terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Luz e Sombra no Oriente. Uma Viúva Apaixonada. Um Péssimo Galã. João III. Mário Domingues. «Pois, foi mesmo na presença destas altas personagens que o insolente Cristóvão Barroso se dirigiu à rainha, proibindo-a, em nome de seu amo, de ir mais além…»

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Uma Viúva Apaixonada
«(…) Como a corte se transferisse do Barreiro para Almeirim, logo dona Leonor, talvez conn excessiva precipitação, a quis seguir, como se não pudesse estar um só minuto longe do bem-amado. Esta perseguição assumia foros de escândalo. E Cristóvão Barroso, o torvo embaixador castelhano, nãc podendo conter por mais tempo a sua indignação e esquecendo o respeito que devia a quem lhe era herarquicamente superior, agravou esse escândalo com uma intervenção abrupta. Anteriormente, já ele levara a sua ousadia, intrometendo-se na política portuguesa, até o ponto de manifestar publicamente a sua oposição às mensagens do município de Lisboa que solicitavarn o casamento do monarca com a rainha viúva. Nessa viagem para Almeirim, dona Leonor fazia-se acompanhar da infanta dona Isabel e de Jaime, duque de Bragança. Pois, foi mesmo na presença destas altas personagens que o insolente Cristóvão Barroso se dirigiu à rainha, proibindo-a, em nome de seu amo, de ir mais além, quando o séquito atingiu a povoação de Muge. Sentiu-se dona Leonor tão vexada que, embora interrompendo a sua viagem como lhe ordenavam, formulou a seu irmão uma indignada queixa contra o seu representante, estranhando que este se atrevesse a ditar tão estranha proibição em nome do imperador. Carlos V mandou chamar Cristóvão Barroso e condenou-o às galés.
É muito difícil definir os sentimentos das pessoas, quando delas nos separam quatro séculos. Só através dos seus actos e por intermédio dos acontecimentos podemos sondar um pouco os caracteres. Se pelas atitudes da rainha dona Leonor e de seu enteado João III não é possível duvidar-se de que, após a morte de Manuel I, tivesse havido contacto amoroso entre eles, o mesmo não sucede quanto à genuidade desse amor. Tudo indica que a viúva experimentava uma séria paixão de mulher pelo homem que primitivamente lhe fora destinado como noivo e que o império das circunstâncias arredara durante dois anos do seu caminho, para de novo a viúvez lho oferecer livre de compromissos. Ela teria sentido reanimar-se o antigo amor com mais pujança e, confiada na lealdade do bem-amado, não hesitara em entregar-se-lhe antes de um casamento que lhe parecia mais do que certo. Quantas amorosas, por esse mundo, têm caído na cilada de um futuro matrimónio por confiarem inteiramente no galã que, depois de saciado, se esquiva a recebê-las como esposas legítimas! É certo que João III contrariou a presensão de Carlos V fazer regressar sua irtmã à corte castelhana. Mas pergunta-se: se o seu empenho em tornar dona Leonor sua mulher fosse mais do que mero capricho ditado pelo despeito de ver o imperador mostrar preferência em casá-la com outro rei que não fosse ele, João, não teria impedido que a madrasta saísse de Portugal, indo assim ao encontro dos mais ardentes desejos da sua amada?
O jovem monarca não chegou a esgotar todos os recursos de que os verdadeiros apaixonados costumam lançar mão para transformarem em esposa a mulher longamente desejada. No entanto, tinha à sua disposição, acima de tudo, como trunfo mais valioso, a boa vontade de dona Leonor, e além disto, os bons argumentos de que esta não devia abandonar uma filha de pouco mais de dois anos de idade, e de que esta criança, a infanta dona Maria, por ser simultâneamente filha do falecido rei Manuel I, não podia sair da corte portuguesa, e ainda de que o povo, a Nação, suplicava que ele se casasse com a rainha viúva. Pois, todas estas razões tão poderosas, que Carlos V poderia discutir, mas ainda não era bastante forte para aniquilar pela força, usou-as João III tão frouxamente, com um entusiasmo tão reduzido para um genuíno enamorado, que dona Leonor acabou por se enfastiar e, desiludida daquele a quem dera tudo, incluindo a sua reputação de mulher, apressou o seu regresso a Castela, que se verificou em Maio de 1523, apenas cerca de ano e meio depois de enviuvar. O mais grave, porém, era que ainda muito antes de dona Leonor se rerirar, já João III dava mostras de uma leviandade pouco simpática e ainda menos abanatória do seu carácter. O seu panegirista frei Luís Sousa dá-nos nesta frase uma ideia do seu desrespeito pela mulher que a assiduidade das suas visitas tão mal colocara publicamente e da falta daquela compostura que ele próprio devia observar como monarca: dois anos havia que o poder e a liberdade real junta com o fervor da mocidade trazia el-rei distraído com mulheres de que houve filhos, vício da fraqueza humana a que os moços, por muito prudentes que sejam, sabem mal resistir…» In Mário Domingues, D. João III, o Homem e a Sua Época, Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1962.

Cortesia de RTorres/JDACT