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À
Não-Me-Toques!
«(…)
Um dia, tudo mudou de repente. Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe
aconselhava o contrário, o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande
especulação, cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta,
viu-se obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro
golpe atirado pelo destino contra a altivez da Não-me-toques.
A
casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus compromissos de
honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu, deixando a
família numa situação embaraçosa. Um verdadeiro deus ex machina apareceu então na figura de Seu José
que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e
associando-se a dona Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e
salvou de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão. O estabelecimento
prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova eloquente de quanto
podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade, quando o falecimento da
viúva dona Guilhermina veio colocar a filha numa situação difícil... Sozinha,
sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e
arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a Não-me-toques?
Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes era um
acto que as circunstâncias impunham... Antes da sua orfandade, jamais
semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Não que Seu José lhe
repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno e honrado; estimava-o, porém,
como a um tio, ou a um irmão mais velho, e ela, que recusara a mão de tantos
doutores, não podia afazer-se à ideia de se casar com ele.
Entretanto,
esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a Não-me-toques lembrava-se
de que o pai, irritado contra os seus contínuos e impertinentes muxoxos, um dia
lhe dissera: não sei o que supões que tu és, ou o que nós somos! Culpa tive eu
em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um
continuador da minha casa e da minha raça! Tratava-se por conseguinte, de
homologar uma sentença paterna. A continuação da casa já estava confiada a Seu
José: era preciso confiar-lhe também a continuação da raça. Assim, pois,
uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras, mas
friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial, lhe deu a
entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a
esperança desse desenlace, confessou-lhe trémulo, e com os olhos inundados de
pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.
Casaram-se.
Nunca
um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José levou à Antonieta
um coração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das suas obrigações
materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser
a única preocupação do seu espírito... Entretanto, não era feliz; sentia que
ela o não amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma
conveniência doméstica: era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada
instante a superioridade terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele,
tendo sido, aliás, até então, o único homem que lhe tocara, se convenceu de
quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de Não-me-toques. O pobre
diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silêncio, sem que ninguém
o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.
Antonieta
aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera, e onde ninguém a
visitava, porque o seu carácter a incompatibilizara com toda a gente. O marido,
avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio na sua casa comercial,
que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa, atordoando-a com o bulício
das primeiras capitais do Velho Mundo. De volta, ao cabo de um ano, construiu
uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos
trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias
mais distintas. Começou então uma nova existência para Antonieta, que, não
obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o
seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne. As suas
salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e
pequenas recepções: eram festas sobre festas.
Agora
já lhe não chamavam a Não-me-toques; ela tornara-se
acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontâneo para
cada visita.
Fizeram-lhe
a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios, escutava-os agora com
prazer. Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico e
conseguiu uma entrevista. Esse primeiro amante foi prontamente substituído. Seguiu-se
outro, mais outro, seguiram-se muitos... E quando Seu José, desesperado,
fez saltar os miolos com uma bala, deixou esta frase escrita num pedaço de
papel: enquanto foi solteira, achava a minha mulher
que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por
conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me.
In Correio da Manhã, 12 de Outubro de
1902.
In Artur
Azevedo, Histórias Brejeiras, 1962, Projecto Livro Livre, nº 519, Iba Mendes, 2014.
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