Cortesia
de wikipedia e jdact
«Século XXI: maior tolerância e quebra de tabus são
a marca da primeira década. Bancas de jornais exibem mulheres frutas de
todos os tamanhos. Nas propagandas, casais seminus lambem os beiços e trocam
olhares açucarados. Nas novelas de televisão, em horário nobre, nenhum
personagem hesita em ractificar as suas preferências sexuais, em expô-las e em
expor-se. Na frente das câmaras, segredos pessoais são revelados sem constrangimentos.
Práticas antes marginalizadas estão nas telas. A internet abriu um universo
de possibilidades para o sexo. Da pedófilia à prostituição, tudo se encontra no
mercado virtual. Nos sítios, ricos e famosos falam abertamente
da sua vida particular. A privacidade entrou na rede social. Todo o mundo sabe
onde está todo o mundo, o que faz, com quem ficou ou dormiu. O paradeiro
de cada indivíduo é mostrado no Twitter, onde também aparecem as
primeiras referências ao sexting
(contração de sex e testing): prática de divulgação de conteúdos eróticos através de telefones
móveis. Muitos iniciam relacionamentos por meio das redes sociais, como Facebook
ou Orkut. Nelas começam os contactos, namoram virtualmente, e um número
crescente desses relacionamentos virtuais acaba no encontro físico das partes,
na igreja. O costume iniciou-se através das mensagens de texto SMS, mas,
com o avanço tecnológico, incluiu-se o envio de fotografias e de vídeos,
inclusive pornográficos. Ao mesmo tempo, a gravidez na adolescência aumentou.
Segundo pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o
número de casamentos caiu. Além disso, aumentou a quantidade de mulheres mais
velhas que se unem a homens mais jovens e elas procriam mais tarde, também. Se
a ideia de interioridade dava consistência à vida dos indivíduos no passado,
hoje, vivemos apenas o instantâneo. Em toda a parte, maior dose de
superexposição é possível por meio das redes e da comunicação social, e o
exibicionismo é uma das motivações para o seu uso. Expõe-se o ego, sem
meios-termos. Habitamos uma sociedade narcisista e confessional. Como mudamos
através dos tempos! A atenção que damos ao corpo, à nudez e ao sexo é cada vez
maior. Outrora era diferente, homens e mulheres tiveram que se dobrar às
chamadas boas maneiras. Andar nu, fazer sexo, defecar ou urinar
publicamente eram hábitos, ainda presentes em várias culturas ou grupos, que
foram lentamente banidos do nosso convívio. A educação do corpo trilhou sendas
variadas e obrigou o cumprimento de fórmulas de contenção, contrariando o
desejo e os apelos da natureza. Antes, malcheirosos e sujos; hoje, perfumados.
Ontem, marcados por cicatrizes. Actualmente, cauterizados. No passado, castos e
cobertos. Agora, desnudos e exibidos. Evolução? Não... Um longo processo de
transformações ao sabor de vários dados: técnicos, económicos e educacionais.
Este livro é uma exploração histórica da sensibilidade em relação a alguns componentes
de nossa vida íntima, que sofreram tremendas alterações. Para sintetizar quinhentos
anos de história, a autora recorreu a muitas de suas pesquisas, algumas já conhecidas
na Academia. As relações com a intimidade reflectem como os processos civilizacionais
modelaram gradualmente as sensações corporais, acentuando o seu refinamento,
desenrolando as suas subtilezas e proibindo o que não parecia decente. A
história que vamos contar inscreve-se nesse quadro. É aquela do polimento das
condutas e do crescimento do espaço privado e da auto-repressão. Do peso
progressivo da cultura no mundo das sensações imediatas, do prazer e do sexo.
Do cuidado de si e do trabalho permanente para definir as fronteiras entre o
íntimo e o social. De como esse complexo mecanismo migrou do Velho para o Novo Mundo,
atravessando séculos. E de como, hoje, a relação entre os sexos, na intimidade
ou fora dela, está em plena transformação. Resta saber aonde ela nos levará...
O
corpo. A igreja. O pecado
Podemos
olhar pelo buraco da fechadura para ver como nossos antepassados se relacionavam?!
De fechaduras, não! Elas custavam caro e o Brasil, na época da colonização, era
pobre. Podemos, sim, enxergar através das frestas dos muros, das rachaduras das
portas. Por ali se via que a noção de privacidade estava sendo construída,
estava em gestação. E construída em meio a um ambiente de extrema precariedade
e instabilidade. Em terras brasileiras, colonos tiveram que lutar, durante
quase três séculos, contra o provisório: o material, o físico, o político e o
económico. Viver em colónias, como se dizia então, era o que faziam.
Sobreviviam... E sobreviviam sob o signo do desconforto e da pobreza. Habitavam
casas de meias paredes cobertas de telhas ou sapé, com divisão interna que
pouco ensejava a intimidade. Nelas faltavam móveis que oferecessem algum
conforto, ou boa iluminação, devido à falta de vidros. Instaladas em vilarejos
sem arruamento, ali os animais domésticos pastavam à solta e havia lixo em toda
a parte. A água, esse bem mais precioso em nossos dias, só aquela de rios e
poços ou a vendida em lombo de burro ou de escravos. Privacidade, portanto,
zero». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na
história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011,
ISBN 978-857-665-608-1.
Cortesia
de EPlaneta/JDACT