terça-feira, 28 de março de 2017

Histórias Brejeiras. Artur Azevedo. «Enquanto foi solteira, achava a minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me»

jdact e wikipedia

À Não-Me-Toques!
«(…) Um dia, tudo mudou de repente. Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe aconselhava o contrário, o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulação, cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta, viu-se obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe atirado pelo destino contra a altivez da Não-me-toques.
A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu, deixando a família numa situação embaraçosa. Um verdadeiro deus ex machina apareceu então na figura de Seu José que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se a dona Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão. O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova eloquente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade, quando o falecimento da viúva dona Guilhermina veio colocar a filha numa situação difícil... Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a Não-me-toques? Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes era um acto que as circunstâncias impunham... Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Não que Seu José lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno e honrado; estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão mais velho, e ela, que recusara a mão de tantos doutores, não podia afazer-se à ideia de se casar com ele.
Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a Não-me-toques lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus contínuos e impertinentes muxoxos, um dia lhe dissera: não sei o que supões que tu és, ou o que nós somos! Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador da minha casa e da minha raça! Tratava-se por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuação da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe também a continuação da raça. Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe trémulo, e com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.
Casaram-se.
Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José levou à Antonieta um coração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das suas obrigações materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser a única preocupação do seu espírito... Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica: era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido, aliás, até então, o único homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de Não-me-toques. O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silêncio, sem que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.
Antonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera, e onde ninguém a visitava, porque o seu carácter a incompatibilizara com toda a gente. O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa, atordoando-a com o bulício das primeiras capitais do Velho Mundo. De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas. Começou então uma nova existência para Antonieta, que, não obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne. As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas.
Agora já lhe não chamavam a Não-me-toques; ela tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontâneo para cada visita.
Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios, escutava-os agora com prazer. Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico e conseguiu uma entrevista. Esse primeiro amante foi prontamente substituído. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos... E quando Seu José, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala, deixou esta frase escrita num pedaço de papel: enquanto foi solteira, achava a minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me. In Correio da Manhã, 12 de Outubro de 1902.

In Artur Azevedo, Histórias Brejeiras, 1962, Projecto Livro Livre, nº 519, Iba Mendes, 2014.

Cortesia de IMendes/JDACT