Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Pronto, pronto, disse ele, tentando consolar Zéliha enquanto vestia um par de
luvas cirúrgicas. Tudo vai correr bem, não se preocupe. É apenas um sono leve. Vai
dormir, sonhar, e antes de terminar o sonho nós a acordaremos e depois irá para
casa. Depois disso não se lembrará de nada. Quando Zéliha chorava daquele
jeito, todas as suas expressões tornavam-se visíveis e as bochechas afundavam,
acentuando-lhe o traço mais vigoroso: o seu nariz! Aquele notável nariz
aquilino que, como os irmãos, ela herdara do pai; diferente dos irmãos, porém,
o dela tinha o dorso mais acentuado e era um pouquinho mais alongado nas
bordas. O médico deu-lhe umas palmadinhas no ombro, passou-lhe um lenço de
papel e depois a caixa inteira. Sempre tinha uma caixa de lenços de papel de
prontidão junto à sua mesa. As companhias farmacêuticas distribuíam caixas de
lenços de papel grátis. Juntamente com canetas, agendas e outras coisas que
traziam gravado os seus nomes, as companhias fabricavam lenços de papel para as
mulheres que não conseguiam parar de chorar. Figos… Figos deliciosos… Figos óptimos,
maduros! Era o mesmo vendedor ou um outro? Como os clientes o chamariam…?
Figueiro…?!, pensou Zéliha consigo mesma, deitada na mesa de uma sala
perturbadoramente branca e imaculada. Nem os equipamentos nem as facas a
assustavam tanto quanto aquela absoluta brancura. Havia algo na cor branca que
se assemelhava ao silêncio. Ambos eram desprovidos de vida.
No seu
esforço para se afastar da cor do silêncio, Zéliha distraiu-se com uma mancha
preta no tecto. Quanto mais fixava o olhar, mais a mancha se parecia com uma
aranha negra. Primeiro imóvel, depois começou a rastejar. A aranha tornava-se
cada vez maior à medida que a injecção se espalhava pelas veias de Zéliha. Em
poucos segundos estava tão pesada que não conseguia mover um dedo. Enquanto
resistia a ser carregada para longe pelo sono da anestesia, começou a soluçar
de novo. Tem a certeza de que é isso que quer? Talvez queira pensar mais sobre
o assunto, disse o médico numa voz aveludada, como se Zéliha fosse um monte de
pó e ele tivesse medo de fazê-la voar para longe com o vento de suas palavras
se falasse mais alto. Se quiser reconsiderar a sua decisão, ainda há tempo. Mas
não havia. Zéliha sabia que aquilo tinha de ser feito naquela hora, naquela
primeira sexta-feira de Julho. Agora ou nunca.
Não
há nada a reconsiderar. Não posso ter essa filha, ouviu-se dizer abruptamente. O
médico fez um sinal afirmativo com a cabeça. Como se esperasse por esse gesto,
a prece de sexta-feira inundou de repente a sala, vinda da mesquita próxima. Em
segundos, outra mesquita juntou-se à primeira, e depois outra e mais outra. O
rosto de Zéliha contorceu-se, desconfortável. Detestava quando uma prece
destinada originalmente a ser emitida pela pureza da voz humana era
desumanizada numa voz eléctrica, estrondeando pela cidade, produzida por
microfones e altifalantes. Logo o clamor era tão ensurdecedor que Zéliha
suspeitou haver algum defeito no sistema de altifalantes das mesquitas nas proximidades.
Ou então os seus ouvidos tinham-se tornado extremamente sensíveis. Vai terminar
num minuto… Não se preocupe. Era o médico falando. Zéliha olhou-o
interrogativamente. O desprezo pela electro-prece era tão óbvio no rosto dela?
Não que se importasse. Entre todas as mulheres Kazanci, Zéliha era a única
declaradamente não-religiosa. Quando criança, agradava-lhe imaginar Alá como o seu
melhor amigo, o que não era coisa ruim, claro, excepto porque a sua outra
melhor amiga ser uma garota sardenta, loquaz, que passara a fumar aos oito
anos. A garota era filha da faxineira da família, uma curda gorducha cujo
bigode nem sempre se preocupava em depilar. Naquela época, a faxineira ia à casa
de Zéliha duas vezes por semana, levando sempre a filha. Depois de um tempo,
Zéliha e a garota tornaram-se boas amigas, chegando até a cortar seus
respectivos dedos indicadores para misturarem o sangue e serem irmãs de sangue
para sempre. Por uma ou duas semanas, as garotas andaram com curativos ensanguentados
amarrados nos dedos como um sinal de sua irmandade. Naqueles tempos, sempre que
Zéliha rezava, pensava nessas palhaçadas, se pelo menos Alá também se pudesse tornar
uma irmã de sangue…, sua irmã de sangue…» In Elif Shafak, De Volta a
Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de
Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN
978-989-875-237-6.
Cortesia de EBF/JEditora/JDACT
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