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Arredores
de Colónia. 1430
«(…)
Então, o oficial introduziu a ponta da lâmina naquela boca que teimava em
permanecer fechada. Ao mesmo tempo que procurava não ferir Koller, que puxava
com força paru abrir a mandíbula, tentou cortar a língua, pondo-se na ponta dos
pés, basculando o seu própriopeso sobre o joelho no estômago do pequeno, como
um barbeiro a arrancar um molar. Mas não podia. Quase sem fôlego, o rapaz não deixava
de se mexer, e escapava por instantes da prisão dos soldados. O sangue começou
a esguichar abundantemente. Os seus uivos de dor encheram o bosque. Mer…,
segurai-o. Com mais força!, gritou o oficial. Estamos a tentar, senhor, disse
Bawer, mas o cabrãozinho não para quieto. Pois tanto pior para ele. Levantou o
punhal e deixou-o cair sobre o rosto assustado. Passou rente à mão de Koller,
que se afastou mesmo a tempo. Um olhar de surpresa assomou aos olhos do soldado.
Agravou-se com o terrível grito do rapaz, inumano. Já não tinha capacidade para
emitir palavras, apenas sons abafados pelo gorgolejar do sangue que lhe entrava
pela garganta e que, se não o socorressem, em breve inundaria os pulmões. O
golpe, horrível, havia cortado rente os lábios do menino e ferido a língua e as
gengivas. Algum dente caído revelava o branco por entre a erva e a lama. Ainda
preso a um pedaço de carne viva, palpitava no solo como uma serpente
decapitada. Os soldados não conseguiam afastar a vista do espectáculo
sanguinário que se lhes apresentava. Não queriam olhar e, no entanto, não
podiam deixar de o fazer, silenciosos. Passai-me esse pau. Os soldados não
responderam, ausentes, atemorizados. Nenhum deles se mexeu. O oficial, entre
pragas, apanhou uma acha da fogueira e aproximou-a do rosto do rapaz, que,
ainda atado, permanecia inconsciente com a cabeça caída. Levantou-a,
agarrando-o pelo cabelo, e aproximou a tocha até a apertar contra a ferida. O
sangue deixou de imediato de esguichar, mas o cheiro a carne queimada gravou-se
na consciência dos presentes como um estalo de chicote.
Na
sua casa de Colónia, um homem dormitava a altas horas da madrugada, debruçado
sobre uma grossa mesa de madeira. Despertou-o a sua própria tosse. Ainda tinha
a pena numa mão, gotejando tinta sobre o papel. Ao abrir os olhos, o fogo quase
lhe lambia a cara. As chamas cobriam já a mesa e alguma tapeçaria das paredes e
estavam prestes a atingir as vigas. Desorientado, quis levantar-se e correr à
procura da mulher e da filha, mas alguma coisa o tolhia, como se não estivesse
completamente desperto ou como se o crepitar das chamas o houvesse hipnotizado.
Quando se libertou dessa sensação, levantou-se; o fumo, denso e pesado,
estreitou-se como uma mão sobre a sua garganta. Agachou-se e conseguiu chegar à
bacia. Com o gomil, lançou a pouca água que restava. Não teve qualquer efeito
sobre o fogo, que respondeu com raiva às intenções de ser apagado; o líquido
parecia o combustível que o alimentava. Apanhou um trapo molhado e tapou com
ele o nariz e a boca. Finalmente, conseguiu chegar ao primeiro degrau.
No
piso de cima, o fogo não se tinha assenhoreado do espaço, mas o fumo era ainda
mais consistente. Por entre a obscuridade, com o brilho do fogo a subir pelo
vazio das escadas, mal se podiam ver as mãos. Quase a tatear, abriu caminho
para a cama da filha. Estava vazia. Com o coração na garganta dirigiu-se ao
quarto de dormir principal. No catre, a mulher dormia ausente de tudo, enquanto
a filha, dominada por uma tosse agressiva, tentava despertá-la com sacudidelas
e gritos. A mamã não acorda!, bradava, assustada. A madeira estalava por toda a
parte. Se ninguém socorresse, a sua casa em breve haveria de tornar-se um monte
de cinzas. O homem sacudiu a mulher com as duas mãos. A princípio com delicadeza,
depois mais violentamente. Mexia-lhe a cara de um lado para o outro,
levantando-lhe o tronco e tentando pô-la em pé, mas ela não reagia. Um nó no
estômago provocou-lhe náuseas. Mami, por favor…, rogava a menina, agarrada à
mão da mãe. O marido aproximou o ouvido da boca dela. Um débil alento parecia emergir
do interior, concedendo um vislumbre de esperança. Tentou tranquilizar a filha.
Está só adormecida». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros
Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar
Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT