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de wikipedia
«Judas
Fawley, típico herói do romance moderno, tropeça em pedra atrás de pedra no seu
caminho trágico. Não é um caminho que esquadrinhe o centro do mundo, nem mesmo
que esbarre em cenas grandiosas da história. Mais modesto do que o Frédéric
Moreau de Flaubert, assumidamente periférico, o personagem de Hardy também
experimenta uma educação sentimental marcada pela desilusão, uma sucessão de
sonhos esvaziados pela dureza da realidade, nos campos ingleses de Wessex. As
aldeias de Dorset, região do interior da Inglaterra que preferia chamar pelo
nome medieval, Wessex, não tinham para ele o apelo do exótico, do bucolismo e
da tranquilidade. Através do mito da simpática vida comunitária, simples e
auto-suficiente, enxergava o meio à paisagem, que soube descrever com minúncia
de connaisseur, um campo cada vez mais vazio de camponeses. O apito do
trem testemunhava um novo tempo, em que passou a ser impossível mover uma palha
sem ouvir a cidade, como anotou o crítico Raymond Williams. Aldeias, povoadas
de pequenos artesãos e comerciantes que viviam em função de Londres mostravam
uma nova face do interior. Para o pequeno Thomas Hardy, tão bonzinho, na
descrição condescendente e equivocada do arguto, mas antípoda, Henry James, o
idílio campestre era tudo menos a simplicidade sublime transfigurada aos olhos
dos homens urbanos por poetas como Wordsworth. Hardy registou o vazio deixado pelo
colapso da explicação cristã do mundo; leitor de Darwin, deixou-se impressionar
pela descrição das forças mecânicas e impessoais indiferentes ao homem que
tomavam conta da natureza. Some-se a isso uma percepção pessoal da crueldade
social escondida na Inglaterra rural vitoriana (também ele teve origem humilde,
em família tradicional decadente; seu pai, um pequeno empreiteiro, tinha um status
em pouco superior ao de um trabalhador braçal), um aprendizado prático do
mundo desencantado do fim de século, e estão dadas as balizas do fatalismo
pessimista que movimenta as suas principais histórias. Por isso, mesmo quando
mais se aproxima da ficção realista típica do Dezanove, como em Judas, o
Obscuro, a moldura trágica sempre prevalece em Hardy. Um dos poucos
volumes concebidos longe da pressão do gosto do público dos folhetins, Judas
regista o lado cinzento de um drama experimentado pelo autor em versão
feliz: a ascensão pela instrução. Ao mesmo tempo, estamos diante de uma
história de amor, como quase todos os seus livros, em que, à maneira de Ibsen,
Hardy discute os limites de uma instituição fundamental à ordem burguesa: o
casamento indissolúvel. A consciência de uma ordem diversa, em que o trabalho
não se esgota no cumprimento de tarefas e tem uma qualidade emancipadora, faz
com que o protagonista aspire a um mundo espiritualizado que teima em lhe
escapar por entre os dedos. Miséria, amor, acaso são forças caprichosas,
insondáveis à compreensão humana, que em aparente ajuste frustram seguidos
projectos de fuga, demonstrando a Judas o que Hardy parece nos antecipar desde
o princípio: uma conspiração do destino, que inclui ter nascido no lugar e
momento errados. A cena de abertura simboliza, na partida do professor, as
adversidades que Judas enfrentará. Pobre e órfão, o menino que se decepciona
com a separação, alimenta uma ambição intelectual em tudo contrariada pelas
circunstâncias. O monte da sua vida será uma contínua renúncia e acomodação na mediocridade.
A redenção, que poderia vir na experiência amorosa, complica-se na divisão
entre duas mulheres, Arabella, instintiva e astuciosa, e Sue, parente distante
e alma gémea, pouco convencional, e na incompatibilidade entre as ideias
avançadas para a época e a pressão das instituições. A recusa do ritual do
casamento não passa sem punições. Os bosques pelos quais, adolescente, Fawley
vaga entregando os pães que a tia-avó fabrica, deixando os cavalos à deriva
enquanto se distrai tentando decifrar os clássicos com ajuda solitária de uma
gramática; o vislumbramento nocturno do alto de um celeiro da vizinha
Christminster (na verdade, Oxford), encarnação do refinamento e da
espiritualização que Judas quer alcançar, são bons exemplos da imaginação
poética, predominantemente visual, que particulariza o ficcionista. Os símiles
inesperados associam-se à descrição atenta a detalhes, dão alma ao que seria
mero registo acurado; o estilo traz as marcas do respeito quase místico que o interior
ainda guarda pelas coisas da cultura letrada e citadina. O seu inglês sisudo e
meio canhestro, caracterizado por uma sintaxe retorcida e vocabulário rebuscado,
destes que completam sem titubeio as palavras cruzadas. O que poderia ser defeito,
é resgatado pelo efeito final, personalíssimo e impressionante, sério sim, mas
poético (Hardy, além de romancista, produziu lírica de qualidade), que ganha um
colorido especial nas cenas em que reproduz o dialecto dos tipos populares e o
burburinho das festas do interior. Em Judas, o Obscuro, ainda que menos
frequente, a alegria ruidosa e a sabedoria tradicional na boca da gente simples
aparecem representadas em passagens breves, distribuídas aqui e ali. Estão nos
conselhos da sra. Edlin, que antevê as consequências funestas do repúdio da
velha ordem e lamenta o seu fim, nas conversas de comadres, na multidão que
acompanha os festejos em Christminster, nas tabernas em que Arabela trabalha e,
no momento de crise, Judas tenta afogar as mágoas. Fazem um contraponto menos melancólico,
de luminosidade efémera, ao triste papel que cabe aos homens num mundo sem
ordem, sem deuses, sem explicações. Aos olhos de Hardy, são estes momentos de
felicidade, mínimos, roubados à vigilância impiedosa da máquina do mundo, que
impedem o sem-sentido total da existência humana. Recompensa possível, conferem
identidade aos milhões de obscuros de Sísifo que, como Judas, representante alegórico
da humanidade, tentam assenhorear-se da sua vida, contra uma natureza hostil,
porque aleatória e indiferente». In Thomas Hardy, Jude, The Obscure, Judas, o
Obscuro, 1895, tradução de Octávio Faria, Geração Editorial, Colecção
Redescoberta, ePub, 1994/1995, CDD 823.
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