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Antes de falecer, continuou o padre Damián, como é costume nos navios de Sua Majestade,
dom José fez o testamento e ordenou a libertação da sua escrava Caridad. Aqui
tem a escritura de alforria que o escrivão da capitania outorgou. Caridad
Hidalgo, escrevera o escrivão tomando o apelido do amo falecido, também
conhecida como Cachita; escrava negra da cor do ébano, saudável e de forte constituição,
de cabelo preto encrespado e de, aproximadamente, vinte e cinco anos. O que
levas nesse saco?, perguntou o alcaide depois de ler os documentos que
certificavam a liberdade de Caridad. A mulher abriu a trouxa e mostrou-lha. Uma
velha manta e um casaco de baeta... Tudo o que possuía, a roupa que o amo lhe
dera nas últimas estações: o casaco, no Inverno anterior; a manta, dois
Invernos antes. Escondidos entre as peças de roupa levava vários charutos que
tinha conseguido racionar no barco depois de os roubar a Dom José. E se os
descobrem?, temeu. O alcaide fez menção de inspecionar a trouxa, mas ao ver as
roupas velhas torceu o nariz. Olha para mim, negra, exigiu. O tremor que
percorreu o corpo de Caridad tornou-se evidente para alguns dos que presenciavam
a cena. Nunca tinha olhado para um homem branco quando se lhe dirigia. Está
assustada, intercedeu o padre Damián. Eu disse para olhar para mim. Fá-lo, pediu-lhe
o capelão. Caridad levantou o rosto arredondado, de lábios grossos e carnudos, nariz
achatado e pequenos olhos castanhos que tentaram olhar para lá do alcaide, para
a cidade. O homem franziu o sobrolho e procurou em vão o olhar fugidio da
mulher. Próximo!, cedeu de repente, quebrando a tensão e provocando uma
avalanche de marinheiros.
O
padre Damián, com Caridad colada às suas costas, atravessou a Porta do Mar, uma
passagem flanqueada por duas torres com ameias, e embrenhou-se na cidade. Para
trás, no Trocadero, ficavam o La Reina,
o navio de duas pontes e com mais de setenta canhões, onde tinham navegado
desde Havana, e as seis embarcações mercantes, que ele escoltara, com os porões
repletos de produtos das Índias: açúcar, tabaco, cacau, gengibre,
salsaparrilha, anil, cochinilha, seda, pérolas, carapaças de tartaruga..., prata.
A viagem tinha sido um sucesso e Cádis recebera-os tocando os sinos. Espanha
encontrava-se em guerra com a Inglaterra; as Frotas das Índias, que até há alguns
anos atravessavam o oceano fortemente vigiadas por barcos da armada real,
tinham deixado de operar, e o comércio desenvolveu-se com os navios registados,
embarcações mercantes particulares que conseguiam uma autorização real para a
travessia. Por isso, a chegada das mercadorias e do tesouro, tão necessário
para os cofres da fazenda espanhola, despertara na cidade um ambiente festivo
que se vivia em todos os seus recantos.
Ao
chegar à rua do Juego de Pelota, deixando para trás a igreja de Nuestra Señora
del Pópulo e a Porta do Mar, o padre Damián afastou-se das hordas de
marinheiros, soldados e mercadores, e parou. Que Deus te acompanhe e te
proteja, Caridad, desejou-lhe virando-se para ela depois de largar o baú no
chão. A mulher não respondeu. Tinha o chapéu de palha enfiado até às orelhas e
o capelão foi incapaz de lhe ver os olhos, mas imaginou-os fixos no baú, ou nas
suas sandálias, ou... Tenho coisas para fazer, percebes? Tentou desculpar-se.
Procura algum trabalho. Esta é uma cidade muito rica. O padre Damián acompanhou
as suas palavras estendendo a mão direita e tocando levemente no antebraço de
Caridad; e foi ele quem baixou o olhar durante um segundo. Ao levantá-lo deparou-se
com os pequenos olhos castanhos de Caridad cravados nele, como nas noites de
travessia quando, após a morre do seu amo, se tinha responsabilizado pela
escrava e a escondera da marinhagem por ordem do capitão. O seu estômago começou
a dar voltas. Não lhe toquei, repetiu para consigo sem parar. Nunca lhe
tinha posto um dedo em cima, mas Caridad tinha-o observado com olhos
inexpressivos e... Ele não conseguira evitar masturbar-se por debaixo da roupa
diante da visão daquela fêmea esplendorosa». In Ildefonso Falcones, A Rainha
Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora,
Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia
Bertrand/JDACT