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À Não-Me-Toques!
«Passavam-se os anos, e Antonieta ia
ficando para tia, não que lhe faltassem candidatos, mas, infeliz moça!, naquela
capital de província não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de
ser seu marido. Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as
exigências da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia
de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se
casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta. Que
diabo!, dizia o comendador à sua mulher, dona Guilhermina, estou vendo que será
preciso encomendar-lhe um príncipe! Ou então, acrescentava dona Guilhermina,
esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade… Está bem
aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois estrangeiros ilustres cá têm
vindo: o Agassiz e o Herman. Entretanto, eram os pais os culpados daquele
orgulho indomável. Suficientemente ricos tinham dado à filha uma educação de
fidalga, habituando-a desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus
mais custosos e extravagantes caprichos. Bonita, rica, elegante, vestindo-se
pelo último figurino, falando correctamente o francês e o inglês, tocando muito
bem o piano, cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas
para se julgar um avis rara
na sociedade em que vivia, e não encontrar em nenhuma classe de homem que merecesse
a honra insigne de acompanhá-la ao altar.
Uma
grande viagem à Europa, empreendida pelo comendador em companhia da esposa e da
filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituía, naquela boa terra, um
título de superioridade. Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a
erguer os olhos para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu
pouco a pouco certa corrente de animada diversão. Começaram todos a notar-lhe
defeitos parecidos com os das uvas de La Fontaine, e, como a qualquer
indivíduo, macho ou fêmea, que estivesse em tal ou qual evidência, era difícil
escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela Não-me-toques.
Teria
sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, tanto assim que todos os seus
namorados se esqueceram dela... Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o
único talvez, que jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos. Chamava-se
José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde
entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal. Por
esse tempo veio ao mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se, fazer-se
altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos
braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas
as manhãs a levava e todas as tardes ia buscá-la ao colégio. Quando Antonieta
chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, Seu José (era assim que
lhe chamavam) notou que a sua afeição por aquela menina se transformava,
tomando um carácter estranho e indefinível; mas calou-se, e começou de então
por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes
que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha
acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os
outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio do seu platonismo.
Materialmente,
Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (não
sei com que propriedade) o tombo da casa comercial do Comendador Costa;
entretanto, depois de tantos anos de dedicação e amizade, a sua situação era
ainda a de um simples empregado; o patrão, ingrato e egoísta, pagava-lhe em
consideração e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de uma vez apareceram a
Seu José ocasiões de trocar aquele emprego por uma situação mais
vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado
Antonieta nascera e crescera». In Artur Azevedo, Histórias Brejeiras, 1962,
Projecto Livro Livre, nº 519, Iba Mendes, 2014.
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