Cortesia de wikipedia
A Enganosa Respiração da Manhã. Inês Lourenço
«(…) Na transição para o segundo momento,
é com Os Solistas que Inês Lourenço
estabelece um pacto entre poesia e música, deixando transparecer uma relação
fundada em laços de grande cumplicidade e espiritualidade, como podemos inferir
desde logo a partir dos títulos, convocadores de um universo umbilicalmente
ligado com a música – Os Solistas, Glenn Gould, Execução, onde pinta a sua relação com a cidade, o quotidiano, como
em Litania para um limoeiro urbano:
«Para mover o céu e os alicerces, partir
velhos caixilhos e cantarias, chega o
último
dos morados. Cumprido o tempo das
polpas douradas, o estio das crianças
ficará
ainda algum tempo nos retratos
sépia, com hidrângeas e bicicletas,
expulso
para sempre o cio dos gatos e o impudor
dos ramos nas florações precoces».
Mas, se esta relação com a cidade, o
quotidiano vinha já sendo esboçada desde o seu primeiro momento, com Cicatriz 100%, é agora num terceiro
momento, com Teoria da Imunidade e Um
Quarto com Cidades ao Fundo, este último antologia de poesia reunida, que a
poesia de Inês Lourenço ganha contornos mais nítidos e encontra na cidade o Corpus do quotidiano e da realidade que
pretende fotografar, onde o comum da vida não é mais do que o sopro da
vitalidade, da temporalidade. Destes três momentos ressalta, segundo Isabel
Allegro Magalhães, um universo de sensações que são o lugar de
arrebatamento, com o desejo e a imaginação a convocá-las, uma epistemologia dos
sentidos, que constrói o erotismo e a sensualidade na relação com os seres, os
acontecimentos, a corporeidade da existência. No seio dessa fixação com o
comum da vida, onde são fotografados pequenos nadas, constantes do presente ou
da decantação na memória, o ritmo da cidade é ouvido como um sopro, ritmo
da circularidade bio-cultural feminina. Desse sopro purificador, veículo de
vida e de regenerescência esboça-se A
Enganosa Respiração da Manhã, livro feito de uma enganosa simplicidade,
onde no dizer de Valter Hugo Mãe reina a aparente facilidade, em que o mais
que se diz está na subtileza como se lida com conceitos e referências de cariz
erudito; onde a expiração e inspiração simbolizam a produção e a reabsorção
do universo, num tempo em que a manhã é simultaneamente pureza e promessa, sem
qualquer mácula de perversão.A Enganosa
Respiração da Manhã
é, pois, o reflexo de uma voz que num percurso de vinte anos se foi delineando,
num progressivo e contínuo amadurecimento, assente simultaneamente numa poética
da sabedoria e da emoção concebida pela razão. Desde sempre, e segundo Valter
Hugo Mãe, que a escrita desta autora se faz desse estar acima parecendo
levar o chão nos pés, ou vir ao chão suportando o céu nas mãos. É do
encontro com a cidade, o espaço, com o quotidiano e a circunstância que a sua
poesia espelha temporalidade, encanta incautos:
Poesia Toda
«Abro e folheio
o grosso volume da última
Poesia Toda, a encantar
incautos, a palavra toda
enche-nos a boca, pronuncia-se
voraz e fatalmente, como
quem anseia possuir o ar».
Mais do que uma recolha de contida e
rigorosa escrita, esta obra, marcada por uma alternância entre poemas
curtos e longos, reflecte toda uma lógica assente numa sequencialidade orgânica
e vincadamente serial, isto é, compõe-se de poemas claramente entrelaçados,
numa límpida construção que prende e envolve de forma poderosa o leitor numa
visão que se quer articulada. Inês Lourenço é, desde logo, criadora de
ponderado verso, como verso calibrado por metrónomo, cortado por mão segura.
Como uma faca. Sem paradas inúteis. Vertiginosamente, em que tudo é dito de
forma lapidar e cristalina:
Ephebo
«Sim à harmoniosa proporção,
à linha do pescoço na teia
esvoaçante dos cabelos, ao dorso
flexível, no ímpeto animal dos passos.
Sim ao desafio fascinado dos olhos,
na incerteza nocturna do horizonte».
Oscilando entre uma escrita marcada por um
universo feminino, sem ser feminista, e uma apurada sensibilidade do mundo e da
grande cultura, os seus textos são o reflexo da condição feminina, em clara articulação
com os excelentes pintores, músicos». In Cidália Dinis, Corpo Reflectido, Trabalho
apresentado no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa Contemporânea, do
Modernismo ao Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e
Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia.
Cortesia de RFLPorto/JDACT