Cortesia
de wikipedia
«(…)
Por cima destas vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro
anjos, sendo dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam,
não assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa taça,
até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do Crucificado.
Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino
fatal e outros muitos o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos
numa cruz, filho de José e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o
futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os mais nunca passarão de
crucificados menores. É ele, finalmente, este para quem apenas olham José de
Arimateia e Maria Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda
agora louvou o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há
nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem
e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro.
Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol
e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e,
cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo
quando não sangram para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que
sejam reis em suas próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés,
como o têm os ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos
pregadas no madeiro se não fosse restar-lhe ainda alguma vida, a bastante para
o manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a
vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito.
Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura
fenda do chão, ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de
homem, está um crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que
nos importa, porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma
palavra o mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de
escrever crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui
pôs estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e macabro
aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem
em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio
crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e
agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos
olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no
mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se,
virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana
na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver
daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um
dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou
escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi
ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos
para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica
até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três
condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de
que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a
única história possível.
A
noite ainda tem muito para durar. A candeia de azeite, dependurada de um prego
ao lado da porta, está acesa, mas a chama, como uma pequena amêndoa luminosa
pairando, mal consegue, trémula, instável, suster a massa escura que a rodeia e
enche de cima a baixo a casa, até aos últimos recantos, lá onde as trevas, de
tão espessas, parecem ter-se tornado sólidas. José acordou em sobressalto, como
se alguém, bruscamente, o tivesse sacudido pelo ombro, mas teria sido ilusão de
um sonho logo desvanecido, que nesta casa só ele vive, e a mulher, que não se
mexeu, e dorme. Não é seu costume despertar assim a meio da noite, em geral não
acorda antes de a larga frincha da porta começar a emergir do escuro, cinzenta
e fria. Inúmeras vezes pensara que deveria tapá-la, nada mais fácil para um
carpinteiro, ajustar e pregar uma simples régua de madeira que sobrasse duma
obra, porém, a tal ponto se tinha habituado a encontrar na sua frente, mal
abria os olhos, aquela vara vertical de luz, anunciadora do dia, que acabara
por imaginar, sem ligar ao absurdo da ideia, que, faltando ela, poderia não ser
capaz de sair das trevas do sono, as do seu corpo e as do mundo». In
José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho (o Campo da
Palavra), Lisboa, 1991, ISBN 972-210-524-8.
Cortesia
de Caminho/JDACT