sexta-feira, 31 de março de 2017

31 com os Poetas. António Ferreira. «Pretidão de Amor, tão doce a figura, que a neve lhe jura que trocara a cor»


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… tenho sono talvez porque toquei onde sinto o animal que abandonei e o sono é uma lembrança que encontrei…



«Aquela nunca vista formosura,

aquela viva graça e doce riso,

humilde gravidade e alto aviso,

mais divina que humana real brandura.



Aquela alma inocente e sábia e pura

que entre nós cá fazia um paraíso,

ante os olhos a trago e lá a diviso

no céu triunfar da morte e sepultura.



Pois por quem choro, triste? Por quem chamo

sobre esta pedra dura a meus gemidos,

que nem me pode ouvir nem me responde?



Meus suspiros nos céus sejam ouvidos;

e enquanto a clara vista se me esconde,

seu despojo amarei, amei e amo».

António Ferreira (1528-1569), Soneto



… tenho sono talvez porque toquei onde sinto o animal que abandonei e o sono é uma lembrança que encontrei…»



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No 31. A Conspiração Colombo. Steve Berry. «Ele se questionara sobre a motivação deles. Isabel parecia sincera. Ela tinha uma alma aventureira. Mas o rei era outro assunto»

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Jamaica 1504
«(…) Ele sabia que esta seria sua última vez no Novo Mundo. Tinha 51 anos e conseguira reunir um número surpreendente de inimigos. Sua experiência no ano anterior era prova de que esta quarta viagem estava amaldiçoada desde o começo. Primeiro, explorara a costa do que passara a acreditar ser um continente, cujo litoral infinito se estendia de norte a sul até onde ele navegou. Após concluir essa patrulha, esperara desembarcar em Cuba ou Hispaniola, mas os seus navios corroídos por vermes só conseguiram chegar até à Jamaica, onde ele os ancorou e aguardou um resgate. Que não chegou. O governador de Hispaniola, um inimigo jurado, resolveu abandonar Colombo e os seus 113 homens à morte. Mas ela não chegou. Em vez disso, algumas almas corajosas remaram numa canoa até Hispaniola e trouxeram um navio. Sim, ele realmente tinha muitos inimigos. Eles negaram todos os direitos que Colombo um dia tivera segundo as Capitulações. Ele conseguira manter o seu status de nobre e o título de Almirante do Oceano, mas isso não significava nada. Os colonos de Hispaniola se revoltaram e o forçaram a assinar um acordo humilhante. Há quatro terríveis anos, ele foi levado de volta para a Espanha, acorrentado e ameaçado de ser julgado e preso. Mas o rei e a rainha lhe concederam um inesperado indulto e lhe deram fundos e permissão para a quarta viagem. Ele se questionara sobre a motivação deles. Isabel parecia sincera. Ela tinha uma alma aventureira. Mas o rei era outro assunto. Fernando nunca gostara dele, dizendo abertamente que a viagem a oeste lhe parecia uma estupidez. Claro, isso foi antes de Colombo ser bem-sucedido. Agora, Fernando só queria ouro e prata. Putos. Mentirosos. Todos eles. Acenou para que abaixassem as arcas. Os seus três homens ajudaram, pois eram pesadas. Chegamos, gritou ele em espanhol. Seus acompanhantes sabiam o que fazer. Espadas foram empunhadas e os nativos, rapidamente cortados em pedaços. Dois gemeram no chão, mas foram silenciados com floretes enfiados no peito. Essas mortes não significavam nada para Colombo; eles não eram dignos de respirar o mesmo ar que os europeus. Pequenos, de pele marrom, nus como no dia em que nasceram, não possuíam linguagem escrita nem crenças fervorosas. Moravam em aldeias no litoral e, pelo que percebera, apenas cultivavam algumas plantas. Eram liderados por um homem chamado cacique, com quem Colombo fizera amizade durante o ano em que ficara abandonado. Foi o cacique quem lhe ofereceu seis homens ontem, quando ele ancorou para a sua jornada final no litoral norte. Uma caminhada simples até as montanhas, dissera ele para o cacique. Só alguns dias. Ele conhecia o suficiente da língua aruaque para fazer o pedido. O cacique demonstrou que tinha entendido e concordou, apontando para seis homens que carregariam as arcas. Ele fizera uma reverência em agradecimento e oferecera vários guizos como presentes. Graças a Deus trouxera muitos. Na Europa, eles eram amarrados às garras de pássaros treinados. Sem valor. Aqui, eram uma moeda valiosa. O cacique aceitou o pagamento e fez uma reverência também. Já negociara com esse líder outras duas vezes. Tinham criado uma amizade. Um acordo do qual ele se beneficiava totalmente. Quando visitaram a ilha pela primeira vez em 1494, fazendo uma paragem de um dia para vedar vazamentos no seu barco e repor o estoque de água, seus homens notaram pequenas partículas de ouro nas águas claras dos rios. Ao questionar o cacique, Colombo ficou sabendo de um lugar em que os grãos de ouro eram ainda maiores, alguns com o tamanho de feijões. O lugar onde ele estava agora. Mas, diferente da monarquia espanhola fraudulenta, o ouro não o interessava. Seu objectivo era maior». In Steve Berry, A Conspiração Colombo, 2012, Maria B. Medina, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-380-3.

Cortesia de ERecord/JDACT

A Conquista de Ceuta no 31. 1415. João Monteiro e António Costa. « João I ficou impressionado, agradeceu e recompensou os seus emissários, posto o que mandou destruir o modelo, para não comprometer o sigilo da operação»

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«(…) Tudo somado, valia a pena arriscar o empreendimento, tanto mais que os infantes o desejavam ardentemente e muita outra fidalguia jovem ameaçava colocar-se ao serviço de Castela para alcançar a glória que só os feitos de armas conferem aos mais nobres. Não me canso de imaginar a alegria dos infantes com esta decisão, mas também a responsabilidade que sentiram de a planificar de uma forma cuidadosa. De resto, João I era um guerreiro muitíssimo experiente e astuto e, logo no Verão de 1412, tratou de organizar um estratagema que lhe permitiu recolher informações preciosas sobre a cidade a assaltar. Naquele dia 24 de Julho de 1415, enquanto ultimavam os preparativos da frota no Restelo, contou-me João Gomes Silva como o capitão-mor Afonso Furtado e o prior do Hospital recordavam orgulhosamente a missão de espionagem que tinham levado a cabo: simularam que iam à Sicília propor à rainha viúva, dona Branca, que em vez de se casar com o infante Duarte, herdeiro do trono de Portugal, contraísse antes matrimónio com o infante Pedro; a corre lusitana sabia que o mais certo seria a proposta ser recusada, mas isso de nada importava, pois o verdadeiro objectivo da missão era aportar, à ida e à vinda, em Ceuta e inspeccionar as defesas da cidade, os locais mais adequados para a frota desembarcar e todos os detalhes relevantes! Os espiões assim fizeram, sem serem notados nem de dia nem de noite, e logo que regressaram fecharam-se com o monarca e com os infantes mais velhos num dos aposentos reais e organizaram uma sessão inesquecível: com duas cargas de areia, um novelo de fita, meio alqueire de favas e uma escudela, improvisaram uma réplica da cidade, desenhando as torres, a muralha, o terreno e os seus declives, e tudo o mais que interessava saber a quem preparava um ataque em força à rica cidade de Ceuta.
João I ficou impressionado, agradeceu e recompensou os seus emissários, posto o que mandou destruir o modelo, para não comprometer o sigilo da operação. A seguir, tratou de garantir a aprovação da rainha dona Filipa (que os infantes convenceram sem dificuldade, salvo no que tocava à participação do próprio marido na campanha) e do velho condestável Nuno Álvares Pereira, um homem de enorme autoridade e que discretamente abordaram, com sucesso, durante uma montaria (desenfadamento que el-rei prezava acima de todos os outros) organizada no Alentejo, um hábil estratagema utilizado para prolongar o segredo em torno do projecto.
Com a bênção do rei, da rainha e do condestável, os infantes podiam agora pôr os preparativos em marcha: nas taracenas (os estaleiros), averiguaram quantos navios havia e como estavam reparados; mandaram cortar madeira para refazimento de algumas galés e fustas e trataram de aparelhar carpinteiros e calafates que colaborassem nisto; deram ordens para que se recolhesse quanto cobre e prata havia no reino e para que se mandasse trazer mais de fora, através de um bom acordo com os mercadores, com o que em breve se reuniu bastante quantidade de metal. Contou-me João Afonso, o vedor da fazenda, que, aflito com a situação das finanças régias, sugerira aos infantes um ataque a Ceuta, como ele próprio tratou logo de prover as rendas da cidade e como falou com o tesoureiro da moeda, Rui Pires Alandroal, embora sem lhe revelar o segredo da expedição; assim, logo ficaram a postos os fornos da moeda e esta pôde começar a ser cunhada, de dia e de noite. Quanto ao almirante, descendente dos famosos Pessanha de Génova que haviam vindo para Portugal ao tempo d'el-rei Dinis I, foi avisado para prover todos os mareantes, cada qual em seu estado.
A par de todo o negócio teve de ficar também o escrivão da puridade (primeiro ministro) do rei, Gonçalo Lourenço Gomide, que mandou fazer cartas em nome do monarca para o escrivão dos dinheiros (os maravedis) e para todos os oficiais, coudéis e anadéis (com autoridade sobre os aquantiados das cidades, vilas e aldeias do reino e sobre os besteiros do conto), para que logo organizassem as suas revistas às tropas (os alardos); depois, enviariam a João I os cadernos deles, com indicações precisas sobre o número de homens disponíveis para a campanha, as suas idades e o equipamento de que dispunham para servir a Coroa». In João Gouveia Monteiro e António Martins Costa, 1415, A Conquista de Ceuta, Manuscrito, 2015, ISBN 978-989-881-804-1.

Cortesia de Manuscrito/JDACT

No 31. A Profecia de Istambul. Alberto S. Santos. «Mas só Simão, por entre caminhos indescortináveis a qualquer viajante, conseguia orientar a pequena comitiva, sem erro algum»

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O Pacto de Melchior. ... Cerca de 250 anos depois; Março de 1554
«(…) Foi ele quem me disse que sabia fazer pactos de sangue para a vida inteira, e para além dela... Ui, isso parece coisa de bruxo... Ainda podem prender-nos e torturar-nos!, comentara, com receio, Fernando del Pozo, pois dizia-se que, a partir dos catorze anos, a Inquisição (maldita) já torturava gente. Sempre lhes fora vedado assistir aos autos de fé, mas todos sabiam que se garroteavam e queimavam os hereges, os marranos, os renegados, bruxos e toda a sorte de gente que punha em causa a verdadeira fé de Cristo. E Fernando del Pozo temia, mais do que ninguém, a vergonha de poder ser associado a algo que ofendesse a Igreja cordovesa. Muito embora seu pai, o director do coro da Catedral, tivesse já morrido anos antes, estava aos cuidados do tio Martín Alonso, famoso clérigo pregador e cónego da cidade.
Acho que não... Ainda não entramos nos quinze!..., respondera Simão, para desanuviar, e todos se riram. Em passo de corrida, os três rapazes acercaram-se rapidamente do sopé da serra. Ao longe, viam-se as ruínas da cidade palatina que, em tempos idos, fora a sede do poder califal muçulmano na Península Ibérica, a Medina Zahara. Enquanto vencia o declive, Jaime viajou, novamente, para Rosa. Aquela rapariga despertara-1he sentimentos que a vida ainda não lhe havia feito compreender totalmente, mas que lhe provocavam formigueiros no corpo e compressões, principalmente no estômago. Recordou que abalaria, em breve, para uma prolongada estada em Orão, no Norte de África. Receou, outra vez, o seu jovem coração, os efeitos dessa separação.
Estamos quase a chegar à cabana do velho!, quebrou-lhe o português as cogitações, trazendo-o de volta à missão que prosseguiam e que tanto os animava.
O septuagenário homem, de rosto de casca de carvalho e cabelo tão branco como um plumoso cisne, moldando uma redonda e tostada coroa no tecto da cabeça, vivia nas imediações. Mas só Simão, por entre caminhos indescortináveis a qualquer viajante, conseguia orientar a pequena comitiva, sem erro algum. Decorara-os, interiormente, nas duas vezes que, com a tia, visitara a decrépita cabana. Melchior encontrava-se sentado sobre as pernas, com as mãos nos joelhos, fitando o local de onde surgiram os três rapazes. Vestia uma túnica branca desbotada, cingida por uma corda à cintura. Apesar de o seu mundo de silêncio lhe ter revelado que gente se aproximava, pareceu perturbar-se quando enxergou três ofegantes adolescentes a subir a ladeira. O olhar cirúrgico, guardião do baú da sabedoria, enchido, ao longo da vida, por inúmeras viagens, íntimas reflexões sobre a condição humana e discretas observações dos comportamentos de quem foi passando por si, rapidamente farejou o português. Lembrava-se dele, de o achar esperto e curioso, e de o ter levado a visitar uma caverna escondida, onde guardava, secretamente, alguns dos seus pertences, nomeadamente, livros raros.
Jaime deteve a marcha, fixado no estranho ser que os mirava através de duas lâmpadas negras e oblíquas, despontando sob farfalhudas sobrancelhas encanecidas. Tu és o português!, reagiu, arremessando o longo e esguio indicador de unha comprida na direcção de Simão. As longas neves que lhe escorriam da cabeça e a pose seráfica pintada pelo olhar, ao mesmo tempo sereno e penetrante, conferiam ao ancião a personificação da sabedoria e da bondade, juntas num corpo curtido pelo tempo e pelos misteriosos conhecimentos que adquiriu em viagens e secretas leituras.
Sou sim, Melchior! E estes são os meus amigos Jaime e Fernando, com quem quero fazer um pacto de sangue, retorquiu o moço, acenando a cabeça e apontando os amigos, ainda impressionado pela força e magnetismo que emanavam do enigmático decano. O homem fitou-os, longamente, com um ar grave e sério. O prolongado silêncio tornou-se intimidatório, até que os jovens se entreolharam, procurando encontrar uma solução para o impasse. O provecto anfitrião levantou-se com agilidade, estudou os três, por uma última vez, e, quebrando o gelo, abriu um largo sorriso, assumindo um tom cordial: entrem! São meus convidados!» In Alberto S. Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.

Cortesia de PEditora/JDACT

No 31. A Paixão segundo Constança H. Maria Teresa Horta. «Talvez um dia me internem. Uma mulher para ser amada tem de ser amável, diz-se. Alguma vez serei eu amável? Viável... Viável?

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«(…) Que loucura? Que excesso? Tenho a sensação de que me impelem, me empurram até ao fim do caminho que tenho atrás das minhas costas. Ao fim-fundo desse caminho encontra-se o abismo. O suicídio? Há uns séculos queimavam-nos..., depois passaram a internar-nos. Foi o que fizeram à minha mãe. Provavelmente será o que me farão um dia a mim. Caminho, pois, para a minha própria execução? Talvez morra do meu próprio excesso. E do ódio, que se agacha no meu peito desde criança. Só assim consegui sobreviver. Os animais foram, então, o único calor, o único afecto. Cheiro ainda a palha quente da urina dos estábulos dos cavalos. O ligeiríssimo vapor que se escapava, quase noite, dos seus corpos, das suas narinas, da sua boca enquanto mastigavam. Muitas vezes dormia; adormecia, entorpecida, a tentar esquecer o mundo que lá fora me esperava.
Foi quando quis deixar de me lavar. Lambia a cal das paredes e dos muros e pela tarde fora mastigava terra que engolia quando ficava uma pasta, misturada a terra com a saliva, a fazer arder os olhos de tão amarga. Talvez mora do meu próprio excesso. Andava pela casa de mãos atrás das costas para não fazer tombar nada, para me portar bem, com o fito de me amarem. Mas isso foi antes. Antes de a mãe ter saído de casa e de a avó ter morrido quase logo depois, a fazerem as duas, este buraco na minha vida.
Penteava os cabelos da minha irmã, a fingir que eram os meus: enriçados, endurecidos, que não deixava tocar. Um dia disseram-me: a tua mãe deixou-te por um homem, deixou o teu pai por outro homem, é uma pu… a tua mãe. E eu caí para o chão, a gritar.
As mãos a taparem os ouvidos, tentando não ouvir os gritos que soltava, rebolando-me pelo chão encerado da sala. O pai veio à correr levantar-me do chão e levou-me nos braços para o quarto, mas eu não me lembro de nada. De mais nada. Talvez um dia me internem. Uma mulher para ser amada tem de ser amável, diz-se. Alguma vez serei eu amável? Viável... Viável? Schelling escreveu: como avaliar a viabilidade? Por que razão ser viável é um bem? Por que razão durar é melhor que arder? Da última sessão da análise, saí com este gosto a cinza na boca... Sei que é difícil o trato com os meus medos, os meus fantasmas, as minhas obsessões. Com o meu imaginário?
Sim, olhei a raiva nos olhos da minha mãe. Quantas vezes? Nem ela se lembra quantas... Tantas! A ultima vez que os enfermeiros a levaram, tinha uma camisa-de-forças vestida, os braços cruzados sobre os seios, achatados pelo pano repuxado por atilhos nas costas. Tinham-lhe dado uma injecção, mas, quando a levaram, gritou. Olhou para mim, ali parada, as tranças escorridas sobre as alças largas do bibe, e gritou. Será isto olhar a loucura nos próprios olhos? Os dela pareciam ainda mais azuis quando me fitou, fixamente. O olhar fixo e branco, como se branqueasse os afectos, o fogo que pertencia a nós duas; que eu levara até ela através do meu nascimento. Um mal congénito? Talvez um dia me internem». In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT

O Número de Deus no 31. José Corral. «Vamos, Teresa, entra para casa. Está muito frio, ordenou-lhe a criada. Não; quero ficar aqui a brincar com a neve»

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O Algarismo e o Número
«(…) O primeiro nevão de Inverno cobriu Burgos com um manto branco de mais de um palmo de altura. A pequena Teresa saiu para a rua, excitada pelo aviso da criada. Ao abrir a porta, um brilho de luminosa claridade inundou-lhe os olhos. O Sol brilhava, amarelo, no meio de um céu límpido de um azul intenso e puro, enquanto a neve branquíssima reflectia os seus raios com tanta força e fulgor que feria a vista. Entre o azul-celeste e o branco da neve, as casas ocres da cidade pareciam como que desenhadas pela mão especializada de um delicado miniaturista.
Teresa tinha agarrado entre as suas mãozinhas de criança um bom punhado de neve quando ouviu o som inconfundível da trombeta do saião (na Idade Média, o funcionário da justiça que fazia as citações e executava os embargos) a anunciar um pregão. À esquina da rua, o pregoeiro avisou aos gritos que os reis de Espanha e de Leão Fernando e Afonso, tinham acordado uma trégua que duraria até à Páscoa da Primavera seguinte. A criada, que saíra atrás de Teresa, suspirou aliviada. Graças à Virgem e ao seu filho Jesus Cristo, o nosso rei Fernando assinou a paz com o pai, o rei de Leão. Este Inverno será menos cruel. Dona Berenguela conseguira. Após várias semanas de intensas conversações, a mãe do rei Fernando obtivera uma trégua do seu antigo marido, o rei Afonso de Leão. Em troca tivera de ceder ao leonês a possessão de várias praças fronteiriças, garantira-lhe que não agiria contra as propriedades e direitos dos Lara e entregara-lhe uma quantia considerável em dinheiro. Mas, em contrapartida, assegurara a tranquilidade e a paz necessárias para sentar definitivamente o seu filho Fernando no trono de Castela e ganhar tempo para atrair alguns grandes do reino, ainda receosos de que fosse o filho do rei de Leão, nascido de um casamento anulado pela Igreja, a reinar em Castela.
O reino de Castela, após a euforia que tudo contagiou pela decisiva vitória conseguida em 1212 na Batalha das Navas de Tolosa contra o império almóada, atravessava momentos muito delicados devido à ambição de Afonso de Leão. Aquela vitória, conseguida graças à coligação de castelhanos, aragoneses e navarros, surpreendera o rei de Leão na comarca de Babia, para onde se costumava retirar para praticar a caça com falcão. Cinco anos depois da vitória, ainda havia nobres leoneses que recriminavam o seu monarca por não ter estado presente com as suas tropas naquela crucial batalha, cuja campanha prévia fora predicada pelo papa Inocêncio III como uma cruzada.
Vamos, Teresa, entra para casa. Está muito frio, ordenou-lhe a criada. Não; quero ficar aqui a brincar com a neve. Vamos para dentro, o teu pai vai ficar muito zangado se te constipares e adoeceres. Não tenho frio. Vamos, para dentro, já disse. Teresa desatou a correr pela rua cheia de neve perseguida pela criada. A filha do mestre Arnal Rendol ria e tornava a rir ante a lentidão da criada, incapaz de a alcançar por entre a neve. Umas mãos poderosas agarraram Teresa e levantaram-na no ar». In José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.

Cortesia de PEditora/JDACT

quinta-feira, 30 de março de 2017

Um Gato de Rua Chamado Bob. James Bowen. «Meu coração afundou-se um pouco quando desci no dia seguinte e vi que o gato havia voltado àquela mesma posição»

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«(…) Eu mal me havia mudado para aquele lugar e ainda estava tentando arrumar meu apartamento. E se ele pertencesse à pessoa que vivia naquele apartamento? Ela não encararia lá muito bem que alguém levasse embora o seu animal de estimação, não é? Além disso, a última coisa de que eu precisava agora era da responsabilidade extra de um gato. Eu era um músico fracassado e um viciado em drogas em recuperação, vivendo uma existência precária em uma moradia subvencionada. Assumir a responsabilidade por minha própria vida já era algo bastante difícil. Na manhã seguinte, sexta-feira, fui até ao rés-do-chão e encontrei o laranjinha ainda sentado no mesmo lugar. Era como se ele se não tivesse movido daquele lugar nas últimas 12 horas ou mais. Mais uma vez, caí de joelhos e o acariciei. Mais uma vez, ficou óbvio que ele adorava aquilo. Ele ronronava, apreciando a atenção que estava recebendo. Ainda não havia aprendido a confiar completamente em mim. Mas pude perceber que ele simpatizava comigo. À luz do dia, pude ver que se tratava de uma criatura maravilhosa. Ele tinha uma expressão realmente impressionante, com olhos penetrantes e incrivelmente verdes, embora, olhando mais de perto, fosse possível afirmar que ele estivera numa briga ou num acidente, porque havia arranhões na face e nas pernas. Tal como eu havia imaginado na noite anterior, a pelagem estava em péssimo estado. Estava muito rareada e encrespada, com pelo menos meia dúzia de regiões calvas, onde era possível ver a pele. Eu já estava me sentindo realmente preocupado com ele, mas, novamente, disse a mim mesmo que já tinha mais do que o suficiente com que me preocupar na simples tarefa de me manter na linha. Assim, relutantemente, saí para pegar o autocarro de Tottenham ao centro de Londres e Covent Garden, onde eu tentaria, uma vez mais, ganhar dinheiro com apresentações de rua. Quando voltei naquela noite, já era muito tarde, quase 22 horas. Imediatamente, dirigi-me para o corredor onde vira o laranjinha, mas não havia sinal dele. Parte de mim ficou decepcionada. Eu meio que já gostava dele. Mas, principalmente, senti-me aliviado. Achei que seu proprietário deveria ter permitido que ele entrasse ao voltar de onde quer que tenha estado.
Meu coração afundou-se um pouco quando desci no dia seguinte e vi que o gato havia voltado àquela mesma posição. Agora, ele estava um pouco mais fragilizado e desgrenhado do que antes. Parecia estar com frio e fome e tremia um pouco. Ainda aqui, então, disse, acariciando-o. Não parece tão bem hoje. Decidi que aquela situação havia perdurado o bastante. Então, bati na porta do apartamento. Senti que precisava dizer alguma coisa. Aquilo não era jeito de tratar um animal de estimação. Ele precisava de algo para comer e beber, e talvez até mesmo de cuidados médicos. Um homem apareceu à porta. Estava com a barba por fazer, vestindo camiseta e um par de calças esportivas, e parecia ter acabado de acordar, ainda que já estivéssemos no meio da tarde.
Desculpe incomodá-lo, companheiro. Este gato é seu?, perguntei a ele. Por um segundo, ele me fitou como se eu fosse um pouco louco. Que gato?, questionou, antes de olhar para baixo e ver o laranjinha enrolado como uma bola no capacho. Ah. Não, disse ele, ao mesmo tempo que encolheu os ombros, desinteressado. Ele não tem nada a ver comigo, companheiro. Ele está aqui há dias, retruquei, novamente provocando um olhar vago nele. Está? Deve ter sentido cheiro de comida ou algo assim. Bom, como eu disse, ele não tem nada a ver comigo. E então bateu a porta, fechando-a. Decidi-me imediatamente. Ok, companheiro, você vem comigo, disse, caçando em minha mochila a caixa de biscoitos que carregava especificamente para dar guloseimas aos gatos e cães que sempre se aproximavam de mim quando estava fazendo apresentações de rua». In James Bowen, Um Gato de Rua Chamado Bob, 2012, Editora Novo Conceito, cdd 636-70929, 2013, ISBN 978-858-163-152-3 ou ISBN 978-858-163-291-9.

Cortesia de ENConceito/JDACT

quarta-feira, 29 de março de 2017

Poesia. Irene Lisboa. «Amor, tão chão de Amor, que sensível és... Sensível e violento, apaixonado. Tão carregado de desejos!»

Cortesia de wikipedis e jdact

Meados de Maio. Chuvoso Maio!

«Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda

que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
E sempre assim!

Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...»
In Irene Lisboa, ‘Antologia Poética’



Amor

«Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!


Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?
In Irene Lisboa, ‘Antologia Poética’

Cortesia de wikipedia e jdact

Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV. Maria Ângela Beirante. «Estabelece que, durante o ano imediato à sua morte, realizem sufrágios temporários por sua alma»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Para aniversários na igreja de S. João, deixa uma vinha situada no caminho de Évora. Ao fundar uma albergaria, Maria Raimundo destina-lhe quatro herdamentos (da Amoreira, além Sorraia; da Cavaleira, na Várzea de Coruche; do Porto das Zebras e do Vale Bem Feito) e ainda uma courela no caminho de Évora. Além disso, alguns dos bens que deixava aos seus criados reverteriam, por morte deles, para a albergaria. Assim, o herdamento das Oliveiras, donde sairia o azeite para alumiar a sua lâmpada. Porém, quando a capela necessitasse de ser refeita de ornamentos, seria à custa dos bens da albergaria.
V: na ausência de descendentes, que a testadora não menciona, seriam os colaterais, que, à partida, deveriam ser contemplados no testamento. Curiosamente muitos dos parentes nomeados são excluídos, ou melhor, arredados da herança, com a quantia simbólica de 5 soldos cada um, o que significa que, entre o bem da família e o bem da sua alma, a testadora escolheu o segundo (casos de indiferença ou mesmo de certa hostilidade em relação aos parentes foram já evidenciados em alguns testamentos medievos; um testamento redigido em Coimbra no tempo da peste negra; uma estratégia de passagem para o além; o testamento de Beatriz Fernandes Calça Perra). Não esqueceu, porém, alguns parentes e clientes. É o caso das mulheres da sua família e de sua casa, suas criadas, como Clara e Catarina Raimundo, Clara e Margarida Cré a quem deixa alfaias domésticas, por vezes a título de enxoval, ou mesmo uma casa para morar. É ainda o caso de Maria Dias, freira de Sta. Clara de Santarém e de Pero Raimundo, criado e certamente familiar da testadora, a quem, passados 15 anos após a sua morte, o testamenteiro daria 100 libras que entretanto deveria trazer a ganho. Contempla ainda todos os afilhados e afilhadas que tinha na vila e, naturalmente, os seus testamenteiros.
Determina, finalmente, que os testamenteiros deverão prestar contas da administração da capela e da albergaria aos clérigos de S. João. Para tal, dispõe que, do aluguer de uma casa pequena contígua à sua morada, deverão dar um jantar aos mesmos clérigos, revertendo o que sobejar em prol da albergaria. Proíbe terminantemente que alguém de sua linhagem ou fora dela se intrometa a execução do seu testamento. Como sanção final abençoa todos aqueles que respeitarem as suas últimas vontades e lança a maldição divina e a sua própria contra aqueles que eventualmente contrariem as suas disposições.

Testamento de Maria Simões (Coruche, 3 de Dezembro de 1348)
Escolhe para sua sepultura a igreja de S. João, onde era freguesa. Faz seus testamenteiros dois sobrinhos: Estêvão Esteves, clérigo, e Afonso Domingues, que deverão designar sucessores. Ainda que de uma forma simples e por vezes demasiado breve, a testadora preenche as várias finalidades atrás enunciadas:
I: com o seu corpo, manda à igreja 5 libras, mais 10 para sepultura, 10 por falhas e ainda 5 soldos a seu abade. Para as honras fúnebres propriamente ditas ordena uma missa oficiada no dia da sepultura e as matinas dos mortos. Para tudo isto, despenderiam a quantia de 30 libras. Como confrada de S. Brás, teria certamente o direito a que os membros da confraria acompanhassem o féretro à igreja, fazendo-lhe honra, facto que não carece ser lembrado, por óbvio.
II: estabelece que, durante o ano imediato à sua morte, realizem sufrágios temporários por sua alma. Deverão obradá-la (a obrada era uma oferta de carácter sufragante composta de pão, vinho e cera) semanalmente, com um alqueire de trigo, vinho, dinheiro e candeias, segundo o costume. No fim de cada mês, realizariam um saimento sobre a sua sepultura, seguido da inevitável refeição ritual que consistiria de quatro carneiros, quatro almudes de vinho e quatro canastras de pão cozido. A mesma cerimónia teria lugar ao fim do ano. Apesar dos lapsos do texto, dá ainda para perceber que a testadora exigia que fossem dadas por sua alma mesas de peixe e de carne, dispondo para isso de dinheiro e pão». In Maria Ângela Beirante, Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV, Território do Sagrado, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-109-1.

Cortesia de EColibri/JDACT

Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV. Maria Ângela Beirante. «… do seu testamento: fazer serviço a Deus e melhoramento de minha alma desy acresentamento e honra de meu auer»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sabemos, por outro lado, que Maria Garavinha era servida por vários criados que contempla no seu testamento e que pôde ser sepultada na capela-mor da igreja. Conjugando estes elementos com o facto de possuir uma boa fortuna, podemos admitir estarmos em presença de uma dona de nobreza talvez recente, mas de certa projecção no meio. Nos testamentos em análise, registam-se, no total, 5 finalidades ou funções, pelas quais as testadoras entendem distribuir os seus patrimónios, o que não significa que todas sejam igualmente contempladas. Assim, enquanto Maria Raimundo não se ocupa com os sufrágios periódicos, Maria Garavinha não cuida das obras pias.

Testamento de Maria Raimundo (Coruche, 15 de Outubro de 1339)
A testadora começa por enunciar os objectivos religiosos e profanos do seu testamento: fazer serviço a Deus e melhoramento de minha alma desy acresentamento e honra de meu auer. Manda sepultar o seu corpo na igreja de S. João de Coruche, diante do altar de Santa Clara, sob uma pedra que mandara vir de Flandres e em cuja capela sepultara já, em dois moimentos alsados, os dois cavaleiros com quem fora casada. Mandara fazer nesta capela um altar de pedra, doara-lhe um cálice e um turíbulo de prata e mandara pôr na igreja uma pia baptismal. Faz seus testamenteiros João Lourenço Cidrão, a quem deixa a sua casa de morada, e João Cré, clérigo seu criado. Ambos deviam, por seu turno, nomear sucessores na administração da capela. Maria Raimundo distribui os seus bens por quatro das finalidades enunciadas:

I e II: para o dia da sua morte, ordena que, quando levarem o seu corpo a enterrar, paguem à igreja 10 libras e mais 20, por falhas. Dispõe que os clérigos que forem ao seu enterro lhe façam matinas e lhe rezem saltérios. Rezariam duas missas e mandariam tanger todos os sinos da vila. Comprariam uma arroba de cera para o funeral e finalmente fariam um saimento (procissão fúnebre que se realizava em torno da sepultura, com cruz, água benta, incenso e círios acesos e sempre seguida de refeição. sobre a sepultura com distribuição de alimentos) Deste modo, além dos gastos em cera, em 4 alqueires de trigo amassado, em carne e vinho, gastariam com as exéquias a quantia de 37,5 libras em dinheiro.

III: às obras pias destinou cerca de 50 libras assim distribuídas: obras das igrejas de Coruche; albergarias e gafarias da mesma vila; conventos de Santarém (Donas de Sta. Clara, Donas de S. Domingos, Menores de S. Francisco, Pregadores de S. Domingos e Trinitários, para resgate de cativos).

IV: o seu grande investimento projectou-se principalmente nas fundações perpétuas: capela, aniversários (celebração perpétua de missas, no dia do aniversário do óbito do instituidor, ou em certos dias escolhidos pelo mesmo, com particular destaque para os dias de festa religiosa) e albergaria. Para sustento das mesmas chegou a adquirir, por compra, vários bens imóveis para juntar aos que já possuía. Para suporte da capela, deixou quatro vinhas, uma adega e um lagar com todos os seus pertences, que entregou ao testamenteiro João Lourenço com o encargo de pagar anualmente 100 libras a dois capelães que rezassem missas quotidianas para todo o sempre. Nomeia então como capelães o seu testamenteiro João Cré e o clérigo Estêvão Boi, que vive numa casa da testadora». In Maria Ângela Beirante, Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV, Território do Sagrado, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-109-1.

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À volta do casamento do infante Pedro. Douglas Mota Xavier Lima. «Pedro aparece na “idade adulta” quando resolveu casar (trinta e seis anos), aliás, próximo da “maturidade”»

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«(…) A descrição cronística dessa missão diplomática é oscilante nas informações oferecidas, pois afirma ser o infante Pedro o noivo buscado pela rainha da Sicília, depois indica que Duarte era o objecto da negociação e que o Infante era uma proposta secundária no consórcio (a partir da crónica, é possível inferir que a proposta de envolver Pedro na negociação foi de João I, não da rainha da Sicília, como o próprio Zurara afirma no capítulo anterior, visto que o rei formou a embaixada como uma forma de dissimulação pois sabia os problemas implicados no estatuto do Infante, a qual cousa eu sei pelo requerimento que me ela enviou fazer que me prouvesse de casar meu filho o Infante dom Pedro, a qual cousa eu sei bem que certo ela não há-de fazer; empero a aproveitará muito semelhante cometimento porquanto meus embaixadores terão azo de ir e vir por acerca daquela cidade, Ceuta, onde poderão devisar todo o que lhe por mim for mandado), e finaliza com a menção do descontentamento da rainha perante a proposta de casamento com o secundogénito português (trata-se de dona Branca I de Navarra, esposa de Martin I, o Jovem, rei da Sícília e herdeiro de Aragão; após a morte deste, em 1410, Branca permaneceu à frente do reino da Sicília até 1415).
É possível inferir que alguma proposta de casamento possa ter surgido na cidade de Viena em inícios de 1426, visto que, de acordo com Albert Starzer, o baile oferecido ao Infante, na chamada casa de Praga, foi largamente concorrido pelas damas da cidade. Contudo, com a excepção desta inferência a partir do estudo de Domingos Maurício Santos, não há outra informação que envolva o tema do casamento durante a viagem. Sabe-se que os casamentos entre famílias régias eram, sobretudo, um acto político, comumente lento na condução das negociações, o que se dava em virtude das estratégias políticas das casas reais e das disponibilidades de noivos e noivas das mesmas. Tais dificuldades e frequentes mudanças de políticas matrimoniais possibilitavam vários casos de nobres que não contraíam casamento, sendo emblemático o exemplo do infante Henrique. Todavia, aos trinta e seis anos, Pedro casou-se.
Tal aspecto, a idade do Infante, chama a atenção e demanda uma reflexão pormenorizada, a qual não aparece valorizada na bibliografia que trata do casamento dos infantes avisinos. Perspectivas gerais sobre as idades na Europa do período, trazem a seguinte indicação:













Idades

Segundo este esquema, Pedro aparece na idade adulta quando resolveu casar (trinta e seis anos), aliás, próximo da maturidade. No entanto, para não fundamentar uma posição apenas em perspectivas genéricas, espacial e temporalmente, veja-se a seguinte consideração de Duarte acerca das idades:

Idades segundo Duarte I

Estes apontamentos foram feitos pelo próprio irmão de Pedro que, ao estabelecer esta teoria das idades, permite que a decisão do casamento seja redireccionada para o início da decadência da vida do homem. De qualquer forma, pelos elementos já levantados, mostra-se nítido que o matrimónio do duque de Coimbra foi decidido numa idade avançada da sua vida, facto que também ocorreu com Duarte I, que casou aos trinta e sete anos. Não obstante, antes de finalizar esta observação e a fim de oferecer ainda mais elementos que corroborem a posição tomada, recupera-se um novo levantamento sobre o tema, este feito por Armindo Sousa abordando a média de vida dos reis, rainhas e príncipes:


Idades e médias de vida (1300-1500)

In Douglas Mota Xavier Lima, À volta do casamento do infante Pedro, UFOdoPará, ICE, PCHumanas, Santarém, Brasil, Revista Medievalista, Nº 21, Janeiro-Junho 2017, Universidade Nova de Lisboa, FCS e Humanas, FC e Tecnologia, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/FCT/JDACT

À volta do casamento do infante Pedro. Douglas Mota Xavier Lima. «Assim, é importante notar que os quatro casamentos dos filhos legítimos de João I e Filipa ocorreram nos anos de 1420»

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«(…) João I e dona Filipa tiveram oito filhos, dos quais dois faleceram. Dos seis infantes, apenas dois não casaram, Henrique e Fernando, mesmo tendo existido oportunidades nesse sentido. O primeiro a casar-se foi o penúltimo filho, o infante João, em Novembro de 1424, matrimónio que uniu o infante à sua sobrinha, única filha do conde de Barcelos, dona Isabel. No entanto, tal enlace, somado ao de Afonso com a filha do Condestável, representa uma tendência secundária das uniões estabelecidas pelos filhos de João I, visto que de oito filhos (legítimos e bastardos), quatro casaram fora de Portugal. A partir das fontes acerca das negociações matrimoniais de Afonso, dona Beatriz e do infante João, pode-se entrever que estas transacções não conheceram delongas, sendo o casamento da infanta com o conde de Arundel o que mais se protelou. A constatação reitera-se na observação das negociações que envolveram os matrimónios de Duarte I, Pedro (o Regente) e dona Isabel, pois este segundo conjunto de casamentos reafirma a tendência de que a procura de um marido ou de uma esposa por um príncipe era um processo longo e complexo. O estabelecimento de dois conjuntos de casamentos, sendo o primeiro representado por Afonso, dona Beatriz e João, e o segundo por Duarte I, Pedro e dona Isabel, permite ainda que se delimitem distinções entre as consequências de cada um dos grupos de matrimónios para a dinastia de Avis. Acredita-se que ambos reforçaram os laços avisinos dentro e fora de Portugal, contudo também reflectem momentos diferentes do reinado de João I. Os primeiros ocorreram num período de busca de afirmação e legitimação dinástica, para o qual a aliança do rei com os Lancaster (1387) já tinha contribuído, com os problemas internos apresentando-se como difíceis obstáculos, e o segundo conjunto de consórcios deu-se num contexto de consolidação e ampliação das alianças externas existentes até então.
Assim, é importante notar que os quatro casamentos dos filhos legítimos de João I e Filipa ocorreram nos anos de 1420. Chama ainda mais atenção o facto de três casamentos terem ocorrido entre Setembro de 1428 e Janeiro de 1430. Destes, o enlace do herdeiro (1428) foi investigado no citado estudo de Dias Dinis, no qual se expõe a importância do matrimónio para as relações ibéricas do período. O principal consórcio foi o de dona Isabel (1430) com o duque da Borgonha, que consolidou a presença portuguesa no norte europeu. E o casamento de Pedro? Tal como outros aspectos da vida do duque de Coimbra, o enlace mostra-se um obscuro, porém crucial, momento na trajectória biográfica do viajante das Sete Partidas.
Portanto, para finalizar as considerações sobre a política matrimonial de João I, afirmamos que os casamentos dos anos de 1420 foram reflexo de uma nova etapa da diplomacia portuguesa. A posição interna de Avis já estava estabilizada e a aliança inglesa estruturada e reafirmada com o consórcio de Beatriz. A conquista de Ceuta (1415) tinha permitido a construção de uma imagem do reino e da dinastia reinante articulada com os valores cristãos e com a defesa da Cristandade, elementos que favoreciam a honra da família real avisina no cenário das casas principescas. Por fim, os casamentos do período demonstram o esforço do reino de Portugal em consolidar-se no cenário político ibérico, mormente através da aliança com Aragão e, ultrapassando este quadro diplomático tradicional, enrijecer os laços com o mar do Norte, por meio do enlace com o ducado de Borgonha.
A fim de organizar a exposição sobre o enlace do Infante, orientaremos a discussão de acordo com os seguintes tópicos: as anteriores propostas de casamento; o momento do enlace, como etapa da vida de Pedro; a escolha da noiva, dona Isabel de Urgel; o casamento e as suas consequências. As primeiras menções sobre propostas de aliança matrimonial envolvendo o infante Pedro aparecem em dois documentos do rei Martin de Aragão, datados de Aabril de 1410, no qual o monarca expõe o interesse de casar a infanta dona Leonor de Urgel, ou com Duarte ou com o Infante. Novas alusões surgem alguns anos depois, de acordo com o texto da Crónica da Tomada de Ceuta, ao descrever o envio dos embaixadores portugueses à Sicília. Esta missão teve como pretexto tratar do matrimónio proposto pela rainha viúva, dona Branca, com o infante Duarte, ou com Pedro. De acordo com Zurara, após descartarem o avanço das negociações com o príncipe herdeiro, os enviados portugueses afirmaram que João I via com prazer que o casamento da rainha se concretizasse com o secundogénito. Contudo, ainda segundo o cronista, a rainha ficou mui pouco contente com a posição da embaixada, visto que lhe parecia que seu estado receberia abatimento, mandando ela, primeiramente, tratar casamento com o infante Duarte, que era herdeiro do reino, e tornar a casar com o infante Pedro que era sojeito a seu irmão por razão de sua primeira nascença». In Douglas Mota Xavier Lima, À volta do casamento do infante Pedro, UFOdoPará, ICE, PCHumanas, Santarém, Brasil, Revista Medievalista, Nº 21, Janeiro-Junho 2017, Universidade Nova de Lisboa, FCS e Humanas, FC e Tecnologia, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/FCT/JDACT

terça-feira, 28 de março de 2017

Histórias Brejeiras. Artur Azevedo. «Enquanto foi solteira, achava a minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me»

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À Não-Me-Toques!
«(…) Um dia, tudo mudou de repente. Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe aconselhava o contrário, o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulação, cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta, viu-se obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe atirado pelo destino contra a altivez da Não-me-toques.
A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu, deixando a família numa situação embaraçosa. Um verdadeiro deus ex machina apareceu então na figura de Seu José que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se a dona Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão. O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova eloquente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade, quando o falecimento da viúva dona Guilhermina veio colocar a filha numa situação difícil... Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a Não-me-toques? Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes era um acto que as circunstâncias impunham... Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Não que Seu José lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno e honrado; estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão mais velho, e ela, que recusara a mão de tantos doutores, não podia afazer-se à ideia de se casar com ele.
Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a Não-me-toques lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus contínuos e impertinentes muxoxos, um dia lhe dissera: não sei o que supões que tu és, ou o que nós somos! Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador da minha casa e da minha raça! Tratava-se por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuação da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe também a continuação da raça. Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe trémulo, e com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.
Casaram-se.
Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José levou à Antonieta um coração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das suas obrigações materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser a única preocupação do seu espírito... Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica: era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido, aliás, até então, o único homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de Não-me-toques. O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silêncio, sem que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.
Antonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera, e onde ninguém a visitava, porque o seu carácter a incompatibilizara com toda a gente. O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa, atordoando-a com o bulício das primeiras capitais do Velho Mundo. De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas. Começou então uma nova existência para Antonieta, que, não obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne. As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas.
Agora já lhe não chamavam a Não-me-toques; ela tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontâneo para cada visita.
Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios, escutava-os agora com prazer. Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico e conseguiu uma entrevista. Esse primeiro amante foi prontamente substituído. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos... E quando Seu José, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala, deixou esta frase escrita num pedaço de papel: enquanto foi solteira, achava a minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me. In Correio da Manhã, 12 de Outubro de 1902.

In Artur Azevedo, Histórias Brejeiras, 1962, Projecto Livro Livre, nº 519, Iba Mendes, 2014.

Cortesia de IMendes/JDACT

Histórias Brejeiras. Artur Azevedo. «Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela...»

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À Não-Me-Toques!
«Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, não que lhe faltassem candidatos, mas, infeliz moça!, naquela capital de província não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de ser seu marido. Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigências da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta. Que diabo!, dizia o comendador à sua mulher, dona Guilhermina, estou vendo que será preciso encomendar-lhe um príncipe! Ou então, acrescentava dona Guilhermina, esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade… Está bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman. Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomável. Suficientemente ricos tinham dado à filha uma educação de fidalga, habituando-a desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes caprichos. Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando correctamente o francês e o inglês, tocando muito bem o piano, cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas para se julgar um avis rara na sociedade em que vivia, e não encontrar em nenhuma classe de homem que merecesse a honra insigne de acompanhá-la ao altar.
Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo comendador em companhia da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituía, naquela boa terra, um título de superioridade. Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a erguer os olhos para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco certa corrente de animada diversão. Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de La Fontaine, e, como a qualquer indivíduo, macho ou fêmea, que estivesse em tal ou qual evidência, era difícil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela Não-me-toques.
Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela... Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o único talvez, que jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos. Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal. Por esse tempo veio ao mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se, fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes ia buscá-la ao colégio. Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, Seu José (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição por aquela menina se transformava, tomando um carácter estranho e indefinível; mas calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio do seu platonismo.
Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (não sei com que propriedade) o tombo da casa comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicação e amizade, a sua situação era ainda a de um simples empregado; o patrão, ingrato e egoísta, pagava-lhe em consideração e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de uma vez apareceram a Seu José ocasiões de trocar aquele emprego por uma situação mais vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera». In Artur Azevedo, Histórias Brejeiras, 1962, Projecto Livro Livre, nº 519, Iba Mendes, 2014.

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segunda-feira, 27 de março de 2017

Poesia. Eróticas, Satíricas e Burlescas. Bocage. «Devoto incensador de mil deidades, (digo de moças mil) num só momento. Inimigo de hipócritas, e frades»

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Auto-retrato
«Magro, de olhos azuis, carão moreno,

bem servido de pés, médio na altura,

triste de cara, o mesmo de figura,

nariz alto no meio, e não pequeno.


Incapaz de assistir num só terreno,

mais propenso ao furor do que à ternura,

bebendo em níveas mãos por taça escura

de zelos infernais letal veneno.



(digo de moças mil) num só momento.

Inimigo de hipócritas, e frades.


Eis Bocage, em quem luz algum talento;

saíram dele mesmo estas verdades

num dia, em que se achou cagando ao vento».


Soneto do membro monstruoso
«Esse disforme, e rígido porás

do rosto me faz perder a cor;

e assombrado de espanto, e de terror

dar mais de cinco passos para trás;


A espada do membrudo Ferrabrás

decerto não metia mais horror;

esse membro é capaz até de pôr

a amotinada Europa toda em paz.


Creio que nas f… recreações

não te hão de a rija máquina sofrer

os mais corridos, sórdidos cações;


de Vénus não desfrutas o prazer;

que esse monstro, que alojas nos calções,

é pi… de mostrar, não de f…»


Soneto (des)pejado
«Num capote embrulhado, ao pé de Armia,

que tinha perto a mãe o chá fazendo,

na linda mão lhe foi (oh céus) metendo

O meu …, que de amor fervia;


entre o susto, entre o pudor, a moça ardia;

e eu solapado os beijos remordendo,

pela fisga da saia a mão crescendo

a cha… saca… lhe fazia;


começa a … a menina... Ah! Que vergonha!

Que tens?, diz-lhe a mãe sobressaltada;

Não pôde ela encobrir na mão ...;


sufocada ficou, a mãe corada;

Finda a partida, e mais do que medonha

A noite começou à bofetada».
[…]


In Bocage, Poesia, Eróticas, Satíricas e Burlescas, Projecto Livro Livre, livro 270, Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes, 2014.

Cortesia de IMendes/JDACT