Cortesia
de wikipedia e jdact
«A arte
da ourivesaria foi cultivada primorosamente em Guimarães no século XV. Daqui
saiu Gil Vicente, o lavrante da rainha dona Leonor, mulher de João II. Fez
aquela galantaria da custódia de Belém, que não trocaria decerto pelas delícias
de reler os autos e comédias que ele fez também, o nosso Shakespeare. Eu
trocava; e ousaria até propor a troca, se a custódia não estivesse na baixela
de el-rei. Quanto ao poeta Gil Vicente e a Shakespeare, os dois parecem-se
tanto um com o outro como o Hamlet com o Choro de Maria Parda. Pelo que
pertence à terra natal de Mestre Gil, não impugno a hipótese que confere
tamanha honra a Guimarães. Lisboa e Barcelos disputaram essa glória ao berço da
monarquia; mas um notável genealógico, o desembargador Cristóvão Alão Morais,
escreveu há dois séculos que o Plauto português era filho de Martim Vicente,
ourives de prata, natural de Guimarães. Se eu pudesse desconfiar da
infalibilidade dos linhagistas, justificá-los-ia um documento que possuo de
1455, vinte anos talvez mais novo que Gil Vicente. Com toda a certeza vivia
então na Caldeiroa, arrabalde da vila, o sapateiro Fernão Vicente, pai de
Martinho Vicente. Este, que era ourives, morava então no Casal da Laje,
freguesia de Santo Estêvão de Urgezes. Aqui, provavelmente, nasceu Gil Vicente.
Isto veio a propósito de ter sido Guimarães a pátria de alguns ourives lavrantes
que formaram escola de escultura. A história das artes plásticas celebra mais
alguns nomes; nós, porém, diremos de um ourives deste século, ali nascido
naquelas formosas ruínas abraçadas pelas ramagens dos arvoredos. Não se fez
célebre pela arte. O coração queimou-lhe os gomos do engenho quando iam
desbotoar-se em flores. Chamava-se Guilherme Nogueira e nascera em 1802. Por
1818 estudara pintura no Porto; mas por morte do seu mestre, João André Chiape,
voltara para Guimarães, dera-se à escultura e trabalhava com ardor na oficina
do seu pai, ensaiando a imitação do antigo. Não dava férias ao lavor ou ao
estudo. Ia para o tesouro da Colegiada, com a protecção de um parente cónego, (é o presbítero que vive sob uma regra que o
obriga a realizar as funções litúrgicas mais solenes numa igreja)
contemplar os cálices de prata dourada, os cetros e a gargantilha da Senhora da
Oliveira com os seus dezasseis botões de ouro esmaltado e guarnições de pérola;
maravilhava-o a cruz lavrada, que dera o cónego Mendes, e a custódia cinzelada
com imagens, dádiva de outro cónego do século XVI.
Uma
vez, encontrou lá um abastado curtidor de peles que mostrava o tesouro da
Senhora da Oliveira para uns parentes do Alto Minho e explicava imaginariamente
as coisas. Dizia que o gomil (jarro de
boca estreita, próprio para jogar água nas mãos) das asas douradas era o
jarro que servira no baptismo do rei Afonso Henriques e que o bordão que a
Virgem leva nas procissões fora enviado por Santa Helena a S. Torcato, bispo de
Citânia. Guilherme Nogueira, sem desfazer na ilustração arqueológica do
curtidor, explicou também a proveniência dos seis castiçais lavrados feitos com
a prata de onze anjos encontrados no espólio dos Castelhanos em Aljubarrota. Uma
pessoa do grupo ouvia a explicação do ourives com a maior atenção. Era Teresa
de Jesus, a filha do curtidor Joaquim Pereira. Esta menina era filha única,
bonita, muito recolhida, e confessada de um franciscano tão bem intencionado
que prometia fazer dela uma santa com a ajuda de Deus. E era de esperar. Teresa
ia nos vinte anos e tinha o coração inocente dos dez. Via passarem na Rua dos
Fomos, ora um ora outro rapaz de famílias ilustres ou abastadas, com os olhos
fitos nos rótulos das suas janelas. Via-os, através da cerca de pau, e assim
mesmo o pudor purpurejava-lhe as faces e uma espécie de medo dos homens
obrigava-a a recuar o esteirão da soleira da janela. A tímida criatura tinha
escrúpulos e perguntava à mãe se os homens a veriam da rua. Isto, na verdade,
era bonito numa menina de vinte anos; mas, se a crítica pode superintender no
foro íntimo de tão cândida alma, a mim parece-me que o escrúpulo é a chave que
abre a porta por onde a inocência há de escapar-se, mais tarde ou mais cedo. Se
houvesse virtudes perfeitas, essas desconheceriam os escrúpulos, que são por si
os prelúdios das imperfeições. O franciscano era menos casuísta que eu e talvez
menos entendido na fragilidade humana. Das inquietações de Teresa tirava ele
conclusões de extremada inocência: se ela tinha medo aos homens, era sinal de
graça infusa, era o instinto que farejava neles as tentações do amor, as
enormes diabruras que distraem o espírito da contemplação divina, abatendo-o às
materialidades da vida transitória.
O
curtidor era um cristão regular como todos os curtidores de boas contas e
consciência sã que tratam dos seus curtumes com o devido esmero; mas a ideia de
ter uma filha predestinada, como dizia o frade, não o entusiasmava. Como era
rico, e não tinha outra prole, queria que a sua Teresa, em vez de vestir santos
e acariciá-los com uma idolatria meigamente idiota, vestisse e acariciasse os
filhos. Em suma, Joaquim Pereira queria ter netos, queria sobreviver até os ter
eles, e continuar a surrar perpetuamente peles de boi mediante a sua
posteridade. O homem já pressentia uma das imortalidades que Pelletan idealizou
quarenta anos depois, a perpetuidade da raça. Portanto, quando Teresa de Jesus
andava a jejuar um jubileu, disse-lhe ele que era necessário tratar de outro
modo de vida; acrescentou que as beatices eram boas para quem não tinha que
fazer; e concluiu que aprendesse com a sua mãe a governar a casa, porque era
necessário saber tratar do marido e dos filhos, se Deus lhos desse; e que, enfim,
jubileus, vias-sacras e jejuns não serviam para o arranjo da família. Apesar de
não ser extremamente lírico este estilo de Joaquim Pereira, a filha, de pasmada
que ficou, parecia não o perceber; porém, alguma coisa entendeu, porque daí a
pouco perguntava ela à mãe: com quem é que o pai quererá casar-me? A pergunta
foi feita com bastante rubor e sobressalto. Respondeu-lhe a mãe que o não sabia
com certeza; mas que tinha ouvido falar no tio Manuel do Porto. Credo!, exclamou
Teresa. Vossemecê está a gozar comigo?» In Camilo Castelo Branco, A Viúva do
Enforcado, Editora Luso Livros (Uma nova forma de Ler), 1877, Wikipedia, ePub, 2006,
ISBN 978-972-103-488-4.
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