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O
conde de Nigredo
«(…)
Muito bem, meu amigo, disse Ignazio, pondo-lhe a mão nas costas. Atrela o cavalo
ao carro e sobe. Vamos pôr-nos a caminho. O francês obedeceu. Descobriste onde se
situa o acampamento do rei? Acho que sim, respondeu o homem, acomodando-se ao lado
de Uberto. Basta seguirmos aquelas tropas. Apontou a fila de soldados que se dirigiam
para a pequena povoação. Temos de chegar lá o mais depressa possível. Depois do
cair da noite, estas terras ficam pejadas de ladrões. Retomaram o caminho. O carro
voou pelo declive, vacilando a cada buraco, e mergulhou por entre uma vegetação
que, com a aproximação do rio, se tornava cada vez mais densa e rica em palmeiras.
Embora tudo isto acontecesse nos primeiros dias de verão, uma ligeira neblina
toldava as cores dos vinhedos longínquos. Os três companheiros seguiram o itinerário
batido pelos soldados e atravessaram o rio por uma velha ponte de pedra apoiada
em quinze arcadas, ainda a tempo de verem os soldados a desaparecer por trás das
muralhas da povoação. Só que a cancela fechou-se antes de conseguirem entrar. Uberto
parou os cavalos e olhou em redor. O vale estava envolto em silêncio. A povoação
surgia sobre uma colina delimitada por um anel de muralhas. No cimo da elevação,
sobressaía um castelo com uma torre, por entre os estandartes reais. Nesse momento,
um destacamento de soldados saiu da mata e circundou o carro. Estavam todos vestidos
da mesma maneira, com lorigas de metal, elmos munidos de nasal e túnicas
vermelhas. O mais gordo e hirsuto do grupo veio apressado até ao carro, armado
de uma lança. Parai, señores! Este é um presídio do rei de Castela. Ignazio, que
previra tal situação, fez sinal aos companheiros para que se mantivessem calmos,
depois ergueu a mão e desceu do carro. Chamo-me Ignazio Álvarez Toledo, sou mercador
de relíquias e encontro-me aqui por ordem expressa de sua majestade, o rei Fernando
III. Um segundo soldado deu um passo em frente. Não confio nestes biltres! Cuspiu
para o chão e desembainhou a espada. Quanto a mim, não passam de espias do
emir. E se assim for, terão o mesmo destino daqueles, acrescentou um terceiro, apontando
para quatro cadáveres que pendiam do bastião. Nada intimidado, Ignazio dirigiu-se
ao soldado hirsuto, que, apesar do aspecto, parecia mais razoável. Possuo uma
missiva com o selo régio, pelo que posso demonstrar aquilo que afirmo. Apontou para
o bornal. Podeis vê-la, se quiserdes. O soldado concordou, intimando os companheiros
em silêncio.
O mercador
de Toledo estendeu-lhe um rolo de pergaminho, mas, consciente de que ninguém sabia
ler, acrescentou: verificai o selo, deveis reconhecê-lo facilmente. O soldado
pegou no rolo, correu os olhos pelas linhas a tinta e ficou a observar a marca
impressa na cera. Sim, é o selo régio. Restituiu o documento a Ignazio, fazendo
uma ligeira vénia. Os senhores perdoem o rude acolhimento, mas as tropas maometanas
estão acampadas a pouca distância daqui e de vez em quando tentam infiltrar os seus
espias na nossa guarnição. Tranquilizai-vos, vou providenciar para que vos
deixem entrar. Voltou-se para as muralhas e gesticulou para uma pequena torre de
madeira situada à entrada. Daquela posição, uma sentinela respondeu agitando uma
bandeirola. Prossegui até à entrada, continuou o soldado, ao mesmo tempo que perscrutava
uma vez mais os viajantes. Quando estiverdes perto, a cancela será levantada e podereis
passar. Bem-vindos a Andújar, a antiga cidade de Iliturgis. Ignazio voltou a subir
para o carro e Uberto incitou os cavalos a prosseguir.
Deixaram
para trás as muralhas exteriores e seguiram através daquele que pouco tempo antes
fora um florescente centro agrícola e artesanal. À beira da estrada surgiam
construções de todo o tipo, abandonadas e enegrecidas pelo fogo. Os únicos
edifícios que continuavam a dar sinais de vida eram as tabernas, em frente das
quais conversavam grupos de soldados embriagados. A praça do mercado albergava os
acampamentos das tropas, entre as quais havia alguns soldados berberes
aquartelados longe das milícias regulares. Uberto observou-os curioso. Vestiam um
uniforme ligeiro, coberto por uma capa com capuz, o burnus. Por estranho
que parecesse, aqueles homens pertenciam às unidades de camelos montados do Norte
de África. Não vos admireis com a presença de guerreiros mouros, disse Ignazio
para o filho. O califa do Magrebe aliou-se a Fernando III, por isso enviou-lhe
reforços.
Mas se
Fernando está em luta contra o emirado de Córdova, por que razão um califa
maometano haveria de o ajudar? Ignazio encolheu os ombros. Esta guerra não é uma
guerra de religiões, mas de interesses. Como qualquer outra, aliás, comentou
Willalme. Quando já estavam próximos do castelo, veio ao seu encontro um cavaleiro
com armadura e um escudo decorado com um brasão de cruz florida. Señores, não
podeis prosseguir, disse num tom que não era descortês. A menos que tenhais alguma
licença. Temos uma licença, sim senhor, assegurou Ignazio. Sua majestade espera-nos.
Terei de me certificar disso, depois escoltar-vos-ei até à sua presença. O mercador
de Toledo estendeu-lhe a carta com o selo régio. O cavaleiro pegou-lhe com a mão
enluvada de ferro, leu-a atentamente e restituiu-lha. Pelo que me é dado ver, está
tudo conforme as regras. Tirou o capuz de protecção, descobrindo um rosto jovem
moreno. Sou Martin Ruiz Alarcón. Segui-me, indicar-vos-ei as estrebarias». In
Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria
Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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