Cortesia
de wikipedia e jdact
«Os
dois documentos mais expressivos da vida sentimental e do mundo imaginário na
Baixa Idade Média são, sem dúvida, a poesia lírica dos trovadores, que teve
como centro de irradiação o sul da França, e a literatura narrativa, primeiro
em verso e posteriormente em prosa, das novelas de cavalaria. Correspondiam às
duas ideias-força mais representativas no tempo: o Amor e a Luta. O
mundo encantado dessa época esteve fundamentalmente centrado nestas duas
manifestações. A literatura heróica da França setentrional (canções de gesta),
contaminada no século XII pela cortesia, deriva para o romance cortês,
que, após a experiência de Chrétien de Troyes no século XII, empreende uma
renovação em dois sentidos: na forma de expressão, substituindo o verso pela
prosa; no seu conteúdo, desenvolvendo a vertente mística que o próprio Chrétien
de Troyes havia impresso no seu último romance: o Perceval. O cruzamento
das duas formas de ficção, em que ao sentimento da glória pessoal se associa o
ritual do amor cortês (da lírica dos trovadores), tornou mais atraente a
literatura narrativa, que conseguiu assim manter a sua vitalidade na
preferência do público até ao século XVII, quando Cervantes lhe dá um golpe
mortal com a sua genial caricatura do Quixote. A derivação para a prosa,
utilizada pela primeira vez no vasto conjunto Lancelot-Graal na altura
de 1225, contribuiu poderosamente para tornar mais fácil e cómoda a leitura das
novelas cavaleirescas, estimular a sua difusão, além de fomentar a tradução nas
outras línguas. Sucedidas e suplantadas pelo romance moderno, as novelas de
cavalaria só mais tarde conseguiram reconquistar o seu antigo prestígio,
tornando-se alvo de investigação filológica e literária, com as inúmeras edições
críticas surgidas na primeira metade deste século. Elas renascem impulsionadas
pelo movimento de reabilitação da Idade Média, entre cujos líderes não podemos
esquecer os nomes de Johan Huizinga, Edgar Bruyne, Valdemar Vedel, Gustavo
Cohen, Hemi Focillon e outros tantos que brilharam nas três décadas de 1920 a
1950.
[..]
Do poema do Cid, outras tantas versões se realizaram, desde a de Pedro
Salinas de 1924, em versos de dezasseis sílabas partidos em hemistíquios, até à
de Alfonso Reyes na Colecção Austral, em prosa literária, à de José Bergua em
1944, numa tradução literal verso a verso (sem a preocupação do sentido), à
versão em versos octossílabos, de Luis Guarner, em 1940, baseada em critérios
filológicos, critérios esses que foram adotados mais tarde, em 1955, por
Francisco López; Estrada, professor da Universidade de Sevilha, na sua versão
primorosa do Poema dei Cid, publicada pela Editora Castalia. Esta
Editora, na sua colecção Odres Nuevos, procurou levar ao leitor de hoje,
ao grande público, os monumentos da literatura medieval espanhola: Libro de Apolonio,
Leyendas épicas medievales, Fernán Gonzáles etc. E assim o extraordinário
poema de Rodrigo Díaz de Vivar, o Cid, deixou de ser leitura exclusiva
de filólogos. […] Heitor Megale completou, portanto, aquilo que faltava no caso
português, além de obviar agora a raridade da espécie no comércio livreiro.
Oxalá, então, que os leitores de hoje, cultos ou simplesmente ávidos de
excelentes leituras, estudantes de letras e professores de literatura, se
disponham a usufruir as belezas dessa novela, povoada de aventuras
maravilhosas, envolta num simbolismo fantástico criado pelo mundo céltico, e,
quem sabe, anunciadora de um mundo mais perfeito que o nosso: a era do Espírito
Santo...
É
possível que nenhuma outra produção literária tenha sido tão difundida na Idade
Média como a chamada matéria da Bretanha, um vastíssimo complexo de
textos em verso e em prosa centrados na figura de Artur e dos seus cavaleiros
da távola redonda. As mais remotas menções de Artur, no entanto, seriam provenientes
de obras de cunho historiográfico. No século VIII, Nennius, em sua Historia
Britonum, apresenta Artur como um chefe guerreiro de actuação marcante na
resistência bretã às invasões saxónicas do século VI. Por volta de 1125,
William of Malmesbury, em Gesta regum anglorum, fala de Artur como um
grande guerreiro, chega a referir-se a seu sobrinho Galvão e refuta crenças em
messianismo arturiano, que diz existirem entre os bretões. Geoffrey of
Monmouth, em Historia regum Britanniae, terminada talvez em 1136, mais
tarde traduzida para o anglo-normando, faz de Artur um rei e o descreve como um
homem cheio de virtudes, principalmente de liberalidade. A esta Historia,
acrescentou Monmouth Prophetia Merlini, e é também de sua autoria Vita
Merlini, o poema que, pela primeira vez, na matéria da Bretanha,
cita Avalon, a ilha das maçãs, para onde levam Artur ferido para ser tratado
por Morgana.
Apenas
pelas referências de Nennius, de William of Malmesbury e de Geoffrey of
Monmouth, percebe-se o imbricamento da realidade com a ficção. É exactamente
como diz Erich Köhler: pode-se dizer da Idade Média, num sentido muito
preciso e particular, o que caracteriza geralmente toda pretensão de grupos ou
de indivíduos que desempenham um papel histórico, isto é, que os homens
experimentam desde sempre a necessidade de imaginar que o ideal, objecto de sua
busca no presente, existiu como realidade num passado remoto. Ora,
histórica e politicamente, lutavam os bretões, assim como outros celtas, pela
busca de unidade e expansão. Estes objectivos, porém, não foram conseguidos.
Reprimidos por invasores saxões, viram-se forçados a refugiar-se na Armórica,
na Escócia e no país de Gales. Sobrou-lhes o desejo da revanche, que só foi possível levar a cabo no plano ficcional. A
grandeza passada alimentava lendas de esperança do retorno de Artur, o dux bellorum
derrotado no século VI. Os reis normandos, descendentes de Guilherme, o Conquistador, tendo derrotado antigos
senhores saxões, tentaram atrair a simpatia dos bretões encorajando a
divulgação literária das suas lendas». In Manuscrito do Século XIII, A Demanda do
Santo Graal, Heitor Magale, TA Queiroz, Editora da Universidade de São Paulo,
1988, CDD 398 46, 1989, ISBN 858-500-874-1.
Cortesia
de EUSPaulo/JDACT