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de wikipedia e jdact
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Essa função era uma esponja que havia absorvido os nossos recursos e estava conduzindo-nos
lenta e inexoravelmente à falência. Ser soldado de Deus era uma despesa da qual
eu poderia ter-me isentado. Soldado. Deus deve estar rindo por ter-me dado essa
bandeira para carregar, pois todo o mundo sabia, ou achava que sabia, que uma
mulher jamais poderia liderar tropas numa batalha. Mendoza... Aquele rosto
ainda me perseguia, como se o sonho ainda estivesse preso dentro da minha
cabeça. Os olhos negros e ligeiros, o rosto fino e a pele branca, e as entradas
salientes, se não era um vilão, parecia-se com um. Ele havia conspirado e
espionado aqui na Inglaterra, até que foi descoberto e expulso. A suas últimas
palavras antes de embarcar foram: diga à sua soberana que Bernardino Mendoza
nasceu não para desordenar reinos, mas sim para conquistá-los. Desde então, ele
estabeleceu-se em Paris como embaixador do rei Filipe, criando uma rede de
espionagem e intriga que se espalhou por toda a Europa. Entretanto, ele não era
páreo para o nosso espião, Francis Walsingham. Se Mendoza tinha uma centena de
informantes, Walsingham tinha pelo menos 500, mesmo na distante Constantinopla.
Se ele era um católico devotado e até mesmo fanático, Walsingham era tão ou até
mais apaixonado pelo protestantismo. Se ele não tinha escrúpulos, o lema de
Walsingham era a informação nunca é cara demais, e pagaria qualquer coisa para
obtê-la. Ambos sentiam que estavam travando uma batalha espiritual e não
somente uma guerra política. E o grande embate, o Armagedom entre Inglaterra e
Espanha há muito adiado, era iminente. Fiz tudo ao meu alcance para tentar
desviá-lo. Nada fora suficiente: negociações de casamento, subterfúgios,
humilhação, mentiras descaradas, como quando garanti a Filipe que eu era
protestante apenas por necessidade política, mas não por convicção. Qualquer
coisa para ganhar tempo, para nos fortalecermos o bastante para encarar a
batalha quando finalmente estourasse. Porém, agora estava sem artifícios e
Filipe estava sem paciência. Sim, até ele, o homem que disse: se a morte veio
da Espanha, viveremos ainda muito tempo. Finalmente amanhecia, podia então
levantar-me. O meu astrólogo John Dee acredita muito em sonhos e presságios.
Neste caso, ele estava certo. Tinha acabado de me vestir quando fui informada
de que William Cecil, lorde Burghley, meu primeiro-ministro, tinha assuntos de
extrema importância para tratar comigo. Deve ser urgente. Ele sabia que eu não
resolvia nada antes do meio-dia. Cumprimentei-o mesmo temendo as notícias. Ele
era de minha confiança; se alguém tinha que me trazer más notícias, melhor que
fosse Burghley. Perdoe-me, Majestade, ele disse, curvando-se em reverência até
onde a espinha reumática permitia. Mas é muito importante que veja isto e
entregou-me uma mensagem em papel enrolado. É de Filipe. Endereçada a mim?
Quanta gentileza! Apertei o pergaminho em minha mão, sentindo a importância
pelo peso. Provavelmente não, Majestade. Ele usou o melhor papel, comentei sarcasticamente.
Burghley não sorriu. Tentei ser irónica, disse. Perdi o tom? Ele travou os
lábios e disse: não, Majestade, fico impressionado que consiga encontrar um
traço de humor até mesmo numa situação como essa, pegou o pergaminho das minhas
mãos e continuou falando. Há centenas deles, estão todos em posse da Armada.
Como sementes do diabo, devem ser distribuídos aqui na Inglaterra. Ao contrário
do dente-de-leão, que flutua por si só no vento, esses pergaminhos não podem
ser plantados, a menos que os espanhóis pisem nesta terra. E eles não pisarão. Os
agentes do secretário Walsingham conseguiram roubar este pergaminho e também
uma cópia da carta enviada por um dos conselheiros do rei Filipe. Parece que
não há quase nada que ele não consiga procurar ou descobrir. Peguei a
carta. Estava em espanhol, é claro, mas isso não era um problema para mim.
Conforme lia, entretanto, quase desejava não conseguir entender. Era um
memorando cuidadosamente pensado e uma recomendação dirigida ao rei espanhol
sobre o que deveria ser feito assim que tivessem conquistado a Inglaterra. Eu
deveria ser capturada viva e levada ao papa». In Margaret George, Isabel I, O
Anoitecer de um Reinado, tradução de Lara Freitas, Geração Editorial, 2012,
ISBN 978-858-130-076-4.
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