quinta-feira, 2 de março de 2017

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcelo Simoni. «Não deverá temer nem mesmo o diabo, que é o ferocíssimo Sagitário, armado de flechas incandescentes, constante causa de temor para os corações…»

jdact

Ano de 1229. Basílica Menor de Seligenstadt
«(…) Semelhante poder colocava-o acima de qualquer outro bispo, prior ou abade, e em todos suscitava um verdadeiro temor reverencial. Gerhard von Lützelkolb olhou em redor, aconchegando-se no casacão de lã que usava por cima da sotaina. Dava a impressão de procurar uma fonte de calor que, no entanto, não encontrara. Nesta sala gela-se. O gelo purifica, rebateu o religioso com uma nota de reprovação. O frade mordeu a língua. O rigor de Von Marburg era bem conhecido. Muito bem, magíster. O que ordenais? Konrad fez-lhe sinal para que esperasse. Deu uma última leitura às cartas, depois fechou-as com cera e estendeu-lhas. Devem ser enviadas rapidamente, peço-vos. Os estafetas já estão prontos para partir. Gerhard sopesou os dois envelopes, hesitante. As mãos tremiam-lhe, uma estranha luz faiscava no seu olhar.
Konrad perscrutou-o com atenção. Era hábito não deixar escapar nada, nem o mínimo pormenor. O que vos atormenta?
Antes de responder, o franciscano emitiu uma espécie de estertor. Aconteceu uma coisa terrível, magíster. Explicai-vos. Têm que ver com o clérigo Wilfridus, o herético que acabastes de interrogar. E então? Mandei-o fechar na cela até ser enforcado. Não será preciso. A boca de Gerhard torceu-se. Já está morto. Konrad cerrou os punhos de encontro ao peito. Mas como... Os guardas encontraram-no coberto de queimaduras, foi esse o motivo do meu atraso. Queimaduras terríveis, causadas por..., qualquer coisa que se lhe cravou nas costas. O frade hesitou. A cela tresanda a enxofre. E ninguém viu nada? Não, mas... Como é que uma coisa dessas pode ter acontecido? É impossível alguém entrar naquela cela. A janela que dá para o exterior é demasiado estreita para dar passagem a um... Um homem? Konrad bateu-lhe com a mão nas costas, sorrindo melancolicamente. Aí está o sinal que esperava, pensou. Antes de falar experimentou o sabor das palavras. Não temais dar voz aos vossos pensamentos, meu amigo. Esta noite, o Maligno cavalga por estas terras.
Gerhard fez o sinal da cruz, como se quisesse proteger-se de uma maldição. Ide! Mandai entregar essas cartas, Konrad apressou-o. E rezai para que o Senhor nos dê forças. Depois, apesar do frio intenso, foi de novo até à janela e abriu as portadas de par em par. Precisava de olhar para fora, de procurar no escuro. O vento entrou pelos seus aposentos fazendo um silvo e apagando a chama da vela. A obscuridade da noite, densa como o alcatrão, submergiu todas as coisas.

O signo do sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
“Não deverá temer nem mesmo o diabo, que é o ferocíssimo Sagitário, armado de flechas incandescentes, constante causa de temor para os corações de todo o género humano. Zenão Verona, de Duodecim Signis ad Neophytus”
Suger ainda olhou para trás. Alguém o perseguia. Era uma figura imponente, envolta num manto esfarrapado. Vira-o minutos antes, ao descer da colina de Sainte-Geneviève na direcção da Cité, e temendo uma agressão, decidira apressar o passo. Além desta presença, não avistara mais ninguém ao longo da estrada, apenas uma imensidão de ratazanas e de lixo. Por todo o lado só se via porcaria, em boa parte, restos das borgas de Carnaval. Pôs o capuz da capa para se proteger do frio e depois de andar um pouco virou-se para verificar o que se passava atrás de si. O homem do manto estava cada vez mais perto... Se não tivesse sido o abade de Saint-Victor a mandá-lo chamar! Suger ensinava no Studium como magister medicinae, mas não era suficientemente rico para recusar uma visita a um doente depois do pôr do sol, sobretudo se os pacientes pagassem bem. Além de uma infusão de segurelha e de uma cataplasma para os pés inchados, o velho abade exigira-lhe uma boa dose de paciência. Suger detestava as lamentações dos velhos e, cada vez que encontrava esse tipo de pessoas, lamentava não ter escolhido o ofício do pai, que construíra vitrais de catedrais durante mais de quarenta anos». In Marcelo Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT