda maior que o de Augusto Anjos. A sua prosa é tão corrosiva quanto a de Lautréamont. Um sujeito que, aos vinte anos de idade, diz: ser morto! Ser morto! e arremata: ventura estranha. deve estar no mínimo certo de seus sentimentos. Eis, portanto, o escritor-jornalista maldito, livre de belas roupagens, inteiramente nu, como apreciaria William Burroughs. Sem meias palavras. Sem meias verdades. Cínico, de um cinismo mais do que sincero um cinismo originalíssimo, um cinismo inquestionável. Como digerir este simples parágrafo? O que és tu? Um egoísta. Egoísta nos sentimentos e na torpeza, na fuga e na vaidade. Tudo tu fazes por egoísmo. Se tu tivesses tanta fome como tua mãe e só tivesse uma côdea a disputar, tu espancarias a pobre velha para lha roubares. Vamos ao caso que lha davas? Que preferias morrer de fome? Se o tinhas feito é porque isso te satisfazia, te enchia a vaidade de morreres por alguém tu que és o maior egoísta que o sol cobre. Como escapar a tal lógica? Senhoras e senhores, arregacem as mangas para não sujá-las». In Fred Teixeira, Extrema, 26 de Outubro de 2006.
In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT