Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Mas espere um pouco..., antes de ir... Vi-o desaparecer numa cabina e reaparecer
pouco depois para atirar ao mar qualquer coisa que veio cair a meu lado com um ruído
doce: é uma rosa de Alexandria, disse, da cidade que oferece tudo aos seus amantes
menos e felicidade. Soltou uma risadinha irónica: ofereça-a à criança. Adeus,
Balthazar. Escreva-me..., se tiver ânimo para tanto! Aprisionado como uma aranha
entre a teia de luzes, e voltando-me para a esteira amarelada que ligava o navio
à praia invisível, acenei um adeus e Balthazar agitou a mão. Coloquei a preciosa
rosa entre os dentes e comecei a aproximar-me da praia, dando braçadas irregulares
e falando para mim próprio. E ali estava sobre a mesa, à luz do candeeiro, o grosso
manuscrito comentado de Justine, fora
este o título que eu lhe dera. Balthazar cobrira-o de notas quase ilegíveis, perguntas
e respostas escritas em tintas de cores diferentes, algumas mesmo
datilografadas. Agora parecia-me até de certa forma um símbolo da própria realidade
que tínhamos participado, um palimpsesto sobre o qual cada um de nós tinha deixado
os seus vestígios pessoais, camada sobre camada. Será necessário aprender a ver
com novos olhos, habituar-me às verdades que Balthazar acrescentou? É
impossível descrever com que emoção li as suas notas, algumas vezes tão
pormenorizadas, outras vezes tão desconcertantemente breves, como, por exemplo,
na lista que intitulou Falácias e falsas interpretações, onde afirma
friamente: número 4; que Justine o amava a si. Se ela amava alguém, esse alguém
era Pursewarden. Que significa isso? Ela via-se forçada a utilizá-lo como um espantalho
para proteger o amante contra os ciúmes do marido. Pursewarden, por sua vez, não
queria saber dela para nada, lógica suprema do amor.
E
a cidade ergue-se uma vez mais na minha mente contra a superfície plana e polida
do lago verde e os afloramentos de pedra mole que assinalam os limites do deserto.
A política do amor, as intrigas do desejo, o bem e o mal, a virtude e o capricho,
o amor e o crime, movem-se obscuramente nos recantos tenebrosos de Alexandria, nas
suas ruas e praças, nos seus bordéis e salões, movem-se como grandes migrações de
enguias na vasa das tramas e contratramas. Era quase dia quando me desprendi do
fascinante montão de folhas com os seus comentários sobre a minha verdadeira vida
(interior) e, como um ébrio, fui aos apalpões cair sobre a cama, a cabeça em
fogo, cheia de ecos da cidade, a única cidade do mundo onde as raças e os costumes
mais estranhos se casam e se misturam, onde se entrecruzam os destinos menos comuns.
Até adormecer pareceu-me ouvir a voz seca do meu amigo, perguntando: até que
ponto deseja saber a verdade... Que mais deseja saber? Desejo saber tudo para poder
libertar-me finalmente da cidade, respondi em sonhos. Quando se colhe uma flor,
a haste volta a endireitar-se. Mas isso não é verdade com as afecções do
coração, disse Clea certa vez a Balthazar. E assim, lentamente, relutantemente,
regressei ao ponto de partida, como um homem que no fim de uma terrível e inevitável
jornada descobre que percorreu todo o caminho a dormir. A verdade, disse-me uma
vez Balthazar assoando o nariz numas velhas peúgas de ténis, a verdade é o que
mais se contradiz com o decorrer do tempo. E Pursewarden noutra ocasião não
menos memorável: se as coisas fossem sempre o que parecem ser, como se encontraria
empobrecida a imaginação dos homens! Como me libertarei dessa prostituta entre as
cidades, mar, deserto, minarete, areia, mar? Não. Tenho de pôr o preto no
branco, friamente, até que todo o desejo e recordação se desvaneçam. Bem sei que
a chave que procuro se encontra dentro de mim.
Capodistria
costumava chamar-nos Le cénacle nesses
dias em que nos encontrávamos para o ritual de fazer a barba no salão ptolomaico
de Mnemjian, com os seus espelhos e palmeiras, as suas cortinas de missanga e a
deliciosa imitação da água tépida e toalhas limpas: aquilo tinha um ar comovedor
de embalsamamento de cadáveres! O corcunda de olho violeta oficiava em pessoa porque
éramos clientes importantes (faraós mortos no seu banho de carbonato de sódio,
cérebro e vísceras a remover purificar e restituir aos seus lugares). O barbeiro
muitas vezes não tinha tido sequer tempo de se barbear, tendo chegado a toda a pressa
do hospital onde acabava de escanhoar um morto. Encontrávamo-nos aqui nas
cadeiras acolchoadas, diante dos espelhos, por um breve instante, antes de nos dirigirmos
às nossas respectivas ocupações: Da Capo
para se encontrar com os seus corretores, Pombal para a sensaboria do consulado
francês (maldisposto, boca amarga, sensação de ter caminhado toda a noite de
cabeça para baixo), eu para a escola onde ensinava, Scobie para a repartição da
polícia, e assim por diante...» In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria,
1958, Balthazar, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom
Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT