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Uma
história verdadeira
«(…)
Pelo contrário! Admirava-o! Sim; ela dera-lhe essa sensação poderosa e
extraordinária, a sensação dos que se veem admirados com ingénua confiança. Margarida
pedia-lhe coisas enormes, com uma serenidade inefável de crente! Pedira-lhe um
ninho de melros, e o que é mais! Conseguira que ele tão medroso, tão débil, tão
assustado, trepasse pelos braços nodosos de uma grande árvore e lho fosse
buscar lá acima. Que triunfo, ao ver satisfeito o seu capricho! Mas que triunfo
maior ainda o dele ao compreender, que alcançara essa coisa prodigiosa, que nem
nos sonhos mais arrojados das suas noites de febre ele ousara até ali conceber!
Um dia Margarida, em frente daquele rasgo assombroso de valentia que colocara
Tadeu ao lado dos maiores heróis, pusera-se grave, meditativa, e apontando com
serena majestade para a lua que se reflectia num tanque do jardim, pedira a lua
ao seu amigo Tadeu! Está claro que ele lha não pôde dar, mas gostou daquilo! Percebeu
que o julgavam capaz de coisas grandes, de levar a cabo empresas impossíveis, e
esta ideia que alguém tinha da sua força, fê-lo crescer aos seus próprios
olhos. O marquês conhecendo que o pequeno deixara de ser o seu joguete,
simplesmente para ser o joguete da sua filha e herdeira, aplaudiu de lhe haver
dado aquela educação especial, e proibiu que o distraíssem, fosse sob que
pretexto fosse, das suas novas funções. Margarida era ainda muito pequenina
para entreter os pais. Ele precisava das excitações da política, das lutas do
parlamento, dos sorrisos falsos ou verdadeiros, caros ou baratos das formosas
mulheres, do jogo, da ambição, do amor, da violência corrosiva de todas as
pequenas e grandes paixões!
Ela
precisava do luxo, das jóias que cintilam, das sedas que se quebram em
ondulações brilhantes, do coro das adulações mentidas, de todas as efémeras
alegrias que só o mundo lhe podia dar. Para ambos, Margarida seria um remorso,
se a não vissem tão feliz, tão roliça, tão alegre, com chispas de travessura
maliciosa no olhar, sempre acompanhada do seu pequeno amigo, submisso e fiel
como um cão. Deixaram-nos, pois, crescer e viver juntos sob o olhar das aias,
sempre um pouco hostil para Tadeu e por isso tanto mais insuspeito. Foi o
verdadeiro paraíso que este conheceu na terra, foi a sua idade de ouro. Há
seres que nunca nem por um instante só conheceram a completa ventura. São de
todos os mais desgraçados. Tadeu mais tarde podia ao menos recordar-se! E ele
sabia apreciar também aquelas alegrias que em manhã abençoada tinham caído
sobre a sua pobre cabeça!... Um dia Margarida travessa e caprichosa como era,
desatendendo todas as advertências de Tadeu, deixara-se cair dentro do tanque
do jardim. O pequeno não sabia nadar. Que importa! Sem premeditação, sem
raciocínio, obedecendo a um instinto de dedicação inteiramente canina,
deitou-se na água atrás dela. As criadas, acudindo, tiraram do tanque as duas
crianças abraçadas. Imagine-se o que iria em casa! Tadeu, castigado
severamente, não quis condenar a sua amiguinha, para se salvar a si. Foi ela
que, soberba, graciosa, com a sua majestade de pequena rainha, disse aos pais:
não batam nele. Ele pediu-me que não fosse. Eu é que quis ir. Acharam-na
adorável; encheram-na de carícias e de gulodices, mas ninguém pensou na acção
tão simples e tão heróica do pequeno Tadeu, a quem tinham posto a alcunha de
medroso.
Foi
assim que Margarida fez nove anos. Era linda e indómita. Tinha um corpo airoso,
flexível e forte. Ninguém oprimira nunca aquela altiva natureza aristocrática.
Daí a sua isenção, a liberdade dos seus movimentos, o fulgor radioso dos seus
grandes olhos azuis, onde um observador veria talvez as cintilações metálicas
que davam tamanha dureza ao olhar da sua mãe. Margarida tinha uma vontade de
ferro, e uns nervos de mulher caprichosa. Quando a professora alemã que os seus
pais mandaram buscar, quis sujeitar o seu espirito a uma certa disciplina,
Margarida revoltou-se num ímpeto de insubordinação selvática. Tivera criadas
que a serviam, um escravo que tremia à frente dela, e pais que transigiam com
todos os seus pequenos desejos de criança. Dera-se bem naquele meio, não queria
outro, não o aceitava, nem curvaria a sua cabecinha erecta e firme com uma auréola
de anéis de ouro a cercá-la, a nenhum domínio que não fosse o da sua vontade. Um
dia Tadeu ouviu falar vagamente numa viagem que os seus tios iam fazer ao
estrangeiro, e viu começar os preparativos para ela. Ficou no céu. Viveria só
na grande casa com Margarida e o rancho dos criados. Seriam livres. Ela teria
um balouço no jardim, uma rede brasileira no quiosque, e um barquinho no lago. Eram
os seus três sonhos ainda irrealizados. Tadeu dirigiria todos os trabalhos. Diria
aos operários que tinha dezasseis anos, e que era sobrinho do marquês». In
Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher
a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma
de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.
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