Cortesia
de wikipedia e jdact
O mais
cruel dos meses
«E o
senhor, como se chama? Espere, está na ponta da língua. Tudo começou assim. Era
como se acordasse de um longo sono, e, no entanto, ainda estava suspenso numa
cinza leitosa. Ou quem sabe não estava acordado, mas sonhando. Era um estranho
sonho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se não visse, mas ouvisse
vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda não via nada,
excepto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia. Bruges,
disse a mim mesmo, estava em Bruges, já estivera em Bruges, a morta? Onde a
névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade cinzenta,
triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende desbeiçada das
fachadas como um arrás... Minha alma limpava os vidros do bonde para
afogar-se na névoa móvel dos sinais. Névoa, minha incontaminada irmã... Uma
névoa espessa, opaca, que embrulhava os rumores, e fazia surgirem fantasmas sem
forma... Por fim chegava a um despenhadeiro enorme e via uma figura altíssima,
envolta num sudário, o rosto de um condor imaculado de neve. Eu chamo-me Arthur
Gordon Pym. Mastigava a névoa. Os fantasmas passavam, tocavam-me, desvaneciam-se.
As luzinhas ao longe luziam como fogos fátuos num campo-santo... Alguém caminha
a meu lado sem rumor, como se tivesse os pés descalços, caminha sem saltos, sem
sapatos, sem sandálias, uma faixa de névoa desliza-me sobre a face, uma frota
de bêbados grita lá em baixo, no fundo da balsa. A balsa? Não sou eu quem diz,
são as vozes. A névoa chega sobre pequenas patas de gato... Era uma névoa que
parecia que tinham sumido com o mundo. Entretanto de vez em quando era como se
abrisse os olhos, e visse relâmpagos. Ouvia as vozes: não é um coma
propriamente dito, senhora... Não, não pense num eletroencefalograma plano, por
caridade... Existe reactividade... Alguém me projectava uma luz nos olhos, mas
depois da luz era de novo o escuro. Sentia a picada de uma agulha, de alguma
parte. Viu, tem mobilidade... Maigret mergulha numa névoa tão densa que
não consegue ver nem onde põe os pés... A névoa pulula de formas humanas,
fervilha de uma vida intensa e misteriosa. Maigret? Elementar, meu caro Watson,
são dez negrinhos, é na névoa que desaparece o cão dos Baskerville. A cortina
de vapor cinza gradualmente perdia o seu matiz cinzento, o calor da água era
extremo, e sua nuança leitosa mais intensa que nunca... Então nos precipitámos
nos abraços da catarata onde um abismo se abriu para nos engolir. Ouvia gente que
falava ao meu redor, queria gritar e avisá-los de que estava ali. Havia um
zumbido contínuo, como se fosse devorado por máquinas singulares de dentes
pontiagudos. Estava na colónia penal. Sentia um peso sobre a cabeça, como se me
tivessem enfiado a máscara de ferro. Tinha a impressão de divisar luzes azuis. Apresenta
assimetria dos diâmetros pupilares. Tinha fragmentos de pensamentos,
decerto estava acordando, mas não podia mover-me. Se pelo menos conseguisse
ficar acordado. Dormi de novo? Horas, dias, séculos?
A
névoa retorna, as vozes na névoa, as vozes sobre a névoa. Seltsam, im Nebel zu
wandern! Que língua é? Parecia que nadava no mar, sentia-me próximo à
praia mas não conseguia chegar lá. Ninguém me via e a maré me levava embora. Por
favor digam-me alguma coisa, por favor toquem-me. Senti uma mão na testa. Que
alívio. Uma outra voz: senhora, temos histórias de pacientes que despertam de
repente e vão embora com as próprias pernas. Alguém me incomodava com uma luz
intermitente, com a vibração de um diapasão, era como se me tivessem posto um
vidro de mostarda debaixo do nariz, depois um dente de alho. A terra tem um
cheiro de cogumelos. Outras vozes, mas essas de dentro: longos lamentos de locomotiva
a vapor, padres na neblina informe encaminhando-se em fila para São Miguel no
Bosque. O céu é de cinzas. Névoa rio acima, névoa rio abaixo, névoa que morde
as mãos da pequena vendedora de fósforos. Os passantes nas pontes da Ilha dos
Cães olham um ínfimo céu enevoado, envoltos eles mesmos na névoa como em um
balão suspenso sob uma névoa morena, que nem morte muita poderia desfazer.
Cheiro de estação e de fuligem. Uma outra luz, mais leve. Parece que ouço,
através da névoa, o som das gaitas escocesas que se renova no brejo. Outro
longo sono, talvez. Depois uma clareada, pareço estar num copo de água e
anis...» In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, tradução de Eliana
Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN 978-850-107-143-9.
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