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«Em 1492, além da chegada de Colombo à
América, conclui-se também a Reconquista, como se chamou a luta que os cristãos
da Península Ibérica travaram contra os mouros do século XII ao final do século
XV. É o ano da queda de Granada, último reduto muçulmano a sucumbir ante os
reis católicos Fernando e Isabel. É também o marco a partir do qual a
gigantesca limpeza étnica encontra o seu fecho de ouro, quando a Inquisição (maldita), sob a
direcção de Torquemada, decide queimar qualquer coisa que ofereça resistência
real ou virtual ao poder da Igreja e das Coroas unidas de Aragão e Castela. Ajustadas
as contas com os infiéis islâmicos, chegara a vez dos judeus. Alguns aumentarão
a lista dos executados pela Inquisição (maldita) espanhola; os demais
serão forçados, por decreto real, a se converter ou a deixar a Espanha. Esta é
a cena que se abre aos personagens de Noah Gordon. Inquisidores vivendo muito
bem (a Inquisição ficava com um terço dos bens dos hereges), gente da Corte (os
outros dois terços ficavam na Corte), judeus convertidos e acusados de práticas
clandestinas (queimados, às vezes, ao lado de antigas e ricas famílias de
cristãos criadores de casos) e judeus não-convertidos. Os não-convertidos
seriam obrigados a fugir por causa do decreto. E foi exactamente o que fizeram,
todos menos Yonah Helkias Toledano, personagem central de Gordon. Sendo apenas
um garoto indefeso, no dia em que o pai é vítima de um derradeiro pogrom, Yonah não consegue fugir e fica
solto nos campos da Espanha, vagando num burro que ele chama secretamente de
Moisés. Yonah Toledano será o fio condutor de uma história ambientada há
quinhentos anos no sul da Espanha e no reino de Aragão, quando os autos-de-fé
queimavam oito mil pessoas e soberanos católicos substituíam os infiéis no
palácio do Alhambra, em Granada. Ele vai trabalhar na terra como peão, num
calabouço como servente, será pastor de ovelhas nas montanhas desertas da
Andaluzia, marinheiro, aprendiz de amieiro, médico, cirurgião, polidor de
armaduras e tradutor de texto hebraico proibido. Adquire, assim, a experiência
e a capacidade de defesa que o mantiveram vivo até o final da história. Vivo e
não-convertido. Torcendo por uma vida suficientemente longa para levar os
filhos adultos aos lugares secretos, acender as velas do shabat, entoar as preces nas línguas desconhecidas e deixar o
resto, como diz o autor, nas mãos de Deus.
O primeiro filho. Toledo, Castela, 23 de Agosto de
1489. O filho do ourives
O mau tempo começou para Bernardo Espina
num dia em que o ar caía pesado como ferro e a luz altaneira do sol era uma
praga. Naquela manhã, o seu consultório apinhado de gente ficou quase vazio
quando a bolsa de água de uma mulher grávida estourou; os dois pacientes que
não saíram foram banidos por ele. Não se tratava sequer de uma cliente; apenas
uma moça que levara o pai idoso ao médico por causa de uma tosse que não
parava. Era o seu quinto bebé e emergiu sem delongas para o mundo. Espina pôs
nas mãos o menininho rosado, lustroso, e, quando bateu nas pequenas nádegas, o
uivo estridente do vigoroso peãozinho provocou risos e brados de alegria nos
que esperavam do lado de fora. O parto levantou o ânimo de Espina com a falsa
promessa de um dia feliz. Como não tinha compromisso à tarde, estava pensando
em preparar uma cesta com doces e uma garrafa de vinho tinto para ir com a
família até ao rio. Enquanto as crianças chapinhassem na água, ele e Estrella
poderiam sentar-se na sombra de uma árvore, bebericar, beliscar os doces e
conversar sossegadamente.
Estava acabando de atender o último
paciente quando um homem, usando a batina castanha de um noviço, entrou saltitando
no pátio montado num burro. O animal parecia ter sido forçado demais num dia
quente como aquele. Cheio de contida pompa e entusiasmo, o homem balbuciou que
a presença do senhor médico estava sendo solicitada no Mosteiro da Assunpção
pelo padre Sebastián Alvarez. O prior espera que vá de imediato. O médico
apostou que o homem sabia que ele era um convertido. As maneiras continham o
respeito devido à sua profissão, mas havia insolência no tom, quase o mesmo tom
(embora não de todo) que o homem teria usado para se dirigir a qualquer outro
judeu. Espina assentiu e tomou providências para que dessem alguns goles de
água ao burro, comida e bebida ao homem. Tomou também a precaução de mijar,
lavar o rosto e as mãos, engolir um pedaço de pão. O noviço ainda estava
comendo quando Espina saiu para atender à convocação». In Noah Gordon, O Último Judeu, Uma
história de terror na Inquisição, 2000, tradução de Mário Molina, Editora
Rocco, ISBN
978-853-251-171-6.
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