Cortesia
de wikipedia
Primeiro
e segundo testamentos do rei Afonso Henriques
«Ângela
Beirante coloca o aparecimento do Testamento em Portugal, ou, simplesmente, a
acção de testar, nos finais do século XII. Não nos pertence questionar esta
afirmação. O que podemos dizer, segundo informações colhidas em várias
leituras, é que o seu aparecimento no nosso país não chega exclusivamente só
por efeito da sua propagação através do Direito Civil Romano. O Direito
Canónico, e, concomitantemente, a Igreja Católica, por ele regida, foram talvez
os maiores responsáveis pela sua difusão, aconselhando e impondo até, a que os
seus fiéis fizessem atempadamente o seu Testamento, não esperando pelos últimos
momentos da sua vida para ditar as derradeiras vontades. Para a Igreja, era a
melhor forma de garantir um bom lugar no Além e de ter uma Boa Morte.
Para pressionar os cristãos, a Igreja chegou mesmo a negar sepultura
eclesiástica àquele que morresse ab intestato, ou que fizesse
testamento sem a presença de um pároco junto de si. A não observação desta
particularidade determinava a que a própria Igreja se apresentasse com direito
à terça ou à quarta parte dos bens do testador, exigindo a nulidade do seu
testamento. Não estranha, por isso, que a elaboração dos testamentos e o seu
cumprimento estivessem por muitos anos remetidos às autoridades religiosas,
alegando dúvidas quanto à eficácia da sua resolução por parte das autoridades
civis. Com o monarca Afonso III surgiram alguns sinais de mudança quanto à
autoridade da Igreja nesta matéria, atribuindo-se aos tribunais públicos o
papel anteriormente desempenhado por ela em tal assunto, com o argumento da
prática de abusos por parte de algum clero. Mesmo assim, este monarca ainda
evoca, no seu testamento, a autoridade do papa Honório III ou a daquele que
viver na hora da sua morte, para que as suas vontades se cumprissem
rigorosamente. […] Et supplico Sanctitatem ejus, quod si aliquis, vel aliqui
voluerit, vel voluerint impedire istud meum testamentum quod non compleatur,
& singula supradicta non sustinet, sed faciat sicut pro justitia debet
facere pro salute animarum.
Torna-se
claro que, a par desta autoridade invocada pela Igreja, não estaria só o desejo
de proteger o testador da ineficácia das leis civis, invocada a seu favor.
Também a obtenção de parte dos bens materiais, para além dos benefícios de
cláusulas pias, como dinheiro para missas diárias, aniversários por morte e a
realização de outros actos religiosos, estavam presentes no espírito dos
eclesiásticos, sendo certo que, quer num caso, quer noutro, as leis canónicas
estavam inteiramente do seu lado. Por causa destes interesses, João Martins,
bispo de Lisboa, mereceu do papa o epíteto de cobiçoso e usurpador do poder
real. Na sequência de queixa que lhe foi apresentada por Dinis I, aquele
dignitário foi então obrigado a retroceder nas suas orientações que a tal
respeito difundia pelos párocos de Lisboa. Verifica-se assim que o Testamento,
enquanto instituição jurídica que nos chega legada pelos Romanos, é depois
muito aproveitada e fortemente divulgada pela Igreja junto dos seus crentes,
tendo, teoricamente, como primeiro objectivo, a garantia de uma Boa Morte
e a probabilidade de obter um bom lugar no Além. Mas se para uns, este
documento tinha como única finalidade a salvação da própria alma, para outros,
era um meio de manifestar as últimas vontades, transmitir ou extinguir
direitos, dispor, no todo ou em parte, do seu património para depois da morte,
reconhecer, ou não, filhos extraconjugais, nomear os seus tutores em caso de
menoridade, impor a incomunicabilidade dos bens, temporária ou vitalícia,
indicar o lugar para a sua sepultura e exigir determinadas manifestações
religiosas, quotidianas, mensais e anuais, e ainda o perdão de qualquer acto
indigno, bem como o de dívidas alheias ou o pagamento das próprias. São estas
as disposições gerais dos Testamentos.
No
caso dos Reis ou da grande nobreza, o Testamento tinha uma finalidade acrescida:
nomear o sucessor à respectiva coroa ou Casa e entregar-lhe o poder e a
governação. No caso dos reis importava especificamente garantir a continuidade
da dinastia; no caso dos nobres objectivava-se manter casa e títulos,
normalmente atribuídos ao primogénito varão, de forma a que por ele se
prolongasse o nome da família. Mas se, no início do século XII, data a partir
da qual se generalizou o acto de testar, as escrituras tinham como primeiro
objectivo a salvação da alma, o que se manteve até bem perto do século XIX, a
partir desta época elas foram perdendo a sua finalidade espiritual, até se
diluírem no tempo, ficando apenas, como motivo principal, o abordar da questão
dos bens materiais. O modelo dos Testamentos Régios da Primeira Dinastia
Portuguesa é, podemos dizê-lo, quase sempre o mesmo. Os monarcas manifestam,
como primeira preocupação, o desejo de acudir à salvação da sua alma, ao que se
segue a nomeação do legítimo herdeiro da coroa. Depois vem a indicação do local
onde pretendem ser sepultados e a explanação das últimas vontades. Portanto, as
fórmulas de testar não sofrem grandes alterações e, quando existem, devem-se
mais ao estilo do chanceler que executa o documento do que a mudanças
conceptuais produzidas pelo evoluir do Direito Civil Romano ou do Direito
Canónico. O rei Afonso Henriques, nos seus dois Testamentos, não se desvia
destas linhas de orientação: invoca, primeiro que tudo, a Santíssima Trindade,
e só depois se identifica como rei de Portugal por vontade de Deus, fazendo de
seguida uma estrita referência à sua ascendência, a começar pelo seu avô, o
magno imperador Afonso, a que se seguem os nomes do pai, o conde Henrique e da
mãe, a Rainha dona Teresa.
Agradece ao Criador os benefícios que Dele recebeu, concedendo-lhe o alargamento
do seu Reino e saúde para o conseguir. Faz algumas alusões ao dia da sua morte
e ao dever de se preparar para ela, intercalando com algumas citações dos
Evangelhos alusivas ao momento final da vida, e só depois começa a dispor, com
justiça, dos seus bens materiais, o que faz para remissão dos
seus pecados e para que receba em centuplicado por Deus no futuro. […] Hec
itaque omnia ego predictus Alfonsus diligenter considerans animaduerit quia
iustum et ualde necessarium est unicuique ratione disponent, dum uiuit in hac
uita ob remissionem pecatorum suorum sua omnia delegare ubi uelit et quibus
uelit, ut illud a Domino centuplicatum recipiat in futuro». In António Brochado Mota,
Testamentos Régios, Primeira Dinastia (1109-1383), Dissertação de Mestrado em
História Medieval, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de
História, Lisboa, 2011.
Cortesia
da UL/FL/História/JDACT