Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Áugure
«(…)
Subimos até ao meu pequeno estúdio, um recinto escuro lotado de caixas e manuscritos,
de onde se dominava Roma inteira, e, mal a porta se fechou, o padre Torriani confirmou
os meus temores: claro que vim por causa dessas benditas cartas!, protestou
arqueando as suas sobrancelhas brancas. E se me pergunta quem penso que é o seu
autor? Justo você, padre Leyre? Torriani respirou fundo. A sua natureza doentia
lutava para se aquecer enquanto o vinho o ia ruborizando aos poucos. Do lado de
fora, a neve recrudescia sobre o vale. A minha impressão, prosseguiu, é que o nosso
homem tem de ser alguém do séquito do duque, ou algum irmão do novo convento de
Santa Maria delle Grazie. Trata-se de uma pessoa que conhece bem os nossos
costumes e que sabe a quem está encaminhando as suas cartas. Contudo… Contudo? Veja,
padre Leyre: desde que li a carta que lhe dei a conhecer ontem, mal tenho
dormido. Ali fora há alguém que nos avisa de uma grave traição contra a Igreja.
O assunto é muito sério, especialmente se, como receio, o nosso informante
proceder da comunidade de Santa Maria. Acredita que o Áugure é um dominicano,
padre? Tenho quase a certeza disso. Alguém de dentro, uma testemunha do avanço
do Mouro, que não se atreve a denunciá-lo por medo de represálias. E suponho
que já tenha pesquisado a vida desses frades em busca do seu candidato, estou
enganado? Torriani sorriu satisfeito: todos. Sem excepção. E a maioria procede
de boas famílias lombardas. São religiosos leais ao Mouro e à Igreja, homens
pouco afeitos a fantasias ou conspirações. Bons dominicanos, em suma. Não posso
imaginar quem deles pode ser o Áugure. Se é que seja algum deles. Evidente. Permita
que lhe recorde, mestre Torriani, que a Lombardia sempre foi terra de hereges.
O prior
geral da ordem, friorento, sufocou um espirro antes de responder: isso foi há
muito tempo, padre. Muito. Há mais de duzentos anos que não resta nenhum rasto da
heresia cátara na região. É verdade que aqueles malditos que inspiraram o nosso
amado São Domingos a criar a Santa Inquisição (maldita) se refugiaram ali
depois da cruzada albigense, mas todos morreram sem poder contagiar ninguém com
as suas ideias. Contudo, não se pode descartar que a sua blasfémia tenha
penetrado a mentalidade dos milaneses. Senão, por que estes são tão abertos a
ideias heterodoxas? Porque haveria o duque de aceitar crenças pagãs se ele
mesmo não houvesse crescido num ambiente predisposto a isso? E porque razão,
prossegui, um dominicano fiel a Roma haveria de se esconder por detrás de
mensagens anónimas, não fosse porque ele mesmo participa da heresia que agora
denuncia? Aldrabice, padre Leyre! O Áugure não é um cátaro. Ao contrário:
preocupa-se em manter a ortodoxia com mais zelo que o próprio inquisidor geral
de Carcassonne. Esta manhã, antes de o senhor chegar, li outra vez todas as
cartas desse indivíduo anónimo. E o Áugure tem clareza de seu objectivo desde a
primeira que nos mandou: deseja que enviemos alguém para deter os planos do
Mouro em Santa Maria delle Grazie. É como se o que o duque fez no restante Milão,
as praças, os canais para a navegação interna, as eclusas, não tivesse
importância… E isso abona a sua hipótese. Torriani assentiu satisfeito.
Mas,
mestre, eu o contradisse, antes de agir, deveríamos avaliar se o seu pedido encerra
alguma armadilha. Como? Ainda pretende deixar o Áugure desamparado, apesar das
provas que nos ofereceu? Mas se você mesmo, há tempos, vem denunciando os
desvios doutrinais da falecida esposa do Mouro! Justamente. Essa família é
astuta. Não será fácil encontrar argumentos contra eles. O que digo, é que
devemos extremar a prudência antes de dar um passo em falso. Não, padre. Nada disso. Esse homem, seja quem for,
pede-nos ajuda, e já não lha podemos negar por mais tempo. Além disso, sabe
que, por meio do cardeal Ascânio, irmão do duque, comprovei até os mínimos
detalhes que aparecem em seus informes. E acredite: todos são exactos. Exactos,
repeti, enquanto tentava pôr em ordem as minhas ideias. Sabe de uma coisa?
Creio que o que mais me surpreende neste assunto é a sua mudança de atitude,
mestre Torriani. Não há mudança, protestou. Arquivei as cartas do Áugure
enquanto não tinha provas sólidas que as respaldassem. Se não tivesse acreditado
nelas, eu as teria destruído, não lhe parece?
Então,
mestre, se ao nosso informante lhe assiste a verdade, se é um dominicano
preocupado com o futuro do seu novo convento, porque o senhor acredita que ele
esconde a sua identidade quando lhe escreve? Frei Gioacchino encolheu os ombros,
devolvendo-me uma careta de perplexidade: quem dera eu soubesse, padre Leyre. E
isso me preocupa. Quanto mais tempo passo sem respostas, mais me incomoda este
assunto. São muitas as frentes que a nossa ordem mantém abertas nestes dias, e
abrir mais uma ferida no seio da Igreja equivale a fazê-la esvair em sangue
irremediavelmente. Por isso, chegou a hora de agir. Não podemos permitir que se
repita em Milão o que já ocorre em Florença. Seria um desastre! Mais uma
ferida. Hesitei quanto a trazer o assunto à baila, mas o silêncio de Torriani não
me deixou alternativa: suponho que se esteja a referir ao padre Savonarola. E a
quem mais? O ancião inspirou antes de prosseguir. A paciência do Santo Padre já
acabou e já pensa em excomungá-lo. Os seus sermões contra a opulência do papa crescem
em acritude; ainda por cima, as suas profecias sobre o fim da casa dos Medicis
se cumpriram, e agora, seguido por uma multidão, anuncia grandes castigos do
Senhor contra os Estados Pontifícios. Diz que Roma deve sofrer para purgar os seus
pecados, e o maldito se alegra por isso. O pior, sabe o que é? É que a cada dia
tem mais seguidores. Se por um acaso o duque de Milão aderisse a essa ideia de
desastre, ninguém poderia deter o descrédito da nossa instituição». In
Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN
978-854-220-327-1.
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