Cortesia
de wikipedia e jdact
«Porquê
eu? Desde o começo da reunião Virgílio estava fazendo essa pergunta a si mesmo.
Só agora surgia a oportunidade de fazê-la em voz alta. Mas não teve resposta.
Em vez disso, desencadeou duas frases quase em simultâneo. Desculpe, mas não
entendi a sua dúvida, disse o homem corpulento sentado à cabeceira da mesa
comprida. Tirou-me as palavras da boca, comentou em voz alta a moça magra de cabelo
encaracolado, que chegara ainda mais atrasada do que Virgílio e se sentara numa
cadeira extra, num cantinho. Diante disso, ele achou que convinha explicar
melhor: bom, quando eu cheguei, todos já estavam nos seus lugares, mas a
reunião ainda não tinha começado. Quer dizer, eu acho que não perdi nada. Você apresentou-se,
o que foi muito bom, porque eu, por exemplo, só o conhecia de nome, e começou a
dizer que estávamos todos aqui reunidos para discutir o projecto de uma próxima
novela. Falou em prazos, recursos, cronogramas. Depois passou a palavra ao autor,
ao director, ao pessoal da produção, a quem vai escolher o elenco. Ficámos a
saber que a história se passa no século XIX, no Rio de Janeiro, mas com certeza
vai incluir também uma viagem das personagens à Europa... Enfim, tudo o que nós
todos ouvimos e eu não preciso ficar repetindo. Tenho a certeza de que prestei
atenção e não perdi nada. Mas não consigo deixar de achar que entrei na sala
errada, ou vim no dia errado. Apesar de o meu nome estar lá fora, com a
recepcionista. Quer dizer, porque me chamaram? Eu não tenho nada a ver com
isso. Nem eu..., acrescentou novamente a moça do cabelo encaracolado. Não se
chama Virgílio Pádua Toledo?, perguntou o grandalhão, ignorando o comentário
dela. Exactamente. Podia dizer aos outros o que faz? Sou cozinheiro e dono de um
restaurante. Do Marco Polo, na Lagoa. E arquitecto de profissão, creio. De
profissão, de paixão, de maldição, como queira..., confirmou ele.
Então
é a pessoa que nós chamámos. Confesso que continuo sem saber por quê. Não vejo
em que eu possa encaixar-me na produção de um programa de televisão como esse.
Pelos rostos dos outros em volta da mesa, Virgílio ia percebendo que a
curiosidade não era só sua. Com excepção da moça magra, todos pareciam à
vontade ali, no seu ambiente. Eventualmente trocavam comentários em voz baixa, já
que se conheciam. Dava para ver que eram do ramo. Já deviam estar acostumados a
trabalhar juntos e não disfarçavam ocasionais olhares meio intrigados em direcção
a ele e à moça, que nesse momento confirmava com um gesto de cabeça a última
frase de Virgílio. Sorrindo, o homem corpulento que comandava a reunião e se
apresentara como José Egídio, director daquele núcleo, voltou-se então para ela
e disse: pelo jeito, está com a mesma dúvida. Pode ter certeza de que estou. Mas
primeiro não se quer se apresentar, Bia?, convidou ele. Meio hesitante, ela
começou: o meu nome é Beatriz Bueno e sou jornalista e..., bom, biscateira
cultural. Sorrisinhos. E escritora, acrescentou José Egídio. Autora de livros
de viagem de muito sucesso. E de muito boa qualidade, segundo me garante o
Muniz, eu ainda não tive oportunidade de ler. Mas como todos os que conhecem o
nosso autor aqui presente sabem do seu nível de exigência, não preciso insistir
no valor decisivo que uma recomendação dessas teve na minha decisão de a convidar
para estar hoje aqui connosco e se juntar a nós neste projecto que estamos a começar.
Para
fazer o quê?, perguntou ela, muito directa. Em vez de responder, José Egídio
fez um sinal com a cabeça em direcção ao Muniz, enquanto devolvia a pergunta:
ele já vai explicar. Mas antes eu gostaria de saber, por curiosidade: para que acha
que foi chamada? Imagino que por alguma estratégia nova de divulgação, para
fazer uma matéria sobre essa futura série, é série, não? Tenho a impressão de
que era o que eu tinha entendido, mas ele acabou de falar em novela e eu fiquei
na dúvida. Os gestos de assentimento em volta da mesa confirmaram que não era
uma novela, mas uma série. Só que a moça nem se interrompeu e continuou a falar:
e vou logo dizendo que é um equívoco, eu não tenho a menor condição, não trabalho
no segundo caderno e lá no jornal é tudo muito compartimentado. Eu só escrevo
sobre viagens, no caderno de turismo. E nem vou à redacção, escrevo em casa ou
num hotel quando estou fora, mando o texto pela internet. No fundo, sou só uma colaboradora fixa, não conheço quase
ninguém lá, nem dá para pedir uma ajuda numa cobertura...
Hesitou
um pouco e acrescentou: além disso, tem uma coisa meio delicada. Eu trabalho
para o jornal. Quero dizer, não posso receber de uma empresa ou de um projecto
como esse para trabalhar para os senhores. Não seria ético, entendem? Eu sei
que é super-comum, muitas pessoas o fazem, hoje em dia todos aceitam. Mas eu
acho que sou meio antiquada nessas coisas. Não estou querendo julgar ninguém
nem criticar colegas, mas o caso é que eu não faço isso. Para mim, antes de
mais nada, vem o interesse dos leitores. Não posso ficar colhendo elogios no
jornal. Quero dizer que é um grande mal-entendido. Voltando-se para Virgílio,
José Egídio repetiu a pergunta: e você? O que imagina que lhe vamos pedir?» In
Ana Maria Machado, A Audácia dessa Mulher, 1999, Editora Objectiva (Prisa
Edições), 2011, ISBN 978-857-962-114-7.
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