Cortesia
de jdact e wikipedia
Narrativa
epo-histórica
«A
Alma portuguesa carateriza-se pelas manifestações seculares persistentes do
tipo antropológico e étnico, que se mantêm desde as incursões dos Celtas e
lutas contra a conquista dos Romanos até à resistência diante das invasões da
orgia militar napoleónica. São as suas feições: a tenacidadeb e
indomável coragem perante as maiores calamidades, com a fácil adaptação a todos
os meios cósmicos, pondo em evidencia o seu génio e acção colonizadora; uma
profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam às
aventuras heróicas, e à idealização afectiva, em que o Amor é sempre um caso de
vida ou de morte; capacidade especulativa pronta para a apercepção de
todas as doutrinas científicas e filosóficas, como o revela Pedro Julião (Hispano),
na Idade Média, Francisco Sanches, Garcia da Orta, Pedro Nunes e os Gouveias,
na Renascença; Um génio estético, sintetizando o ideal moderno da
Civilização ocidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de Humboldt
como o Homero das línguas vivas. O cantor das grandes Navegações foi quem teve
a mais alta compreensão do génio nacional; a alma Portuguesa achou no seu Poema
a incarnação completa. Quando Camões descreve nos Lusíadas, geográfica e
historicamente Portugal, referindo-se à tradição da antiga Lusitânia, relembra
o vulto que simboliza a sua vitalidade resistente, diante da incorporação
romana da península hispânica:
Eis
aqui, quase cume da cabeça
da
Europa toda, o reino Lusitano,
onde
a terra se acaba, e o Mar começa,
e
onde Febo repousa no Oceano.
Esta
é a ditosa Pátria minha amada,
esta
foi Lusitânia.
Desta
o Pastor nasceu, que no seu nome
se
vê que de homem forte os feitos teve;
cuja
fama ninguém virá que dome,
pois
a grande de Roma não se atreve.
(Canto
III, st. XX a XXII)
Deixo...
atrás a fama antiga
que
com a Gente de Rómulo alcançaram,
quando
com Viriato na inimiga
guerra
romana tanto se afamaram.
Também
deixo a memória, que os obriga
a
grande nome, quando a levantaram
por
um seu Capitão, que, peregrino,
fingiu
na Cerva espirito divino.
(Canto
I, st. XXVI)
No
tempo do grande épico ainda se não tinha perdido o conhecimento da relação de
continuidade histórica entre Portugal e a antiga Lusitânia, mais vasta e por
isso mais violentamente retalhada pela administração imperial romana. Esse
conhecimento, embora confundido com as lendas sincréticas dos falsos Cronicões, influiu na consciência do
nosso individualismo étnico e nacional. O esforço de desnacionalização de
Portugal pela política da unificação ibérica, veio até reflectir-se nos
próprios historiadores pátrios, levando-os a considerar Portugal uma formação
recente, adventícia, sem individualidade, e a Lusitânia quase como uma ficção
banal dos eruditos da Renascença! Mas o carácter persistente do tipo português,
a resistência tenaz contra todos os conflitos da natureza e pressões da vida,
que tanto o distingue entre os povos modernos, é a prova manifesta da raça
lusitana como a descreveram os geógrafos gregos e romanos. Nas lutas pela
liberdade territorial a Lusitânia deixou nos historiadores greco-latinos o eco
da sua resistência indomável, sobretudo no Ciclo das Guerras viriatinas,
que se reacenderam ainda sob o comando de Sertório. Pela sua genial intuição
teve Garrett a compreensão deste carácter resistente e sofredor da nossa raça
lusitana: os Portugueses são naturalmente sofredores e pacientes: muito
arrochada há de ser a corda com que de mãos e pés os atam seus opressores,
antes que rompam num só gemido os desgraçados. Um murmúrio, uma queixa... nem
talvez no cadafalso a soltarão! Vendem-nos os desleais pegureiros de quem nos
deixamos governar; vendem-nos, enxotam-nos para a feira a cajado e a latido e
mordedela dos seus mastins; e nós vamos e nem gememos. Se um clamor de
queixumes, se uma voz de desconfiança acaso surde, aqui os clamores de
rebeldes, os alcunhas de demagogos... e a nação (o rebanho, direi antes) que se
resigna e sofre, e continua a caminhar para o exício! Tal é, com as diferenças
de variados nomes e datas, a história de Portugal quase desde que a revolução
ou restauração (restauração seria?) de 1640 fez da nação portuguesa o
património de meia dúzia de famílias privilegiadas e dos seus satélites e
parasitas. (Carta de M. Cévola, 1830.) Simbolizamos esta
resistência, vivificando o tipo de Viriato, reconstruindo poeticamente as
situações lacónicas referidas nos historiadores clássicos; representamos
artisticamente essa fibra que ainda hoje pulsa em nós, e pela qual, perante a
marcha da Civilização se afirma através dos cataclismos políticos a Alma Portuguesa».
In
Teófilo Braga, Viriato, 1904, ePub, Perses, Apelron, 2013, ISBN 978-989-554-416-5.
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