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Uma Viúva Apaixonada
«(…) Como a corte se transferisse do Barreiro para Almeirim, logo dona
Leonor, talvez conn excessiva precipitação, a quis seguir, como se não pudesse
estar um só minuto longe do bem-amado. Esta perseguição assumia foros de
escândalo. E Cristóvão Barroso, o torvo embaixador castelhano, nãc podendo
conter por mais tempo a sua indignação e esquecendo o respeito que devia a quem
lhe era herarquicamente superior, agravou esse escândalo com uma intervenção
abrupta. Anteriormente, já ele levara a sua ousadia, intrometendo-se na
política portuguesa, até o ponto de manifestar publicamente a sua oposição às
mensagens do município de Lisboa que solicitavarn o casamento do monarca com a
rainha viúva. Nessa viagem para Almeirim, dona Leonor fazia-se acompanhar da
infanta dona Isabel e de Jaime, duque de Bragança. Pois, foi mesmo na presença
destas altas personagens que o insolente Cristóvão Barroso se dirigiu à rainha,
proibindo-a, em nome de seu amo, de ir mais além, quando o séquito atingiu a
povoação de Muge. Sentiu-se dona Leonor tão vexada que, embora interrompendo a
sua viagem como lhe ordenavam, formulou a seu irmão uma indignada queixa contra
o seu representante, estranhando que este se atrevesse a ditar tão estranha
proibição em nome do imperador. Carlos V mandou chamar Cristóvão Barroso e
condenou-o às galés.
É muito difícil definir os sentimentos das pessoas, quando delas nos
separam quatro séculos. Só através dos seus actos e por intermédio dos
acontecimentos podemos sondar um pouco os caracteres. Se pelas atitudes da
rainha dona Leonor e de seu enteado João III não é possível duvidar-se de que,
após a morte de Manuel I, tivesse havido contacto amoroso entre eles, o mesmo
não sucede quanto à genuidade desse amor. Tudo indica que a viúva experimentava
uma séria paixão de mulher pelo homem que primitivamente lhe fora destinado
como noivo e que o império das circunstâncias arredara durante dois anos do seu
caminho, para de novo a viúvez lho oferecer livre de compromissos. Ela teria
sentido reanimar-se o antigo amor com mais pujança e, confiada na lealdade do
bem-amado, não hesitara em entregar-se-lhe antes de um casamento que lhe parecia
mais do que certo. Quantas amorosas, por esse mundo, têm caído na cilada de um
futuro matrimónio por confiarem inteiramente no galã que, depois de saciado, se
esquiva a recebê-las como esposas legítimas! É certo que João III contrariou a
presensão de Carlos V fazer regressar sua irtmã à corte castelhana. Mas pergunta-se:
se o seu empenho em tornar dona Leonor sua mulher fosse mais do que mero capricho
ditado pelo despeito de ver o imperador mostrar preferência em casá-la com outro
rei que não fosse ele, João, não teria impedido que a madrasta saísse de
Portugal, indo assim ao encontro dos mais ardentes desejos da sua amada?
O jovem monarca não chegou a esgotar todos os recursos de que os
verdadeiros apaixonados costumam lançar mão para transformarem em esposa a
mulher longamente desejada. No entanto, tinha à sua disposição, acima de tudo,
como trunfo mais valioso, a boa vontade de dona Leonor, e além disto, os bons
argumentos de que esta não devia abandonar uma filha de pouco mais de dois anos
de idade, e de que esta criança, a infanta dona Maria, por ser simultâneamente
filha do falecido rei Manuel I, não podia sair da corte portuguesa, e ainda de
que o povo, a Nação, suplicava que ele se casasse com a rainha viúva. Pois,
todas estas razões tão poderosas, que Carlos V poderia discutir, mas ainda não
era bastante forte para aniquilar pela força, usou-as João III tão frouxamente,
com um entusiasmo tão reduzido para um genuíno enamorado, que dona Leonor
acabou por se enfastiar e, desiludida daquele a quem dera tudo, incluindo a sua
reputação de mulher, apressou o seu regresso a Castela, que se verificou em
Maio de 1523, apenas cerca de ano e meio depois de enviuvar. O mais grave,
porém, era que ainda muito antes de dona Leonor se rerirar, já João III dava
mostras de uma leviandade pouco simpática e ainda menos abanatória do seu
carácter. O seu panegirista frei Luís Sousa dá-nos nesta frase uma ideia do seu
desrespeito pela mulher que a assiduidade das suas visitas tão mal colocara publicamente
e da falta daquela compostura que ele próprio devia observar como monarca: dois
anos havia que o poder e a liberdade real junta com o fervor da mocidade trazia
el-rei distraído com mulheres de que houve filhos, vício da fraqueza humana a que
os moços, por muito prudentes que sejam, sabem mal resistir…» In
Mário Domingues, D. João III, o Homem e a Sua Época, Evocação Histórica,
Livraria Romano Torres, Lisboa, 1962.
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