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de wikipedia
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Um romance assim, como e porque não teria sido traduzido em português até hoje?
A censura e a estranheza, imediatas, exigem reflexão mais apurada. Não há
dúvida que é estranho e de certo modo mesmo imperdoável que não se tenha
cuidado disso quando temos visto, traduzidos da mesma língua (senão do mesmo
país de origem) um sem-número de romances cujo valor literário é, no mais das
vezes, perfeitamente nulo. No entanto, já não estranharemos tanto a omissão, se
atentarmos nas dificuldades da tarefa. Jude the Obscure é justamente
considerado uma das barreiras da língua inglesa. A riqueza do
vocabulário, certas expressões locais, o aprofundado e, muitas vezes mesmo, o
rendilhado das comparações, a vivacidade do diálogo, fazem com que de boa
vontade se recue ante a temeridade da aventura. Não espanta, pois, que os
tradutores tenham fugido tanto ao texto do romance. Embora aqui e ali nos
apoiando na versão de Laparra, (agradável e fluente, porém tantas vezes
inexata) preferimos guardar menos distância do texto inglês, na medida do
possível, talvez um pouco em detrimento dos encantos da forma literária.
Pareceu-nos que um estilo tão pessoal, aliado a um pensamento tão cioso de
pequenos detalhes, merecia de nossa parte um maior espírito de fidelidade, a
humanidade nos parecendo dever ser, nesses casos, a qualidade fundamental do
tradutor. Sim, são numerosos os que perderam o espírito por causa de mulheres e
que, por elas, se tornaram escravos. Numerosos também os que, por causa delas,
pereceram, erraram ou pecaram… Homens, como quereis que as mulheres não sejam
fortes, vos vendo agir assim? (Esdras)
O professor
deixava a aldeia e todos pareciam sentir aquela partida. O marceneiro de
Crescombe emprestou-lhe um cavalo e um pequeno carrinho de capota branca para
que levasse a bagagem até a cidade para onde ia. Este veículo dava
perfeitamente para as coisas do viajante, pois a escola havia sido mobiliada,
em parte, pelos administradores. O único objecto atravancador que o professor
possuía, fora os seus caixotes de livros, era um piano rústico, comprado num
leilão, anos antes, quando lhe acometera a ideia de aprender música
instrumental. Mas, o seu entusiasmo tendo diminuído, jamais adquirira a menor
eficiência e, desde então, sempre que tivera de se mudar, a sua compra só lhe
ocasionara aborrecimentos. O pastor tinha-se ausentado todo o dia. Não gostava
de presenciar mudanças e só pretendia voltar à noite, quando, o novo professor
já se tendo instalado, tudo estivesse de novo em ordem. O intendente, o
ferreiro e o próprio professor estavam na sala, diante do piano, com ar
profundamente perplexo. O professor lembrara que, mesmo que conseguisse fazer o
instrumento entrar no carrinho, não teria uso para ele na cidade para onde ia,
Christminster, pois, de início, só poderia reflectir de um alojamento
provisório. Um rapaz de uns doze anos, que tinha ajudado nas arrumações, abordou
o grupo de homens e, enquanto estes quebravam a cabeça para resolver a
situação, arriscou, enrubescendo ao som da própria voz: minha tia tem um
alpendre de guardar lenha no qual talvez possa ficar o piano até que o senhor
encontre um alojamento para ele. Muito boa ideia!, disse o ferreiro. Decidiu-se
então que uma comissão fosse enviada à tia do menino, uma velha da aldeia, para
lhe pedir que albergasse o piano até que Phillotson o mandasse buscar. O
ferreiro e o intendente partiram para verificar se o abrigo proposto era
adequado. O rapaz e o professor ficaram sós. Judas, estás triste por me ir embora?,
perguntou bondosamente o professor. Lágrimas subiram aos olhos do rapaz. Não
tendo seguido senão as aulas da noite desde a chegada do professor, pouco
ligado à sua vida, não fazia como o comum dos alunos que o olhavam sem o menor
romantismo. Estes, para dizer a verdade, estavam bem longe disso, tal como
certos discípulos de história, sempre pouco dispostos a prestar, a não importa
que causa, a colaboração de seus entusiasmos. Desajeitadamente, o rapaz abriu o
livro que tinha na mão, presente de despedida do professor, e concordou que
estava triste. Também eu, disse Phillotson. Porque vai embora?, indagou o rapaz.
Ah, isso é difícil de explicar. Não compreenderias as minhas razões, Judas. Ainda
és muito pequeno. Eu acho que compreenderia, sim senhor. Pois bem…, mas, não vás
falar nisso em parte alguma. Sabes o que é uma universidade, um diploma
universitário? É a indispensável pedra de toque para todo o homem que quer ser
bem-sucedido no ensino. Meu projecto, ou o meu sonho, é obter um grau numa
universidade e, depois, tomar ordens. Indo viver em Christminster, ou perto de
lá, estarei de certo modo em pleno quartel-general da ciência. E, se o meu
projecto for realmente realizável, creio que terei mais probabilidades de vencer
estando lá do que estando em qualquer outra parte. O ferreiro e o seu
companheiro reapareceram. O alpendre da velha Fawley era bem seco, exactamente
o que convinha, e ela parecia disposta a albergar o piano. Deixaram-no em
consequência na escola até de noite, esperando encontrar, então, mais braços
disponíveis para transportá-lo. E o professor lançou sobre ele um olhar de
despedida.
Judas
o ajudou a pôr no carrinho alguns pequenos objectos e, lá pelas nove horas, o
professor, içando-se junto aos caixotes de livros e a outros impedimentos,
despediu-se dos amigos. Judas, não te esquecerei, disse sorrindo, enquanto o
carrinho se afastava. Sejas um bom rapaz, bom para os animais e para os
pássaros, e lê tudo quanto possas. Se algum dia fores a Christminster, não
deixes de me procurar. O carro partiu chiando e desapareceu pelo ângulo do
presbitério». In Thomas Hardy, Jude, The Obscure, Judas, o Obscuro, 1895, tradução de
Octávio Faria, Geração Editorial, Colecção Redescoberta, ePub, 1994/1995, CDD
823.
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